Cinema

Zé do Caixão e Henri Rousseau
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Zé do Caixão e Henri Rousseau
27 de junho de 2021 at 03:02 0
Assisti dia desses “À meia-noite levarei sua alma”, que é a estreia do Zé do Caixão no cinema e o terceiro longa-metragem de José Mojica Marins, lançado em 1964. Se antes seus filmes eram mais mal do que bem recebidos pela crítica especializada, hoje o nome do diretor parece estar consolidado entre os especialistas, tanto que assisti ao filme na Globoplay, na seleção de cinquenta filmes em setenta anos de cinema brasileiro, apresentada pela Fernanda Montenegro e tudo. “À meia-noite levarei sua alma” conta a história do coveiro Zé do Caixão, vivido pelo próprio José Mojica Marins, que aterroriza com ameaças e violência a pequena cidade onde mora, e que debocha da religião e da crendice das pessoas do lugar. É um filme de terror de baixíssimo orçamento, com atores amadores, mas que impressiona pela qualidade artística: o clima de tensão que José Mojica Marins mantém durante todo o tempo é impressionante; não se assiste ao filme porque ele é “pitoresco” ou qualquer outro termo nesse sentido, mas porque ele é excelente. Fã e apoiador incondicional de José Mojica Marins, o jornalista André Barcinski deve ser um dos maiores responsáveis pelo respeito da crítica que o diretor, falecido em 2020, alcançou nos dias de hoje. Ele levou inclusive o diretor e seus filmes para festivais dos Estados Unidos, onde Zé do Caixão é conhecido como Coffin Joe. Foi principalmente num programa de entrevistas com José Mojica Marins e dirigido por André Barcinski que passava na Rede Brasil, “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, que tive maior contato com o diretor. Ele era uma pessoa sem estudo, que falava português errado, e quem acompanha os podcasts B3 e ABFP, em que Barcinski participa, já teve contato com histórias saborosas cujo principal tema era a falta de cultura geral do Zé do Caixão. Assistir ao filme “À meia-noite levarei sua alma” me lembrou o grande pintor francês Henri Rousseau (1844-1910), também conhecido como Douanier (alfandegário, profissão que ele exerceu) Rousseau. A maior parte do que sei sobre artes plásticas em geral é fruto de coleções da Editora Abril que minha mãe comprava para ela, mas, principalmente, para mim: “Mestres da Pintura”, “Gênios da Pintura” e, por último mas não menos importante, a “Enciclopédia Abril” - já citada aqui num texto sobre o grande diretor Erich von Stroheim. Henri Rousseau, conforme os textos obtidos nas fontes da Abril e reproduzidas aqui, era um gênio da pintura que não tinha tido educação formal. De mentalidade burguesa, ele queria mesmo era ser reconhecido pela Academia, por mais que pudesse expor suas obras no muito mais importante – posteriormente - Salão dos Independentes, juntamente com gênios como Degas e Cézanne. Ingênuo e pouco interessado na revolução que os impressionistas, cubistas e surrealistas estavam fazendo nas artes plásticas, Rousseau chegou a ter um jantar meio debochado em sua homenagem promovido por Pablo Picasso, mas não percebeu a ironia na intenção do grande espanhol. O interessante é que aqueles grandes pintores se divertiam com a falta de horizontes intelectuais do Douanier ao mesmo tempo que sabiam da genialidade dele. E é uma coincidência engraçada que, assim como o já citado Erich von Stroheim, por quem também sou obcecado, Henri Rousseau também inventava glórias passadas de sua própria vida que simplesmente não aconteceram. As pinturas de Henri Rousseau, é só dar uma fuçada no Google Images para sacar, são impressionantes: gênio no uso da cor, ele criou imagens fortíssimas que – mesmo com um erro de proporção aqui e ali – não saem da cabeça depois de serem vistas com algum cuidado. O quadro “O sonho”, que acompanha este texto, não me deixa mentir. O fato de fazer uma arte de extraordinária qualidade mesmo sem estudo formal fez o grande dramaturgo Alfred Jarry chamar Rousseau de “primitivo”. O tipo de arte que ele fazia hoje em dia é chamada de “naïf” (ingênua, em francês), epíteto que também pode ser sem problemas utilizado para o nosso Zé do Caixão. Fui ver na internet se alguém tinha percebido o paralelo entre os dois, e rapidamente achei a dissertação de Daniela Pinto Senador[1], em que é transcrito um depoimento do cineasta e crítico Gustavo Dahl: “quando apareceu o Mojica Marins ele era uma espécie de Henri Rousseau e Douanier Rousseau do cinema; repetiu a mesma relação que os surrealistas tiveram com Rousseau”. [1] Senador, Daniela Pinto. Das primeiras experiências ao fenômeno Zé do Caixão: um estudo sobre o modo de produção e a recepção dos filmes de José Mojica Marins entre 1953 e 1967. 2008. Dissertação (Mestrado em Estudo dos Meios e da Produção Mediática) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-05072009-230157/ >. Acesso em: 26 jun. 2021.
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“Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer”, de David Lynch
Cinema
“Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer”, de David Lynch
9 de maio de 2021 at 19:20 0
Ainda vou comentar sobre a série cult Twin Peaks por aqui, mas este texto é específico sobre o filme “Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer” (“Twin Peaks: Fire Walk with Me” no original em inglês). Ao terminar a segunda temporada de Twin Peaks em 1991, o diretor da série, David Lynch, aproveitou a deixa para lançar o filme já em 1992. “Twin Peaks: Os últimos dias de Laura Palmer” é uma espécie de prequel, já que conta o que aconteceu antes da morte da personagem (e aqui não tem nenhum spoiler, já que o assassinato de Laura Palmer é uma das primeiras coisas que aparecem na série), mas também é uma sequel, já que conta quem a matou – o que só acontece no meio da segunda temporada de Twin Peaks. Eu lembro que amava a série quando passou na Globo no início dos anos 90, e que ela foi mutilada (como se fosse um filme de Erich von Stroheim da década de 1920), já que a audiência desabou porque a Folha de São Paulo deu o maior spoiler das últimas décadas na imprensa brasileira, contando quem matou Laura Palmer. Eu mesmo, na época, não queria saber o nome do assassino, mas me contaram na faculdade sem eu perguntar. Enfim. Frustrado com o que fizeram com a série que eu estava gostando tanto, acabei me recusando a assistir “Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer”, por mais que a fita VHS estivesse dando sopa lá na locadora onde eu ia. Sei lá o que eu achei na época, mas provavelmente eu pensava que tinha que assistir à série inteira – o que não pude fazer, conforme contei acima, porque a Globo resolveu fazer um resumão dela – antes de ver o filme. O fato de a crítica ter detonado o filme – que aparentemente chegou a ter sido vaiado no Festival de Cannes em 1992 – também não ajudou muito. Enfim, foi bom eu ter visto o filme só agora, depois de finalmente ter assistido às duas primeiras temporadas da série. Se Twin Peaks tem humor e fala dos hábitos desregrados de Laura Palmer de forma relativamente leve – estamos falando de uma série de televisão, afinal –, o filme “Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer” é um soco no estômago, contando de maneira explícita a espiral de sexo e drogas em que a personagem vivia antes de ser assassinada. É um filme sombrio, violento, sem uma gota de humor. E, apesar de ter sido criado pelo mesmo David Lynch da série, parece ter sido feito por outro diretor, tão diferente é a abordagem nos dois casos – coisa de gênio, eu diria. Não por acaso parte da crítica mudou de opinião, e hoje em dia o filme tem sido mais bem avaliado do que tinha sido quando do seu lançamento.
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“Greed”, de Erich von Stroheim
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“Greed”, de Erich von Stroheim
25 de abril de 2021 at 17:59 0
Poucos filmes têm uma história tão mítica e trágica quanto “Greed” (“Ouro e Maldição” no Brasil), lançado em 1924. O seu diretor, Erich von Stroheim, o considerava a sua melhor obra e dizia que os cortes que o estúdio promoveu no filme o feriram tanto profissional quanto pessoalmente. “Greed”, baseado no romance naturalista publicado em 1899 “McTeague”, do escritor americano Frank Norris, conta a história de John McTeague (Gibson Gowland), um trabalhador de minas que, após aprender o ofício, acaba trabalhando como dentista. Ele se casa com Tina Sieppe (ZaSu Pitts), prima de seu melhor amigo, Marcus Schouler (Jean Hersholt), e é a vitória dela numa loteria que acaba colocando a vida de todos de cabeça para baixo: Tina fica obcecada com o dinheiro, não gasta um centavo dele, e também não deixa o marido – um bom homem, mas limitado intelectualmente – gastá-lo (não à toa, o título do filme, “Greed”, é “avareza” em português). Acho que não precisa contar mais nada do enredo, para não estragar a surpresa. Stroheim apresentou a sua versão inicial de “Greed”, de oito horas de duração, para um grupo pequeno de jornalistas e conhecidos. Boa parte dos presentes saiu da sala de projeção dizendo que este era o “melhor filme de todos os tempos”. Depois disso começou o drama do pré-lançamento. A Goldwyn Company (antecessora da Metro-Goldwyn-Mayer), produtora do filme, obviamente não gostou da ideia de lançar um filme tão longo e pediu para Stroheim deixá-lo num tamanho aceitável. Ele fez os cortes que quis e diminuiu o filme para quatro horas, mas mesmo assim a produtora não gostou e pediu para o editor Joseph W. Farnham diminuí-lo ainda mais - e o filme acabou com as quase duas horas e meia atuais. Stroheim ficou furioso com o resultado final e disse que “Greed” “foi cortado por editor que não tinha nada na cabeça fora o chapéu”. Entre os trechos cortados de “Greed”, por exemplo, as histórias paralelas de dois casais vizinhos – um casal bom, outro mau - dos McTeague foram eliminadas inteiramente! A versão de “Greed” original de oito horas de duração tornou-se uma espécie de Santo Graal do cinema, com diversos comentários ao longo do tempo dizendo que a versão completa do filme tinha sido vista aqui e ali - Stroheim chegou a dizer que o ditador italiano Benito Mussolini tinha uma cópia -, mas não se encontrou nenhuma prova de que essa versão realmente exista em algum lugar. A Turner fez uma versão de quatro horas, juntando o roteiro original de Stroheim com trechos e fotos não aproveitados na versão comercial. Em sua espetacular biografia “Stroheim”, Arthur Lenning comenta que promoveu a reconstrução de outro filme de Stroheim também dilapidado, “Foolish Wives”, aumentando significativamente o tamanho da versão da produtora; na estreia da sua versão da película, “um dos grandes amantes de filmes silenciosos” chegou para Lenning e lhe disse: “grande trabalho, mas fico feliz que você não tenha encontrado ainda mais” trechos não aproveitados do filme. Realmente, a sensibilidade moderna tende a rejeitar filmes silenciosos, por mais geniais que eles sejam. Quanto a mim, já assisti ao filme três vezes (duas das quais descrevi aqui) e pretendo revê-lo algumas vezes ainda. A história contada por Stroheim é sórdida e fascinante em proporções iguais, e merece toda a fama que tem; só lamento que a versão a que assisti no YouTube não tem a parte final, filmada no Vale da Morte na Califórnia, tingida de amarelo como aquela do próprio Stroheim – de todo modo, trechos dessa versão amarelada podem ser vistos aqui. Mas eu concordo com Arthur Lenning quando ele diz que é um erro considerar – como por muito tempo foi a opinião geral da crítica – que Stroheim foi o diretor de somente um filme importante, “Greed”. Na verdade, o restante dos seus filmes tem o mesmo nível artístico - e ainda não tenho ideia de qual é o meu preferido entre eles.
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“A Fonte da Donzela”, de Ingmar Bergman
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“A Fonte da Donzela”, de Ingmar Bergman
28 de março de 2021 at 18:29 0
Dias atrás eu pensei em fazer um texto aqui chamado “os cinco melhores filmes de Ingmar Bergman”, e achei que seria uma lista fácil, sem muitas dúvidas. A lista teria “Persona”, “Gritos e Sussurros”, “O Sétimo Selo”, “Sonata de Outono” e “Morangos Silvestres”. Dos cinco, o único que fazia muito tempo que eu não revia era o último, então eu precisaria assisti-lo de novo antes de escrever o texto. Para tirar alguma dúvida que eu tivesse ainda, resolvi assistir a mais alguns filmes do grande diretor sueco, nascido em 1918 e falecido em 2007, para garantir que minha escolha dos cinco filmes fosse a mais fiel possível com o meu gosto pessoal. Tudo bobagem, claro, mas justificável por meu amor por listas e por Bergman. Enfim, o primeiro que eu revi recentemente pensando nessa lista de “cinco melhores de Bergman” foi “Noites de Circo”, de 1953, que me pareceu um pouco pior do que eu me lembrava – foi o primeiro filme dele a que eu assisti, ainda na Cinemateca do Museu Guido Viaro, o ponto inicial de uma admiração que nunca esmoreceu. Pouco antes disso, revi a “Trilogia do Silêncio”, conforme comentei aqui, que não tem nenhum filme entre os cinco melhores dele – na minha opinião, claro. Depois veio a “A Fonte da Donzela” (Jungfrukällan), de 1960, a que só tinha assistido uma vez, e que não tinha me agradado: o filme, que conta uma história trágica que se passa na Idade Média sueca, me pareceu tão violento que acabou desprovido de sentido. Na revisita ao filme, a surpresa: um filme brutal, sim, mas forte, poderoso, e com um significado religioso profundo – isso sem contar na interpretação extraordinária de Max von Sydow. Nem vou comentar nada porque não quero dar spoiler. Mas garanto: para mim, “A Fonte da Donzela”, que ganhou merecidamente o Oscar de Filme Estrangeiro, já desbancou o grande “Morangos Silvestres”, de 1957, que também acabei revendo recentemente. (fonte da foto: Pinterest)
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Algumas histórias minhas com Erich von Stroheim
Cinema
Algumas histórias minhas com Erich von Stroheim
7 de março de 2021 at 17:38 0
Isso aconteceu há alguns anos. Estava mudando de canal até que apareceu a imagem de Erich von Stroheim na tela do Telecine Cult. Era um filme mudo que estava bem no final, e os poucos minutos a que assisti foram marcantes, nunca mais me esqueci deles. Várias imagens passaram na minha mente depois que ele terminou. A primeira, claro, foi a do verbete da Enciclopédia Abril que eu tinha lido diversas vezes na adolescência e que reproduzi aqui. Nele, se dizia que Stroheim (austríaco, nascido em 1885, e que fez sua carreira como diretor em Hollywood) era um caso “típico” de “poder criador liquidado pelo sistema industrial”. O verbete dizia que, devido ao seu “naturalismo delirante”, seus filmes sofriam impedimentos de “ordem moral” por parte dos produtores e, para exemplificar isto, é citado o texto de um crítico cinematográfico segundo o qual um de seus filmes, “Foolish Wives”, “deveria ser interditado”, pois era um caso de “alta traição contra a América e um insulto à mulher em geral” – o crítico citado ainda comenta que “mataria o homem que levasse meus filhos a assistir este filme”. Além do fato de um diretor de cinema ocupar quase duas páginas na Enciclopédia Abril, muitas coisas me fascinavam em Erich von Stroheim. O fato de o diretor ter uma aparência tão militar (só ver a foto que acompanha este texto, obtida aqui) e mesmo assim ser um gênio do cinema. O fato de ele ser uma pessoa que inventava seu passado (o “von”, partícula que indica nobreza, de seu nome foi criação sua). A injustiça que Hollywood fez com ele, que não conseguiu mais papéis como diretor, mas apenas como ator – vale aqui reproduzir, com pequenas adaptações, a parte do verbete que fala de sua participação no clássico “O Crepúsculo dos Deuses”: “Em 1950, trabalhou em outro filme de prestígio, ‘Sunset Boulevard’, de Billy Wilder. Seu papel é o de um grande diretor cinematográfico dos tempos de cinema mudo que, para sobreviver na nova era de som e imagem, torna-se mordomo de uma ex-estrela dos anos de 1920. Para fugir à depressão, a antiga ‘diva’ (interpretada por Gloria Swanson) relembra os tempos áureos mandando projetar fragmentos do velho ‘Queen Kelly’ (dirigido por Stroheim e interpretado pela própria Gloria Swanson). Certos críticos viram em ‘Crepúsculos dos Deuses’ um exercício de sadomasoquismo para o velho diretor. Bob Bergut chegou a dizer que ‘Hollywood vingou-se cruelmente de Stroheim’ fazendo-o trabalhar nesse filme ‘que ultrapassou até os limites da decência’”. A outra lembrança que me veio à mente quando vi o trecho do filme de Stroheim no Telecine Cult é divertida, e meio ridícula. Foi assim: eu ainda namorava a Valéria e a levei para assistir “Ouro e Maldição”, tradução brasileira de “Greed”, considerado por muitos críticos um dos dez melhores filmes de todos os tempos. Quem conheceu a antiga Cinemateca do Museu Guido Viaro aqui em Curitiba sabe que a sala de projeção era pequena, com bancos desconfortáveis de madeira e, frequentemente, com problemas no ar-condicionado. Pois bem, foi lá que eu a levei para assistir a este clássico do cinema. A cópia de “Ouro e Maldição” tinha intertítulos (as legendas do cinema mudo) em inglês e, para resolver a questão de idioma, tinha um sujeito na primeira fila traduzindo o que estava escrito na tela para os espectadores. Só que o filme era estranho, e não só por ser mudo: a história não fazia muito sentido. E eu, o namorado que tinha levado a namorada naquele programa esquisito, estava obviamente desconfortável. Pois bem: lá pelas tantas o filme acaba e os espectadores não conseguem disfarçar o incômodo. É quando o “tradutor” vem à frente da sala de projeção e explica o porquê da estranheza: o filme tinha três rolos, e um deles não tinha sido projetado. É por isso que ele era tão estranho! Enfim, o sujeito pediu desculpas para a plateia e pergunta se queríamos ver o primeiro rolo. Queríamos, claro (mas não sei se a Valéria estava muito a fim de ver, haha). Em outra ocasião, não sei se já estava casado ou não, a levei novamente para ver “Ouro e Maldição”, desta vez na ordem certa. Eu amei, mas não sei até hoje se minha – hoje – esposa gostou ou não. De todo modo, não me saiu da lembrança o comentário que meu falecido sogro, nascido em 1917, fez quando a Valéria lhe contou sobre nossas aventuras com Stroheim na Cinemateca: “um grande diretor, um grande ator”. O último filme dirigido pelo diretor, o já citado “Queen Kelly”, foi lançado em 1932, o que significa que meu sogro acompanhou o auge comercial de Stroheim – apenas para comparação, minha mãe, que amava cinema na juventude e que nasceu em 1943, nunca tinha ouvido falar nele. Agora estou com um projeto pessoal de ver todos os filmes dirigidos por Erich von Stroheim, e já assisti a cinco dos nove que ele realizou (todos podem ser vistos de graça no YouTube, aliás). Estou lendo também a ótima biografia “Stroheim”, de Arthur Lenning (The University Press of Kentucky, 588 páginas). Pretendo comentar sobre os filmes e o livro por aqui ainda. É claro que, neste processo de assistir aos filmes de Erich von Stroheim, eu estava curioso para saber qual era aquele citado no início deste texto. Acabei descobrindo: era “The Wedding March”, que teve uma continuação, chamada “Honeymoon”, que infelizmente se perdeu num incêndio em Paris. Na biografia de Arthur Lenning consta uma descrição minuciosa do que se sabe sobre este filme perdido, que ainda não li. Como nota final, acabei procurando sobre a transmissão de “The Wedding March” no Telecine Cult, e encontrei este texto na revista de cinema Contracampo, que comenta que a versão transmitida foi a restaurada - e eu lembro bem da excelente qualidade da imagem. Pois bem: infelizmente, a que eu assisti no YouTube está bem desgastada. Fui procurar o filme no canal de streaming da Telecine e, obviamente, nada de “The Wedding March”. Que ódio.
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Os filmes a que mais gostei de ter assistido em 2020
Cinema
Os filmes a que mais gostei de ter assistido em 2020
23 de dezembro de 2020 at 21:19 0
Há alguns anos eu tinha decidido que iria praticamente parar de ver filmes para me dedicar mais à literatura - e isso mudou depois que comprei a primeira caixa de DVDs da Versátil, com seis filmes noir. Como se sabe, filmes noir são filmes policiais americanos lançados nas décadas de 1940 e 1950, com fotografia expressionista. O gênero polar, às vezes chamado de noir francês, é um estilo que começou baseado no similar americano e que continuou com grande sucesso até os anos 1980 – aliás, é interessante acrescentar que existem filmes polar coloridos, ao contrário dos noir americanos, sempre em preto e branco. A Versátil já lançou 17 caixas com seis filmes noir cada uma, e cinco outras com filmes polar. Segue abaixo a relação dos melhores filmes noir e polar a que assisti este ano. Alguns deles têm versões integrais no YouTube com legendas – quando é o caso, os links são acessados quando se clica no título do filme. A foto que acompanha este texto, com o cartaz de Moeda falsa, foi obtida na Wikipédia.
  1. Bob, o jogador (Bob, le flambeur, 1956, 103 min, França). De Jean-Pierre Melville, com Roger Duchesne, Isabelle Corey, Daniel Cauchy. Caixa da Versátil: Filme Noir Francês 2.

Comentário: um dos meus filmes preferidos, sobre o qual já falei aqui.

  1. Moeda falsa (T-Men, 1947, 92 min, Estados Unidos). De Anthony Mann. Com Dennis O’Keefe, Wallace Ford, Alfred Ryder. Caixa da Versátil: Filme Noir 10.

Comentário: agentes do governo norte-americano caçam uma quadrilha de falsificadores de dinheiro. Grande filme de um dos maiores diretores americanos de todos os tempos.

  1. Os Corruptos (The Big Heat, 1953, 90 min, Estados Unidos). De Fritz Lang, com Glenn Ford, Gloria Grahame e Lee Marvin. Caixa da Versátil: Filme Noir Francês 2.

Comentário: nunca esqueço do verbete da Enciclopédia Abril que dizia que os filmes americanos de Fritz Lang eram muito piores que os alemães, que tinham sido feitos na época do expressionismo. Este filme, que fala sobre corrupção na polícia, prova que a coisa não era bem assim.

  1. Um Preço para Cada Crime (The Enforcer, 1951, 86 min, Estados Unidos). De Raoul Walsh e Bretaigne Windust, com Humphrey Bogart e Zero Mostel. Caixa da Versátil: Filme Noir 2.

Comentário: o astro Humphrey Bogart está excelente no papel de um policial com dificuldade de que as suas testemunhas façam depoimentos contra um mafioso.

  1. Série negra (Série Noire, 1979, 115 min, França). De Alain Corneau, com Patrick Dewaere, Marie Trintignant. Caixa da Versátil: Filme Noir Francês.

Comentário: filme estranho e violento sobre um vendedor casado que se apaixona por uma adolescente obrigada a se prostituir. O único filme colorido desta lista.

  1. Precipícios d’alma (Sudden Fear, 1952, 111 min, Estados Unidos). De David Miller, com Joan Crawford, Jack Palance, Gloria Grahame. Caixa da Versátil: Filme Noir 8.

Comentário: Joan Crawford está estupenda como uma dramaturga que entra num relacionamento amoroso perigoso. Eu sempre me lembro das cenas finais, impressionantes.

  1. Almas perversas (Scarlet Street, 1945, 102 min, Estados Unidos). De Fritz Lang, com Edward G. Robinson, Joan Bennett, Dan Duryea. Caixa da Versátil: Filme Noir 7.

Comentário: homem se apaixona por uma prostituta. De Fritz Lang com Edward G. Robinson, nem precisa falar mais nada.

  1. O invencível (Champion, 1949, 100 min, Estados Unidos). De Mark Robson, com Kirk Douglas, Arthur Kennedy, Marilyn Maxwell. Caixa da Versátil: Filme Noir 6.

Comentário: o primeiro grande papel de Kirk Douglas, que faz um boxeador inescrupuloso. Meu filme de boxe preferido.

  1. Rincão de tormentas (Brighton Rock, 1947, 93 min, Inglaterra). De John Boulting. Com Richard Attenborough, Hermione Baddeley, William Hartnell. Caixa da Versátil: Filme Noir 9.

Comentário: os fãs de Morrissey já ouviram falar sobre os gângsteres londrinos de segunda categoria Dallow, Spicer, Pinkie e Cubitt, que são os personagens principais deste grande filme, sobre o qual já comentei aqui.

  1. Gângsteres de casaca (Mélodie en sous-sol, 1963, 121 min, França). De Henri Verneuil, com Jean Gabin, Alain Delon, Claude Cerval. Caixa da Versátil: Filme Noir Francês 2.

Comentário: um velho criminoso quer assaltar um cassino em Cannes com a ajuda de um amigo mais novo. O ator que faz o assaltante idoso é Jean Gabin, e o que faz o jovem é Alain Delon, já basta.

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Bob le flambêur (Bob, o jogador), de Jean-Pierre Melville
6 de setembro de 2020 at 20:18 0

O gênero polar, às vezes chamado de noir francês, é um estilo que começou baseado no filme noir americano[1], e que continuou com grande sucesso até os anos 1980[2]. A Versátil Home Vídeo tem lançado caixas de DVDs de noir francês – já está no volume 5.

Já assisti a um número razoável de filmes deste estilo fascinante, e confesso que tive um motivo de estranhamento com o ator que faz o personagem principal de “Bob le flambêur” (Bob, o jogador), de Jean-Pierre Melville, lançado em 1956. Explico: muitos desses filmes têm atores que aparecem em mais de um deles – casos dos gigantes Jean Gabin e Alain Delon (que coestrelam o sensacional “Gângsteres de casaca”, de 1953, inclusive). Já Roger Duchesne é o ator principal deste “Bob le flambêur”, e é tão expressivo que está na capa do volume 2 da série da Versátil, conforme se pode verificar na foto que acompanha este texto. Depois de assistir ao filme, estranhei mais ainda ele não estrelar outros filmes do gênero, já que a atuação dele também é impressionante. “Bob le flambêur” conta a história de um gângster decadente com pouco mais de cinquenta anos que quer encerrar sua carreira no crime com um assalto espetacular – uma temática semelhante a de outros filmes da época, inclusive.

A resposta está nos extras da coleção da Versátil, num documentário chamado apropriadamente “Diário de um vilão”, de Dominique Maillet. Nele, o roteirista e escritor Thierry Crifo resume a vida de Roger Duchesne – cujo nome verdadeiro era Roger André Charles Jordens -, que faz o Bob do título do filme Jean-Pierre Melville. O ator nasceu em 1906 em Luxeuil-les-Bains em 1906 e faleceu em Mureaux no dia de Natal de 1996 – com noventa anos, portanto -, ou seja, “tanto no início quanto no fim da vida estava próximo de uma roleta”, no dizer de Thierry Crifo.

Depois da Segunda Guerra, Duchesne escreveu cinco romances policiais, mas não fez sucesso. Foi para o interior, então, trabalhar como mecânico – e é até lá que o diretor Jean-Pierre Melville vai para chamá-lo para estrelar “Bob le flambêur”. Por excesso de dívidas, os gângsteres da região do Pigalle, em Paris, não queriam deixar que Duchesne trabalhasse ali, e Melville teve que convencer os bandidos da região do contrário. O filme foi lançado em 1955, e em 1957 o ator trabalha novamente, em “Marchands de filles”, de Maurice Cloche – e é quando termina a carreira no cinema do ator, conhecido até hoje quase que exclusivamente por seu papel magnífico em “Bob le flambêur”.

Mas por que razão um ator deste nível terminou sua carreira cinematográfica cerca de quarenta anos antes de sua morte? A explicação é dada também por Thierry Crifo no documentário “Diário de um vilão”: durante a ocupação francesa, possivelmente por causa de dívidas de jogo, Duchesne foi um colaborador ativo da Carlingue, a Gestapo francesa – pode até ter torturado um membro da resistência. Entre 1933 e 1943 ele tinha participado de mais de trinta filmes, “com papéis secundários em filmes importantes, e papéis principais em filmes de menor orçamento”, ainda segundo Thierry Crifo. Depois da guerra, Duchesne ficou preso alguns meses por suas atividades de colaborador.

A maior ironia desta história trágica é que o diretor Jean-Pierre Melville, que deu o grande papel da vida de Roger Duchesne, era judeu.


[1] http://www.frenchfilms.org/best-policiers.html

[2] http://www.rueducine.com/cinema-policier-francais-de-1945-a-2015/

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Cinema
Filmes noir em tempos e lugares diferentes
29 de março de 2020 at 00:00 0

O universo do filme noir é tipicamente urbano e contemporâneo: de maneira geral, protagonistas de caráter duvidoso, bandidos, mulheres fatais, policiais, etc., são personagens vivendo em grandes cidades - seja em becos escuros, lanchonetes, palacetes ou residências modestas - nos anos 40 e 50 do século XX (época em que os filmes foram realizados). Porém, alguns filmes no estilo fogem deste padrão. O presente texto trata de quatro filmes cujas histórias transcorrem em locais diferentes - dois em presídios, um na fronteira entre os Estados Unidos e México e outro numa pequena cidade - e outro no século XIX. São uma mostra de uma rara flexibilidade neste estilo cinematográfico fascinante - e um tanto engessado. Todos os filmes citados aqui constam da fascinante coleção de DVDs “Filme Noir”, da Versátil .

“À margem da vida” (“Caged”, 1950, 96 min), de John Cromwell, se passa num presídio feminino, em que uma jovem viúva de 19 anos é presa por cumplicidade num pequeno assalto e, lá, vai ficando cada vez mais amargurada com a falta de perspectivas de melhorar de vida quando estiver livre. O filme é extremamente bem conduzido, concorreu a quatro Oscar e Eleanor Parker - atriz que faz jovem viúva - acabou vencendo o prêmio de melhor atriz.

“Rebelião no presídio” (“Riot in cell block 11”, 1954, 80 min), de Don Siegel, se passa num presídio masculino onde ocorre uma rebelião. O filme é de denúncia contra as péssimas condições dos presos - alguém já ouviu falar nisso? -, mas perdeu muito de sua força.

“Mercado humano” (“Border incident”, 1949, 96 min), de Anthony Mann, conta a história de policiais mexicanos e americanos que vão à fronteira entre os Estados Unidos e México tentar desbaratar uma quadrilha que explora o tráfico de mexicanos. Grande filme, com uma fotografia espetacular de John Alton.

Em “Ao cair da noite” (“Moonrise”, 1948, 90 min), de Frank Borzage, um rapaz de uma cidade do interior que sempre sofreu bullying por ter um pai enforcado por assassinato acaba matando sem intenção, numa briga, o maior dos valentões da cidadezinha. O restante do filme mostra os problemas do assassino com sua consciência - e por isso a Versátil, na contracapa, acaba chamando o filme de “noir psicológico”. O filme definitivamente não consegue criar o clima que queria - será pelo fato de o diretor Frank Borzage não gostar do gênero noir, como mostrado nos extras do volume 11 da coleção da Versátil? Apostaria nisso.

Finalmente, “Conspiração” (“The tall target”, 1951, 77 min), de Anthony Mann, mostra um detetive que embarca num trem para tentar salvar o presidente Abraham Lincoln, que será vítima de um atentado. O melhor dos filmes citados aqui.

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