O jogo é na Islândia, no Reykjavík Rapid de 2004. As partidas já começaram, os jogadores já estão cada um de um lado de suas mesas, mas um enxadrista ainda não chegou. Seu adversário está lá, andando de um lado para outro, com a expressão perdida. Ele toma um refrigerante, o que combina com sua própria idade: o jogador que já chegou tem apenas treze anos, mas sua aparência é de ainda menos idade: é um pré-adolescente, quase criança. Mais tarde o garoto diria que não queria ganhar o jogo pela ausência de seu adversário, já que ele queria mesmo jogar aquela partida.
O adversário finalmente chega na sala, esbaforido. Ele se senta de seu lado da mesa, cumprimenta a criança, que está jogando com as brancas e faz o primeiro lance. O adversário – um senhor de quarenta anos, com cabelos muito curtos e já grisalhos – põe as mãos na cabeça, parece preocupado, pensa um pouco e logo faz seu primeiro lance.
O jogo termina empatado: o garoto, que estava melhor na partida mas que teve problemas com o tempo, acabou fazendo um lance ruim no final do jogo, que permitiu que o senhor mais velho acabasse conseguindo um empate.
Os melhores momentos deste jogo são apresentados num vídeo com mais de cinco milhões de visualizações, apresentado no YouTube neste link, e a partida é dissecada com a habitual competência por Rafael Leite no seu Xadrez Brasil, neste link. O garoto do vídeo se chama Magnus Carlsen, o jogador que alcançaria o maior rating ELO[1] da história (2882, em 2014) e é campeão mundial desde 2013. Já o senhor se chama Garry Kasparov, russo campeão mundial[2] entre 1985 e 2000, considerado por muitos o melhor jogador de xadrez de todos os tempos.
Em 2004, quando ocorreu o jogo descrito acima, Kasparov nunca tinha disputado uma partida contra um adversário tão jovem. Suas expressões de espanto, em muitos momentos da partida, são muito engraçadas: o gênio russo não parecia se conformar em estar sofrendo contra um garotinho aparentemente tão inofensivo.
Mas o que é maravilhoso mesmo no vídeo é que ele pode ser
considerado o momento simbólico do final de uma era – a do domínio de Kasparov –
e o início de outra, a de Magnus Carlsen, atual campeão mundial.
[1] O rating Elo é um método estatístico utilizado para se calcular a força relativa entre jogadores de xadrez, inventado pelo físico americano Arpad Elo.
[2] A história dos campeonatos mundiais de Kasparov é meio complicada, já que ele brigou com a FIDE em 1993.
Paulinho era um surfista extraordinário. Suas rasgadas, seus floaters, seu flow, sua direita absolutamente fantástica assustavam os adversários. Não era o melhor tube rider que o mundo já tinha visto, mas estava entre os melhores. Já no primeiro campeonato do CT, da WSL, ficou em segundo lugar, perdendo apenas em Pipeline, e na final, para o eterno campeão Kelly Slater. Já no ano seguinte não teve para ninguém, e ele já era matematicamente campeão já na etapa de Peniche, em Portugal. Paulinho, então com apenas 17 anos, seria o novo Kelly Slater? Ultrapassaria a quantidade de onze campeonatos mundiais do maior surfista de todos os tempos? Eram esses os maiores questionamentos da imprensa especializada a respeito de Paulinho, depois de seu primeiro – que seria o último – campeonato mundial pela WSL.
Sim, último. Logo no ano seguinte à sua vitória no CT, um novo surfista chegou para assombrar o mundo do esporte: Gabriel Medina – brasileiro como Paulinho e que, assim como ele, foi matematicamente campeão da WSL já na etapa portuguesa. No ano seguinte o havaiano John John Florence ganhou o “caneco” mundial, e meio que foi se revezando com o brasileiro Medina em vitórias nos campeonatos da WSL nas duas décadas e meia seguintes – as quais ainda contaram com vitórias solitárias do sul-africano Jordy Smith e do brasileiro Ítalo Ferreira.
E o Paulinho? Continuou disputando o CT sempre com bravura, mas nunca mais passou do quinto lugar. A princípio, poderia parecer que a reversão completa das expectativas em relação àquela promessa do surf mundial foi devida a algum motivo psicológico, ou mesmo físico – mas não: Paulinho continuou surfando como sempre surfara, mas não conseguiu, jamais, fazer as manobras inovadoras e progressivas que eram a característica principal da nova geração (Medina, John John, Filipe Toledo, Ítalo Ferreira, Jordy Smith, e por aí vai), a qual Paulinho pertencia apenas em termos cronológicos: seu surf era ultrapassado desde o início – o que ninguém, por incrível que pareça, tinha percebido a tempo.
E não que ele não tentasse dar os aéreos que deliciavam os amantes do esporte, e que tanto deviam à influência do skate – John John Florence, é sempre bom lembrar, era um excelente skatista. Mas Paulinho não conseguiu, nunca, acertar um aéreo que fosse.
Cinco anos depois que Paulinho tinha vencido seu único campeonato da WSL (anos nos quais ele treinou sem sucesso fazer manobras inovadoras e progressivas), ele teve uma espécie de luz: percebeu que jamais seria um John John Florence, que jamais seria um surfista realmente grande – ao contrário da expectativa geral anterior, inclusive dele.
No dia em que ele finalmente teve consciência disso, chamou seu grande amigo Gabriel Medina no canto e desabafou: “irmão, nunca mais vou ser campeão mundial, nunca vou conseguir dar uma manobra inovadora”. O então campeão mundial olhou bem nos olhos de Paulinho e respondeu: “Jesus tem um propósito maior pra você, bro, não se preocupe com isso”.
Paulinho, que nunca acreditara em Deus, hoje frequenta cultos evangélicos – quase sempre ao lado de seu amigo Medina – em Boiçucanga, na Igreja Bola de Neve.
(O texto acima, uma ficção com personagens reais, é uma resposta ao seguinte desafio literário proposto por Robertson Frizero: "escreva, em 500 palavras, um conto cujo tema seja a mediocridade. O protagonista deve ser um artista - não importa qual a sua expressão artística - e a cena mostrada deve retratar o momento em que a personagem dá-se conta do quanto está iludida quanto ao seu 'talento'. O que a personagem fará depois dessa constatação deve ser o desfecho do conto.")
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