Revisitando livros lidos na adolescência
Literatura
Revisitando livros lidos na adolescência
20 de outubro de 2024 0
É sempre interessante reler livros lidos há muito tempo. Recentemente revisitei dois autores que não lia há mais de trinta anos já. Eu conheci o escritor norte-americano Charles Bukowski (1920-1994) pelas críticas sempre favoráveis da Revista Veja a respeito de sua obra. Li cinco livros do autor na adolescência, e lembro eles tinham uma estrutura meio circular, quase sempre com os mesmos temas: bebedeiras homéricas, sexo desenfreado com mulheres meio perdidas, sem grandes objetivos na vida – como o narrador/autor, aliás -, apostas em corridas de cavalo, mudanças constantes de um subemprego para outro, o início da fama na literatura. Lembro que eu não considerava a obra de Bukowski como “literatura séria” – eu amava Thomas Mann, na época, para que se tenha uma ideia -, mas me sentia atraído por aquelas histórias malucas. Enfim, um belo dia emprestei meus cinco livros de Bukowski para alguém que não lembro até hoje quem era, e que nunca me devolveu – e nunca mais tive contato com o autor. Alguns meses atrás passei na frente de um sebo e lá estava com destaque este “Crônicas de um amo louco – ereções, ejaculações e exibicionismos – Parte I” (L&PM, tradução de Milton Persson, 320 páginas, publicado originalmente em 1967), e resolvi comprá-lo. A releitura me revelou um escritor muito melhor do que eu me lembrava: sua perspectiva às vezes divertida e quase sempre carinhosa de seus personagens à margem da sociedade e, frequentemente, desencantados, é coisa de um grande escritor. No que depender de mim, vou continuar lendo – e relendo – Charles Bukowski por muito tempo ainda. Com o escritor italiano Alberto Moravia (1907-1990) a minha relação era ao mesmo tempo parecida e diferente. Ele também tinha ótimas críticas na Revista Veja e suas histórias eram fortemente sexuais; mas, ao contrário de Bukowski, ele tinha um verbete nas páginas principais da Editora Abril. Na minha mente de adolescente meio exibido e fanático por literatura, isto fazia uma grande diferença. Li nos anos oitenta três livros de Alberto Moravia, e dois deles, o romance “A Romana” e este “A coisa”, de contos, me impactaram enormemente. Sempre tive na cabeça a ideia de que deveria reler Moravia: ainda não revisitei o romance, mas reli o outro citado recentemente. “A coisa” (Difel, tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, 268 páginas, lançado originalmente em 1983) é composto por histórias que envolvem, frequentemente, sexualidade, política e/ou mistério com  toques sobrenaturais. Os primeiros contos do livro são mais longos, e parece que Moravia foi ficando com preguiça à medida que o escrevia, já que os contos vão diminuindo em tamanho – e também em qualidade – à medida que as páginas vão transcorrendo. Os mais impressionantes são: aquele que dá título à coletânea, em que “a coisa” é uma tara estranha de um casal de lésbicas; “Ao deus desconhecido”, em que uma enfermeira presta pequenos favores a seus pacientes homens num hospital; “A mulher da capa preta”, uma história selvagem e misteriosa sobre dois viúvos que se hospedam num mesmo hotel; e “O cinto” e “O sinal da operação”, duas histórias que hoje em dia seriam consideradas politicamente incorretas, uma sobre violência doméstica, outra sobre um padrasto e sua enteada. Se os melhores contos são grande literatura, mesmo nos piores a escrita de Alberto Moravia faz o leitor nunca perder o interesse. No que depender de mim, vou continuar lendo – e relendo – Alberto Moravia por muito tempo ainda.  
Leia mais +
Renascer
Televisão
Renascer
13 de outubro de 2024 0
Graças ao advento da Globoplay, eu e a Valéria assistimos a novelas da Globo como se fossem séries da Netflix. Assim, já vimos Nos tempos do Imperador (comentada aqui) e Terra e Paixão. Há mais ou menos um mês acabamos de assistir a Renascer (poucas semanas depois do final “real”), refilmagem da novela de mesmo nome lançada em 1993. Foi uma vantagem para nós não termos visto nada da primeira versão, o que fez com que a história do dono de fazendas de cacau José Inocêncio (vivido por Marcos Palmeira), seus quatro filhos – três formados na universidade, e outro que viveu toda a vida na fazenda da família, sempre em conflito com o pai – e o grande amor de sua vida, Maria Santa – que morre no parto do seu filho mais novo – fosse quase toda novidade para nós. Assim como ocorreu com Terra e Paixão, Renascer também teve muitas cenas de fundo didático, em que as personagens faziam longos e cansativos discursos de fundo politicamente correto. Além disso, como em quase toda a novela, muitas cenas pareciam simplesmente criadas para fazer passar o tempo, sem nenhum interesse ou importância para a trama. Mas isso tudo não invalida as muitas qualidades de Renascer: a fotografia deslumbrante (a cena inicial me remeteu a “Deus e o diabo na terra do sol”, do grande Glauber Rocha), as belíssimas paisagens, uma trama bastante movimentada em boa parte do tempo e alguns ótimos personagens e atores: destaque  para o matador de aluguel Damião (vivido pelo rapper Xamã, afetivo e assustador ao mesmo tempo), a empregada da fazenda Inácia (Edvana Carvalho, brilhante), o dono do bar Norberto (só mesmo Matheus Nachtergaele para conversar com o espectador sem parecer ridículo), a moradora da fazenda Zinha (Samantha Jones), que tentava – e não conseguia – esconder sua enorme doçura atrás de um mau humor frequente, e o “turco”, que era libanês, Rachid (Almir Sater, que mostrou seus grandes dons musicais em muitas cenas da novela) . Mas o grande destaque fica mesmo para Mariana, a segunda esposa de José Inocêncio, um personagem dúbio e misterioso, vivido por uma extraordinária jovem atriz chamada Theresa Fonseca. Enfim, agora estamos assistindo à nova novela das nove, Mania de Você, e estamos nos divertindo muito com a sua trama maluca. (foto que acompanha o texto, com a Mariana vivida por Theresa Fonseca, obtida no site Notícias na TV)
Leia mais +
“A ordem do tempo”, de Carlo Rovelli
Filosofia
“A ordem do tempo”, de Carlo Rovelli
5 de outubro de 2024 0
Em “A ordem do tempo” (Objetiva, 189 páginas, tradução de Silvana Cobucci, lançado originalmente em 2017), o físico italiano Carlo Rovelli, além de apresentar um painel de como o tempo tem sido analisado por filósofos e cientistas desde a Antiguidade Clássica, defende uma teoria fascinante e provocadora: tendo em vista que, na escala do átomo, as equações da física quântica não necessitam da variável tempo para serem resolvidas, a nossa sensação de que o tempo passa – do passado para o futuro – é causada pela Segunda Lei da Termodinâmica.  De maneira muito simplificada, esta lei diz que um sistema fechado sempre tende a um aumento da entropia, ou seja, da desordem, e não há como voltar ao estado anterior. Um ovo quebrado tem mais entropia que um inteiro – e não há como fazer a operação inversa de quebrar um ovo. Segundo Carlo Rovelli, como é sempre necessário o fator tempo – indo do passado para o futuro – para que a  entropia aumente, o aumento de calor causado por este crescimento da desordem é o que dá a sensação da passagem do tempo nos seres humanos. Mesmo nossos pensamentos são causados por atividade neuronal que literalmente esquenta nossas cabeças, e por isso nosso cérebro tem a sensação de que o tempo passa em apenas uma direção. Estava tudo indo bem quando, no final de “A ordem do tempo”, Rovelli começa a filosofar sobre o sentido da vida e, como sempre acontece nesses casos, o sono e a preguiça de continuar a leitura tomam conta dos meus pensamentos. Já tinha acontecido isso comigo com livros de divulgação científica de Richard Dawkins, Marcelo Gleiser e outros do próprio Rovelli. Como disse a polêmica – e divertida – física alemã Sabine Hossenfelder num brilhante e curto vídeo chamado “Religion and science have the same roots” (“religião e ciência têm as mesmas raízes”), cientistas frequentemente entram no campo da religião (tradução aproximada para “doing religion”) quando falam das “grandes questões” (criação e o sentido da vida, eu poderia citar) e – ainda segundo ela – não há nada de errado com isso, desde que eles assumam que estão fazendo isso. Quanto a mim, poucas coisas me dão mais tédio do que cientistas ateus filosofando, tentando dar um sentido positivo à vida.
Leia mais +
Sydney Swans 60 x 120 Brisbane Lions
Esporte
Sydney Swans 60 x 120 Brisbane Lions
29 de setembro de 2024 0
Um dos primeiros textos que escrevi sobre esporte tinha um título que era mais ou menos esse: “Eu não gosto de futebol, gosto do Coxa”. De fato, nunca fui daquelas pessoas que gostam do chamado “nobre esporte bretão”. Nunca entendi quem considerava o futebol “uma arte”, nunca apreciei assistir a jogos que não fossem do River Plate (depois de adulto) ou do Coritiba e de Copas do Mundo (ambos, desde criança). Reconheço, um tanto envergonhado, que só fui assistir a um jogo completo do Leonel Messi, prestando atenção nele como jogador (tinha visto a final Mundial Interclubes de 2015, em que ele jogava pelo Barcelona, mas só por causa do River Plate), na Copa do Mundo de 2022. Que craque! Acho que só fui apreciar mesmo um esporte por sua beleza quando comecei a acompanhar o surfe do WCT – primeira divisão da WSL (World Surf League) – depois da primeira vitória do Gabriel Medina no Campeonato Mundial, em 2014 (eu precisava acompanhar um esporte em que o Brasil fosse vitorioso depois do trágico sete a um). Gostei de xadrez na adolescência e voltei a gostar durante a pandemia, mas nem sei se este jogo é um esporte. Mas, naquela altura, ainda não tinha aprendido a apreciar um esporte com bola apenas pelo entretenimento. Tudo mudou com a Copa do Mundo de Rugby de 2023, sediada na França. Assisti a um bom número de jogos da competição, transmitida no Brasil pela ESPN, e na emissora, os ótimos Ari Aguiar e Antonio Martoni sempre explicam a história e as complexas regras do esporte – o que é ótimo para um leigo como eu. Fiquei impressionado com a incrível dinâmica do jogo, a educação dos jogadores – ninguém, por exemplo, reclama do juiz – e a emoção das partidas. Enquanto escrevo este texto, está passando na televisão aqui de casa uma reprise de África do Sul x Argentina, pela Rugby Championship. Enquanto assistia a alguns jogos da Copa do Mundo de Rugby de 2023, os narradores da ESPN falaram de passagem sobre o futebol australiano. É engraçado que, durante as Olimpíadas de Sydney de 2000, assisti a uma pequena reportagem na Globo em que se falava que o esporte mais popular da Austrália era este futebol esquisito – e nunca mais me esqueci do tema, e nem da cena final da reportagem, em que um jogador chutava uma bola oval a uma longa distância. Mas ficou por isso. Enfim, depois de poucas pesquisas na internet, acabei me viciando no tal do futebol australiano. O objetivo do jogo é chutar a bola entre as duas traves centrais do adversário (são quatro no total, as laterais menores que as centrais), para fazer seis pontos – um goal. Se acertar com um chute entre as traves laterais ou acertar entre quaisquer das traves com as mãos, vale um ponto – o behind. São dezesseis jogadores para cada time, o campo é oval e enorme, bem maior do que o do nosso futebol, e o jogo é ainda mais violento e rápido do que o rugby. Também como naquele esporte, ninguém reclama do juiz, mas os jogadores são bem menos gentis, já os adversários brigam entre si frequentemente com empurrões e puxões na camisa. Diversão pura. Já publiquei dois vídeos comentando sobre futebol australiano, e o link para meu canal está aqui. Acompanhei bastante o campeonato de futebol australiano da AFL (Australian Football League) deste ano, mas infelizmente não tinha conseguido assistir a nenhum jogo ao vivo, por mais que tenha tentado: sempre havia algum impedimento de ordem técnica, já que nenhum dos canais que eu tentei eram aqui do Brasil. Até que semana passada eu descobri que o canal Disney+ transmite de dois a três jogos de futebol australiano por semana, o que eu não sabia. Ou seja: deixei de assistir ao vivo a jogos do meu esporte preferido por puro desconhecimento. Mas nem tudo estava perdido: ainda dava tempo de assistir à Grand Final enquanto ela ocorria. Para que se tenha uma ideia, este jogo é o equivalente australiano do Superbowl, do futebol americano. A Grand Final é disputado sempre no mesmo estádio, o MCG em Malbourne, o que causou um comentário divertido de Katy Perry – que fez o show antes do jogo neste ano – que declarou que achou estranho o fato de Melbourne ter dez times no campeonato, mas nenhum na final. Enfim, assinei o canal Disney+ e, meia noite e meia da madrugada de sexta-feira para sábado passado, coloquei no canal para assistir ao jogo entre Sydney Swans e Brisbane Lions (que, como seus próprios nomes indicam, são das cidades de Sydney e Brisbane). A narração era em inglês da Austrália mesmo (não se pode ter tudo, né). A cerimônia de abertura (“Pre-Game Entertainment”) foi muito bonita, com alguns números musicais, um desfile de jogadores de futebol australiano e campeões australianos olímpicos e paralímpicos em jipes Toyota – patrocinadora do evento – e o show da já citada Katy Perry, sobre quem já comentei num texto aqui no blog. De fato, se acompanhar o futebol australiano por melhores momentos e pedaços de reprise já era bom, assistir a um jogo ao vivo é ainda melhor. Pena que eu estava com muito sono, e que o segundo quarto (o jogo é dividido em quatro tempos de vinte minutos cada um) tenha visto um massacre inapelável do Brisbane Lions: 48 x 8 contra o Sydney Swans (que liderou a fase de pontos corridos do campeonato) em vinte minutos. Acabei indo dormir, e o massacre continuou depois disso, já que o time de Brisbane acabou vencendo por 120 x 60. Mas tudo bem. Ano que vem tenho onde assistir a mais jogos de futebol australiano ao vivo, e também tenho onde assistir à série “Only Murders in th Building”, com a Selena Gomez no papel de Mabel Mora.
Leia mais +
“O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós
Literatura
“O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós
15 de setembro de 2024 0
Raramente fico frustrado com o tamanho dos meus textos aqui. Minha ideia sempre é dar uma pequena ideia do assunto a ser tratado, um tanto para fixar na memória, um tanto para destacar os pontos mais importantes. Mas com “O crime do Padre Amaro”, o primeiro romance do grande escritor português Eça de Queirós (1845-1900), é inevitável eu me sentir um tanto descontente por não fazer um texto detalhado sobre ele. São tantos os personagens interessantíssimos, tantas críticas ao mesmo tempo ácidas e bem-humoradas, tanta genialidade, que eu acho que deveria, se tivesse mais tempo e menos preguiça, fazer um verdadeiro ensaio sobre o livro. Quem sabe um dia! Mas enfim, vamos aos pontos principais desta obra espetacular. “O crime do Padre Amaro”, lançado originalmente em 1875, conta a história do amor tempestuoso entre um padre – o Amaro do título – e uma jovem solteira chamada Amélia. A contracapa da edição que acompanha este texto (da ótima coleção “Grandes Nomes da Literatura”, da Folha de São Paulo, com 470 páginas), escrita pelo grande João Pereira Coutinho, faz um bom resumo de parte importante desta obra-prima: “O crime do padre Amaro (…) não é apenas ‘uma intriga de clérigos e de beatas tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé’, como o próprio autor escreveu. Mas também não será, como certa crítica defende, uma mera condenação moral e espiritual do clero e da hipocrisia abjecta das mulheres devotas, que rezam aos santos certos e se entregam a luxúrias com os homens errados. Este romance sobrevive na memória do tempo pela extraordinária força dos seus personagens em especial de Amaro, o jovem que seguiu o sacerdócio sem real vocação e que sucumbe ao mais prosaico dos sentimentos quando se apaixona por Amélia. Acompanhar os seus atos e pensamentos – a angústia da transgressão; o ressentimento pela liberdade amorosa de terceiros; mas também a fragilidade típica do amante; os seus ciúmes reais ou imaginários; e a dilacerante ambiguidade com que ele contempla o horrendo crime – é conhecer por dentro a tragédia de um homem em carne viva que o leitor irá reconhecer como um de nós.” É claro que o tema principal do romance – a relação tórrida entre Amaro e Amélia – é apresentado primorosamente, mas o que mais me chamou a atenção foi a maneira corrosiva e divertida com que Eça de Queirós descreve a hipocrisia, a falta de escrúpulos e o corporativismo de quase todos os membros da Igreja Católica apresentados no livro (com exceção do abade Ferrão, o único, aparentemente, que realmente aplicava o Evangelho em sua vida privada) e das mulheres devotas que os seguem. E Eça de Queirós, à maneira de Molière, parece ter um carinho bem-humorado por tanta gente sem caráter. Enfim, eu gostaria de fazer um texto maior para descrever tantos personagens divertidos e fascinantes. Mas não quero terminar este curto texto sem apresentar a explicação esdrúxula, absurda e vil que o personagem cônego Dias faz da famosa frase de Cristo “dos pobres é o reino do céu”. Eça de Queirós era gênio. Deixemos a palavra, enfim, com o tal cônego Dias: “-Pra Deus não há pobre nem rico – suspirou a S. Joaneira. – Antes pobre, que dos pobres é o reino do céu! – Não, antes rico – acudiu o cônego, estendendo a mão para deter aquela falsa interpretação da lei divina. – Que o céu também é para os ricos. A senhora não compreende o preceito. Beati pauperes, benditos os pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena de não serem benditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que prega que os trabalhadores e as classes baixas devem viver melhor do que vivem vai de encontro à expressa vontade da Igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão chicote, como excomungados que são! Ouf!”
Leia mais +
“Johann Sebastian Bach”, com Víkingur Ólafsson
Música
“Johann Sebastian Bach”, com Víkingur Ólafsson
8 de setembro de 2024 0
O nome da coleção era “Os clássicos mais populares do mundo”, e era composta por doze LPs com gatinhos nas capas. Como o próprio nome dizia, as músicas apresentadas eram aquelas que a maioria das pessoas reconhece como “música clássica”. O início da Quinta Sinfonia de Beethoven. Um trecho de “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovski. Algumas coisas de Chopin. Quem comprou a coleção lá em casa não sei, até hoje, quem foi – imagino que tenha sido a minha mãe. Sei que não lembro de nenhum dia da minha infância sem aqueles doze (ou seriam dez?) discos por perto. “Os clássicos mais populares do mundo” foi provavelmente a maior contribuição para o meu gosto musical, desde que nasci até hoje. Eu ouvia aqueles discos diariamente e, com o tempo, fui percebendo que, fora uma ou outra coisa – tenho que citar a ária “Ombra mai fu”, da ópera Xerxes, de Händel, uma das músicas mais bonitas que já ouvi -, eu gostava mesmo era de Johann Sebastian Bach. A Ária na Corda Sol. A Tocata e Fuga em Ré Menor. Alguns trechos dos Concertos de Brandemburgo. Algumas árias de cantatas. Este meu interesse por Bach acabou ficando tão intenso que acabei começando a comprar discos do compositor. Os concertos de Brandemburgo e peças para órgão, em dois maravilhosos exemplares da coleção “Mestres da Música”, da Editora Abril (que descreviam com grande minúcia a vida e a obra de Bach nos fascículos que acompanhavam os LPs). Os discos de João Carlos Martins, com peças completas de Partitas, Suítes Francesas, Inglesas, e por aí vai. A Arte da Fuga executada no cravo. Uma série de cantatas. Com o tempo, a obra de Bach, que me impressionava pela beleza arrebatadora de peças como a Ária na Corda Sol, passou a ser para mim uma espécie de monolito respeitável, belíssimo e imponente. Eu me desfiz da minha coleção de LPs há muitos anos já, mas acho que tinha mais de duzentos discos do compositor. Uns poucos anos atrás, depois de ver um anúncio no Instagram, resolvi baixar um disco simplesmente chamado “Johann Sebastian Bach”, com peças diversas de um pianista islandês chamado Víkingur Ólafsson. O álbum me impressionou tanto pela execução simplesmente inacreditável – suave e expressiva na medida certa – do instrumentista, como pela escolha das peças. O disco é uma compilação com as músicas mais bonitas para teclado de Bach – e mesmo algumas transcrições de peças que não eram originalmente para o instrumento, como a inacreditável  “Nun komm der Heiden Heiland”, do Prelúdio Coral para Órgão BWV 659, transcrito por Ferruccio Busoni. Ouvindo esse disco me senti criança, maravilhado de novo com a capacidade melódica e expressiva de Johann Sebastian Bach.
Leia mais +
“Náufragos, traficantes e degredados”, de Eduardo Bueno
História
“Náufragos, traficantes e degredados”, de Eduardo Bueno
1 de setembro de 2024 0
Acompanho já há alguns anos o canal do YouTube Buenas Ideias, do jornalista Eduardo Bueno, e agora estou tentando tirar o atraso do podcast Nós na História, em que ele conversa – na maior parte do tempo sobre História mesmo – com seus amigos Luciano Potter e Arthur Gubert. Quem conhece o Peninha – apelido de Eduardo Bueno – sabe bem o que esperar do seu canal e do podcast: uma verve impressionante, um senso de humor depreciativo – contra si e contra todos -, e um conhecimento de História do Brasil impressionante. Dada sua franqueza frequentemente ferina, acho até natural que não gostem dele, mas dado seu sucesso é possível que ele seja mais amado do que odiado – estou entre os primeiros, aliás. “Náufragos, traficantes e degredados” (Estação Brasil, 176 páginas) é um edição revista e ampliada em 2016 da obra – já clássica – lançado em 1998. O estilo do livro – ao contrário daquele do podcaster e youtuber Eduardo Bueno – é sóbrio e conciso. Mas a história que ele conta é fascinante e inesperada: às vezes me pareceu estar lendo histórias que aconteceram numa realidade paralela. O livro conta, entre outros temas, a história das primeiras expedições de europeus no Brasil – algumas delas ocorridas antes do descobrimento oficial em 22 de abril de 1500 -, da luta pelo pau-brasil entre portugueses e franceses, da frustração dos exploradores em não encontrar ouro e pedras preciosas por aqui (quando havia fortes indicativos, mais tarde confirmados, de que havia quantidades enormes destes materiais no Novo Mundo), e das primeiras feitorias instaladas por portugueses em nosso país. Mas o mais inesperado e fascinante da obra são, efetivamente, os “náufragos, traficantes e degredados”. Peninha conta muitas histórias de europeus que eram simplesmente largados por aqui por castigo ou por outro motivo, ou que naufragaram e não tinham mais para onde ir, ou que resolviam viver no Brasil para traficar pau-brasil e, mais tarde, indígenas. O que mais chama a atenção é que quase todos eles passaram a viver como índios, com grande número de mulheres e liderando comunidades. Um tempo estranho no qual as diferenças entre povos eram bem menores do que se acredita hoje.
Leia mais +
Os Etruscos
História
Os Etruscos
25 de agosto de 2024 0
Eu não sei se foi no Discovery Channel ou no History em que assisti, alguns anos atrás, um documentário sobre os etruscos. Fiquei fascinado. Não tinha ideia de que aquele povo, que viveu aproximadamente entre os séculos VIII e V antes da Era Comum, era tão semelhantes aos gregos e romanos – não sei por quê, eu achava que eles deviam ser bem mais atrasados. Li recentemente três livros sobre este povo – “A civilização dos Etruscos”, de Philippe Azziz (Editions Ferni, 348 páginas, dentro da coleção “Grandes Civilizações Desaparecidas”, sem indicação de tradução, publicado originalmente em 1976), “Os Etruscos – uma civilização reencontrada”, de Attilio Gaudio, 205 páginas, Edições MM, tradução de Charles Marie Antoine Bouéry, publicado originalmente em 1969) e o clássico “Os Etruscos”, de Raymond Bloch (260 páginas, Editorial Verbo, traduzido por Maria Helena Pires Noronha e Fernando Noronha, publicado originalmente em 1958, dentro da coleção “Historia Mundi”) – e vou comentar aqui alguns aspectos sobre esta civilização fascinante. Como os gregos, os etruscos tinham divisão política em cidades-estado, que se reuniam com alguma regularidade e que às vezes guerreavam umas com as outras. Eles tiveram seu ápice entre os séculos VII e V a.C., e acabaram sendo invadidos, aos poucos, pelos romanos, que acabaram de conquistar todo o seu território – noroeste da Itália, onde hoje fica a Toscana – em 396 a.C. na batalha de Veios. Mesmo com a derrota, acredita-se que a nobreza etrusca foi absorvida pelos vencedores romanos, fazendo parte do Império. Sua língua, escrita com caracteres gregos, até hoje é um mistério para os pesquisadores: sabe-se que não era um idioma indo-europeu – origem comum de grande maioria das da Europa e muitas da Índia -, mas não muito mais do que isso. Sua literatura – que, aparentemente, era principalmente de cunho religioso, já que os etruscos eram famosos por seus rituais de adivinhação (o que continuou em Roma, mesmo depois da derrota final da Etrúria, já que os adivinhos toscanos eram os mais respeitados no Império Romano) – foi praticamente toda perdida. O maior texto escrito em etrusco que restou é um lençol mortuário encontrado no Egito: alguém, na época do Egito Romano, provavelmente, pegou aqueles tecidos cheio de textos – que ninguém sabia para que serviam e o que significavam – para embalar um morto, e o tecido foi preservado. O imperador romano Cláudio (cerca de 10 a.C. – 54 d.C.) tinha origens etruscas e escreveu uma História do Povo Etrusco e uma Gramática do Povo Etrusco, livros que se perderam, numa verdadeira tragédia para os estudiosos. A riqueza da região era principalmente derivada da mineração, e os etruscos fizeram fortuna extraindo ferro e outros minerais de seu território. Seus templos e residências eram em geral construídos de madeira, e por isso a grande maioria deles se perdeu. Por outro lado, como eram extremamente místicos e ligados à vida após a morte, construíram – no auge de sua civilização – túmulos em concreto, enterrados embaixo do nível do solo, que apresentam ilustrações da vida cotidiana dos seus nobres: grande parte do que se sabe atualmente dos seus costumes, inclusive, é deduzido destas pinturas. E o que mostram estas ilustrações nos túmulos? Basicamente, divertimento, música, banquetes, alegria. Para grande escândalo dos romanos e gregos, os etruscos banqueteavam com suas esposas, o que era impensável naquelas outras civilizações. Aparentemente, entre os povos mediterrâneos da época, em nenhum lugar as mulheres tinham tantos direitos como entre os etruscos. Os gregos e romanos criticavam os etruscos por excesso de indolência e de amor aos prazeres – dadas as pinturas nos seus túmulos e a sua derrota final para os romanos séculos antes de Cristo, é de se perguntar se seus adversários não tinham razão.
Leia mais +