É sempre interessante reler livros lidos há muito tempo. Recentemente revisitei dois autores que não lia há mais de trinta anos já.
Eu conheci o escritor norte-americano Charles Bukowski (1920-1994) pelas críticas sempre favoráveis da Revista Veja a respeito de sua obra. Li cinco livros do autor na adolescência, e lembro eles tinham uma estrutura meio circular, quase sempre com os mesmos temas: bebedeiras homéricas, sexo desenfreado com mulheres meio perdidas, sem grandes objetivos na vida - como o narrador/autor, aliás -, apostas em corridas de cavalo, mudanças constantes de um subemprego para outro, o início da fama na literatura. Lembro que eu não considerava a obra de Bukowski como "literatura séria" - eu amava Thomas Mann, na época, para que se tenha uma ideia -, mas me sentia atraído por aquelas histórias malucas.
Enfim, um belo dia emprestei meus cinco livros de Bukowski para alguém que não lembro até hoje quem era, e que nunca me devolveu - e nunca mais tive contato com o autor.
Alguns meses atrás passei na frente de um sebo e lá estava com destaque este "Crônicas de um amo louco - ereções, ejaculações e exibicionismos - Parte I" (L&PM, tradução de Milton Persson, 320 páginas, publicado originalmente em 1967), e resolvi comprá-lo. A releitura me revelou um escritor muito melhor do que eu me lembrava: sua perspectiva às vezes divertida e quase sempre carinhosa de seus personagens à margem da sociedade e, frequentemente, desencantados, é coisa de um grande escritor.
No que depender de mim, vou continuar lendo - e relendo - Charles Bukowski por muito tempo ainda.
Com o escritor italiano Alberto Moravia (1907-1990) a minha relação era ao mesmo tempo parecida e diferente. Ele também tinha ótimas críticas na Revista Veja e suas histórias eram fortemente sexuais; mas, ao contrário de Bukowski, ele tinha um verbete nas páginas principais da Editora Abril. Na minha mente de adolescente meio exibido e fanático por literatura, isto fazia uma grande diferença.
Li nos anos oitenta três livros de Alberto Moravia, e dois deles, o romance "A Romana" e este "A coisa", de contos, me impactaram enormemente. Sempre tive na cabeça a ideia de que deveria reler Moravia: ainda não revisitei o romance, mas reli o outro citado recentemente.
"A coisa" (Difel, tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, 268 páginas, lançado originalmente em 1983) é composto por histórias que envolvem, frequentemente, sexualidade, política e/ou mistério com toques sobrenaturais. Os primeiros contos do livro são mais longos, e parece que Moravia foi ficando com preguiça à medida que o escrevia, já que os contos vão diminuindo em tamanho - e também em qualidade - à medida que as páginas vão transcorrendo.
Os mais impressionantes são: aquele que dá título à coletânea, em que "a coisa" é uma tara estranha de um casal de lésbicas; "Ao deus desconhecido", em que uma enfermeira presta pequenos favores a seus pacientes homens num hospital; "A mulher da capa preta", uma história selvagem e misteriosa sobre dois viúvos que se hospedam num mesmo hotel; e "O cinto" e "O sinal da operação", duas histórias que hoje em dia seriam consideradas politicamente incorretas, uma sobre violência doméstica, outra sobre um padrasto e sua enteada. Se os melhores contos são grande literatura, mesmo nos piores a escrita de Alberto Moravia faz o leitor nunca perder o interesse.
No que depender de mim, vou continuar lendo - e relendo - Alberto Moravia por muito tempo ainda.
É meio que um mistério isso.
Só costumo reler ficção quando não lembro nada do livro – normalmente no caso de obras que li muito novo, e quando algo me diz que não custaria nada ter uma ideia do que eu tinha lido. Entre os muitos autores de livros relidos nesta categoria eu posso citar Kafka, Faulkner, Jorge Luis Borges, Machado de Assis, Lampedusa, Homero e Virginia Woolf; e normalmente a releitura é prazerosa.
Outro caso são os livros de alguns autores que “deixo fazer parte do passado da minha memória”, conforme eu tinha comentado aqui, como Thomas Mann, Honoré de Balzac e Philip Roth (se bem que já mudei de ideia quanto a este último).
Situação semelhante é de “Em busca do tempo perdido”, da Marcel Proust, que me deixou completamente alucinado quando o li no final dos anos 1980; cheguei a reler os dois primeiros da série, mas não me vejo mais retomando Proust no futuro.
Outros casos específicos são a Bíblia e o Alcorão: estou sempre lendo um pedacinho destas obras sagradas, não é como se eu tivesse necessidade de tomar a iniciativa de relê-los. E, se eu fosse apontar hoje quais os romances que mais gostei até hoje, eu apontaria “As irmãs Makioka”, de Junichiro Tanizaki, e “2666”, de Roberto Bolaño: mas me aprofundei tanto na leitura deles que não vejo muita necessidade de uma releitura.
Finalmente, vamos então aos livros da minha pequena lista de três romances que, misteriosamente, sempre quero reler e que sei que ainda vou reler muitas vezes ainda (clicando no nome dos romances abaixo tem outros detalhes sobre os livros, que eu tinha comentado anteriormente neste site), começando por um que só li duas vezes: “A história secreta”, de Donna Tartt. Nunca tinha ouvido falar deste livro e um belo dia minha mãe me mostrou, dizendo que tinha comprado pouco tempo antes e que o tinha amado. Resolvi ler, e nunca esqueci a história maluca de uns estudantes universitários americanos de literatura clássica grega que bebiam sem parar. Na primeira releitura, o romance me pareceu melhor ainda.
Conforme comentei aqui, é impressionante como odiei “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto, na primeira leitura. Depois que descobri que muito do que ele escrevia era irônico, resolvi reler o romance e ele me pareceu melhor que nunca. Sempre lembro da cena em que o narrador – baseado no próprio Lima Barreto – descobre o preconceito, numa estação de trem, contra a pele negra dele. O melhor livro da literatura brasileira, e não admito que ninguém tenha uma opinião contrária (brincadeira, admito sim, só não concordo). Só não sei se o li três ou quatro vezes, mas isso não importa, né.
Finalmente, “A Cartucha de Parma”, de Stendhal. Lembro como fosse hoje quando comprei uma linda pequena edição em francês deste clássico em papel-bíblia, num sebo. Carrego esse livro sempre comigo, e já li o romance quatro vezes no total, tanto em francês quanto em português.
É engraçado que meu nome é baseado do personagem Fabrizio de Salina, de um romance de Lampedusa chamado “O Leopardo”: um bom livro, mas que nem se compara com “A Cartucha de Parma”, cujo personagem principal é outro xará meu: Fabricio del Dongo é um sujeito apaixonante e amalucado, meu personagem preferido na história da literatura.
Minha mãe, mesmo por vias meio tortas, me batizou muito bem.
Em vídeos e crônicas, o famoso filósofo Luiz Felipe Pondé – que
eu admiro muito, aliás – parece citar sempre os mesmos escritores: Fiódor Dostoiévski,
William Shakespeare, Liev Tolstói, Nelson Rodrigues, Machado de Assis, Georges
Bernanos e mais alguns poucos (não custa lembrar que ele está lançando um curso
online sobre literatura, cujo link está aqui). Dostoiévski,
então, é uma verdadeira mania para ele: em suas entrevistas da série “Democracia
na Teia”, por exemplo, há uma edição gigantesca do grande autor russo atrás de
entrevistador e entrevistado – mais do que isso, ele parece sempre pronto a citá-lo
a qualquer momento, com ou sem necessidade.
Eu raramente cito qualquer um desses escritores da turma do
Pondé. Do Dostoiévski, li “Crime e Castigo” quando adolescente, e “Os irmãos
Karamazov”, bem mais tarde. Gostei muito, mas não me marcaram. De Tolstói li mais
e gostei mais, mas raramente lembro dele. Machado de Assis é um gênio, claro,
mas aqui no Brasil prefiro Lima Barreto (acabei de ler “Recordações do escrivão
Isaías Caminha” pela terceira vez dia desses) e Dalton Trevisan. De Shakespeare
conheço muito pouco, embora tenha lido “Júlio César” ano passado e tenha amado.
Sobre Nelson Rodrigues eu comentei no meu “Verão de 54”: “para ser grande
literatura ainda falta um tanto para Nelson Rodrigues”. Bernanos eu conheci
recomendado pelo próprio Pondé, gostei muito, mas achei meio confuso.
Eu tenho uma turminha de escritores que cito sempre, também.
Lembro, por exemplo, que parei de ler as colunas de dois críticos de literatura
só porque falaram mal de “2666”, de Roberto Bolaño: um deles ainda teve o
desplante de escrever que outra obra do chileno, “Os detetives selvagens” – que
eu achei ruim – era “mais bem acabado” (ou alguma outra expressão sem sentido)
que “2666”.
De todo modo, minha turminha de escritores, fora os que já
citei – Lima Barreto, Dalton Trevisan, Roberto Bolaño – tem ainda Patrick
Modiano, Gabriel García Márquez, Marcel Proust, Karl Ove Knausgard, Honoré de Balzac,
Junichiro Tanizaki, Philip Roth, Thomas Mann, J.M.G. Le Clézio e mais alguns.
Tem um outro autor que está na minha turma e na do Pondé, mas ele não foi
citado – ainda.
Existe uma autora que acabou entrando na minha turma há uns poucos anos, a escritora e cantora Patti Smith. Em “O ano do macaco” ela conta de sua paixão avassaladora por “2666”, de Roberto Bolaño. Em “Devoção” ela fala de maneira extremamente carinhosa – como só ela consegue fazer – de Patrick Modiano e Simone Weil. Modiano e Bolaño admirados como devem ser! (A Simone Weil, cujas obras nunca li, deve ser muito boa também, haha.) Será que a turma de Patti Smith é parecida com a minha? Espero que sim.
De todo modo, por que a turma de Pondé é diferente da minha
e, quem sabe, da da Patti Smith também? Porque, acredito eu, como filósofo, ele
quer retirar algum ensinamento, quer “enxergar” algo por trás de uma obra literária.
Dostoiévski e o problema da existência. Machado de Assis e o ciúme. Shakespeare
e os sentimentos humanos. Nelson Rodrigues e a hipocrisia da classe média. Georges
Bernanos e a fé. Tolstói e... sei lá o que ele quer ver em Tolstói.
Já eu e, provavelmente, a Patti Smith, queremos nos deslumbrar com uma obra literária. Não há o que enxergar por trás de “2666”, não há nenhum ensinamento por trás desta maravilha. O livro é apenas isso – uma maravilha. [1]
Antes de terminar, comentei acima que existe um autor que
faz parte da minha turma e da do Pondé: o nome dele é Franz Kafka. Ele deve
admirar o grande autor tcheco pela crítica à burocracia, ou pelo retrato
simbólico do absurdo da existência, ou coisa que o valha. Eu sei que amo Kafka
pela imaginação e pela maravilhosa técnica de contar histórias malucas como se
estivesse fazendo um relatório de empresa de seguros.
[1] Algum
engraçadinho pode vir me questionar dizendo que o que está por trás das obras de
Balzac, Thomas Mann e Junichiro Tanizaki, da minha turma, sejam respectivamente
o dinheiro, a arte e o sexo. O que eu teria em minha defesa? Sei lá, hehe.
Foram férias boas, aquelas dos anos 80. Eu treinava natação mais ou menos até às dez da manhã e jogava futebol de salão até ao meio-dia. Depois do almoço, sentava numa cadeira de praia no meu quarto e lia até não poder mais. O meu autor preferido era o alemão Thomas Mann (1875-1955): a impressionante história de uma família burguesa (“Os Buddenbrooks”), discussões filosóficas num sanatório para tuberculosos (“A Montanha Mágica”), um compositor erudito que vende alma para o diabo para fazer obras perfeitas (“Doutor Fausto”), a impressionante história bíblica de José e seus irmãos contada em mais de mil páginas (“José e seus irmãos”), um monólogo interior de Goethe (“Carlota em Weimar”), contos espetaculares (“Mario e o mágico”). A decadência da nobreza, a ascensão da burguesia e o papel da Arte e do Artista na sociedade são seus principais temas. Li tudo dele em que consegui colocar as mãos - e não devo ter lido nada de Thomas Mann de 1990 para cá. (mais…)
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