abril 2021

“Greed”, de Erich von Stroheim
Cinema
“Greed”, de Erich von Stroheim
25 de abril de 2021 at 17:59 0
Poucos filmes têm uma história tão mítica e trágica quanto “Greed” (“Ouro e Maldição” no Brasil), lançado em 1924. O seu diretor, Erich von Stroheim, o considerava a sua melhor obra e dizia que os cortes que o estúdio promoveu no filme o feriram tanto profissional quanto pessoalmente. “Greed”, baseado no romance naturalista publicado em 1899 “McTeague”, do escritor americano Frank Norris, conta a história de John McTeague (Gibson Gowland), um trabalhador de minas que, após aprender o ofício, acaba trabalhando como dentista. Ele se casa com Tina Sieppe (ZaSu Pitts), prima de seu melhor amigo, Marcus Schouler (Jean Hersholt), e é a vitória dela numa loteria que acaba colocando a vida de todos de cabeça para baixo: Tina fica obcecada com o dinheiro, não gasta um centavo dele, e também não deixa o marido – um bom homem, mas limitado intelectualmente – gastá-lo (não à toa, o título do filme, “Greed”, é “avareza” em português). Acho que não precisa contar mais nada do enredo, para não estragar a surpresa. Stroheim apresentou a sua versão inicial de “Greed”, de oito horas de duração, para um grupo pequeno de jornalistas e conhecidos. Boa parte dos presentes saiu da sala de projeção dizendo que este era o “melhor filme de todos os tempos”. Depois disso começou o drama do pré-lançamento. A Goldwyn Company (antecessora da Metro-Goldwyn-Mayer), produtora do filme, obviamente não gostou da ideia de lançar um filme tão longo e pediu para Stroheim deixá-lo num tamanho aceitável. Ele fez os cortes que quis e diminuiu o filme para quatro horas, mas mesmo assim a produtora não gostou e pediu para o editor Joseph W. Farnham diminuí-lo ainda mais - e o filme acabou com as quase duas horas e meia atuais. Stroheim ficou furioso com o resultado final e disse que “Greed” “foi cortado por editor que não tinha nada na cabeça fora o chapéu”. Entre os trechos cortados de “Greed”, por exemplo, as histórias paralelas de dois casais vizinhos – um casal bom, outro mau - dos McTeague foram eliminadas inteiramente! A versão de “Greed” original de oito horas de duração tornou-se uma espécie de Santo Graal do cinema, com diversos comentários ao longo do tempo dizendo que a versão completa do filme tinha sido vista aqui e ali - Stroheim chegou a dizer que o ditador italiano Benito Mussolini tinha uma cópia -, mas não se encontrou nenhuma prova de que essa versão realmente exista em algum lugar. A Turner fez uma versão de quatro horas, juntando o roteiro original de Stroheim com trechos e fotos não aproveitados na versão comercial. Em sua espetacular biografia “Stroheim”, Arthur Lenning comenta que promoveu a reconstrução de outro filme de Stroheim também dilapidado, “Foolish Wives”, aumentando significativamente o tamanho da versão da produtora; na estreia da sua versão da película, “um dos grandes amantes de filmes silenciosos” chegou para Lenning e lhe disse: “grande trabalho, mas fico feliz que você não tenha encontrado ainda mais” trechos não aproveitados do filme. Realmente, a sensibilidade moderna tende a rejeitar filmes silenciosos, por mais geniais que eles sejam. Quanto a mim, já assisti ao filme três vezes (duas das quais descrevi aqui) e pretendo revê-lo algumas vezes ainda. A história contada por Stroheim é sórdida e fascinante em proporções iguais, e merece toda a fama que tem; só lamento que a versão a que assisti no YouTube não tem a parte final, filmada no Vale da Morte na Califórnia, tingida de amarelo como aquela do próprio Stroheim – de todo modo, trechos dessa versão amarelada podem ser vistos aqui. Mas eu concordo com Arthur Lenning quando ele diz que é um erro considerar – como por muito tempo foi a opinião geral da crítica – que Stroheim foi o diretor de somente um filme importante, “Greed”. Na verdade, o restante dos seus filmes tem o mesmo nível artístico - e ainda não tenho ideia de qual é o meu preferido entre eles.
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“Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico”, de Guilherme Fiuza
História
“Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico”, de Guilherme Fiuza
25 de abril de 2021 at 13:52 0
Todo o mundo já deve ter ouvido aquela teoria de que os “verdadeiros” grandes traficantes do Rio de Janeiro moram confortavelmente em apartamentos na Zona Sul carioca, não nos morros. Quando se lê o subtítulo de Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico, de Guilherme Fiuza (Editora Record, 336 páginas), pode-se pensar que estamos diante de um caso destes – ou seja, o de um traficante realmente grande com educação burguesa. Sinto decepcionar os partidários desta teoria da conspiração, mas a história contada neste excelente livro é um pouco diferente. Meu Nome Não é Johnny conta a história de João Guilherme Estrella, rapaz bem nascido que gosta de tocar músicas em seu violão e que cedo começou a se envolver no meio artístico. A partir da convivência com a “turma” vêm as primeiras experiências com drogas. Primeiro a maconha, depois o LSD e então a cocaína – que acaba viciando-o. Como necessita de cada vez maiores quantidades para consumo próprio, ele começa a vender pó (ainda em pequena escala) para arranjar dinheiro. Isto o faz entrar em contato com alguns traficantes e a coisa vai aumentando. Estrella arruma esquemas para traficar quantidades cada vez maiores diretamente da Bolívia: a cocaína que ele conseguia lá – apelidada de “Nelore Puro” – era a mais pura do mercado de drogas no Rio da época (final dos anos 80/início dos 90). Juntando o grande conhecimento da sociedade carioca que tem João Guilherme Estrella (ele sempre fora um sujeito extremamente sociável e simpático) com a qualidade insuperável de seu pó, é óbvio que o resultado só pode ser um. O rapaz da Zona Sul transforma-se em um grande atacadista de drogas, chegando a fazer viagens para Amsterdam para fazer grandes vendas do “Nelore Puro” na Europa). E, claro, neste tempo todo ele continua ingerindo quantidades fenomenais de cocaína. Mas se Estrella já passa a ser um grande traficante em termos de quantidade, em termos de violência ele não pode ser comparado aos chefões do morro. Impulsivo, pouco se importando com as conseqüências de seus atos, não só ele não tem segurança pessoal como sequer anda armado. Logo a Lei está atrás dele. Na primeira vez consegue se safar da polícia através de suborno. Na outra isto não é mais possível. É preso, recebendo uma condenação leve, em um grande momento da juíza que o condenou – pois ela, acertadamente, acreditava no caráter de João Guilherme Estrella. Mas nem por isto o sofrimento que o protagonista passa, tanto na cadeia quanto no manicômio judiciário, são pequenos. Todos estes maus momentos acabam ajudando o rapaz da Zona Sul a se redimir. Atualmente, ele trabalha como produtor musical, não trafica mais e está recuperado do vício da cocaína. Meu Nome Não é Johnny (o título é baseado na notícia do Jornal do Brasil; quando da prisão do traficante, o diário carioca escreveu que seu apelido era Johnny – o que nunca fora verdade) é uma obra extremamente bem escrita, em uma linguagem simples, direta e envolvente. É o tipo do livro difícil de parar de ler. Outra qualidade é que, em nenhum momento, o autor Guilherme Fiuza parece querer dar uma lição de moral aos leitores. Fiuza nem precisa disto, na verdade. A história fala por si. (Publicado no Mondo Bacana em 2008) (foto obtida no Posfácio)
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“O fim”, de Karl Ove Knausgård
História, Literatura
“O fim”, de Karl Ove Knausgård
18 de abril de 2021 at 13:37 0
Reconheço aqui que eu acessava o site da Companhia das Letras algumas vezes por mês para ver se finalmente tinha sido publicado em português o sexto e último volume da série de autoficção “Minha luta”, do norueguês Karl Ove Knausgård. Depois de uma longa espera, finalmente saiu “O fim” – título em português do livro tão aguardado, com tradução de Guilherme da Silva Braga –, e aí entendi por que o negócio demorou tanto (o anterior, chamado por aqui de “A descoberta da escrita”, tinha sido lançado por aqui em 2017): o sexto volume da série que catapultou Knausgård para o sucesso mundial tem 1054 páginas. Eu nem sei o tamanho da letra da edição impressa, já que eu li o livro no Kindle, mas tenho impressão, a partir de rápida folheada numa livraria, de que ela é pequena. Um romance realmente muito longo. Em “O fim” Knausgård dá muitos detalhes do medo que ele sentiu por ter apresentado fatos íntimos sobre diversas pessoas conhecidas nos romances anteriores da série, como a depressão da esposa e o processo que um tio ameaçou mover contra ele. Outro tema recorrente é a sua rotina como pai de três crianças, duas meninas e um menino, e a dificuldade da esposa em lidar com seu papel de mãe. Tudo isso com o estilo fascinante e ultradetalhado de Knausgård, que pode usar mais de cem páginas para descrever um jantar sem nunca parecer chato ou repetitivo. Mas “O fim” tem também um número enorme de páginas de teor ensaístico, de excelente qualidade aliás, nas quais se destacam dois temas: a análise de um pequeno poema do romeno, radicado na França, Emil Cioran, e a análise do livro “Minha luta” original, de Adolf Hitler, e do nazismo como um todo. Enfim, a leitura do ciclo “Minha luta” de Knausgård acabou. E eu tenho mais um livro dele aqui em casa, de nome “Winter”, mais recente e de outro ciclo chamado, na tradução em inglês, de “Seasons Quartet”. Será que eu o leio em inglês mesmo, arriscando a perder alguma coisa do sentido, ou fico entrando de novo no site da Companhia das Letras para ver se eles o publicam por aqui em português?
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Traduções de entrevistas de Morrissey
Música
Traduções de entrevistas de Morrissey
18 de abril de 2021 at 13:25 0
Quando do lançamento do extraordinário “You are the quarry” em 2004, Morrissey concedeu várias entrevistas, algumas das quais eu traduzi na época para o Mondo Bacana, e que estão relacionadas abaixo. *** GQ [EUA] [Sobre a formação dos Smiths] Eu não tinha absolutamente mais nada. E também era um chamado, porque instantaneamente teve sucesso e não requisitou um grande esforço. Preparação sim, esforço não. [Sobre o fim dos Smiths] Era um compromisso, porque para mim foi um enorme investimento, e então Johnny [Marr, guitarrista e parceiro de Morrissey nas composições] simplesmente disse: "Acabou-se". E não acho que ele entendeu o tamanho do investimento que fiz. [Sobre a volta dos Smiths] Eu estou cansado de perguntas sobre a volta dos Smiths, porque só existe uma maneira de responder a uma dada questão e eu sinto que dei a resposta há 112 anos. Mas as pessoas ainda me perguntam – e não entendo o porquê. [Sobre envelhecer] Eu simplesmente adoro isto. Quanto mais velho fico, melhor me sinto. Eu sou fascinado por pessoas com 80, 90 anos. Especialmente por aqueles que ainda estão criando e vivendo de uma maneira interessante. [Sobre David Bowie] Ele não é mais a pessoa que era. Ele não é mais David Bowie de jeito nenhum. Hoje ele dá às pessoas o que ele acha que as vai fazer felizes, o que faz com que elas bocejem. E, fazendo isto, ela não é relevante. Ele só foi relevante por acidente. *** Sonic [Suécia] [comentários do jornalista] (...) Não há nenhum artista que é amado de uma maneira tão sem reservas por seus fãs, nenhum outro artista que seja tão intimamente definido pelo ouvinte. Eu não sou um deles. Mas é fácil entendê-los. A relação de Morrissey com a música pop sempre foi seríssima. Com 13 anos, sempre que os New York Dolls, T.Rex ou David Bowie passavam por Manchester, ele costumava chegar muito mais cedo do que qualquer outra pessoa até mesmo imaginasse em chegar, para estar o mais próximo possível do palco. Tendo chegado ali, ele agarrava o cercado tão firmemente que "mesmo um guindaste industrial não poderia me mover". Ele se sentava para assistir a Top Of The Pops toda semana, escrevia quilos de cartas a todas as publicações que simplesmente não iriam entender nada, construiu seu próprio reino onde as principais figuras seriam Oscar Wilde, James Dean e Johnny Thunders. Todo seu enorme amor pela música pop foi canalizada para sua própria música. Deste modo, o primeiro single dos Smiths, "Hand In Glove", soa como um ultrajante ataque a um mundo que simplesmente não vai entender, utilizando a música como sua arma ("Eu vou lutar até a morte/ Se eles ousarem tocar em um fio de cabelo seu"). Morrissey nunca deixa de acentuar o fato de que ele é o último outsider. Ele parece se sentir terrivelmente bem – mas ele não vai, jamais, fazer parte do mesmo mundo que nós: "Minha posição nunca parece se modificar. Eu pareço existir em algum planeta solitário, no meu mundo privado. Eu não sou parte de nada. Eu não pareço ter os mesmos interesses de outros letristas, eu não invado o território alheio e ninguém invade o meu." Você está testando seus fãs trabalhando com Jerry Finn? Não, provavelmente eles não vão ver isto como uma boa idéia. Mas no fim das contas isto é problema meu. Se eu for tomar constantemente as idéias alheias em consideração, eu nunca faria mais nada. As pessoas sempre dizem: "Não, você não pode fazer isto", mas você não pode ouvir o que as outras pessoas dizem. E você não pode, definitivamente, ouvir seu próprio público, porque quando você faz isto você simplesmente se torna um deles. Eu não rezo a Deus para que eles apreciem o que eu faço... Na maior parte do tempo eles não gostam mesmo. Bem, pelo menos eles fingem que não gostam. Eles sempre querem parecer tão superiores e intelectuais. Nada diz melhor "que se estrepe a NME" que um longo solo de flauta. Você acha que isso soa ridículo? Todos deveriam seguir as regras do jogo? E uma flauta sempre é progressiva? Alguns diriam que não. [comentários do jornalista] Quando a imprensa britânica estava acusando Morrissey mais do que nunca, ele se encheu e se mudou para os Estados Unidos. E Los Angeles foi aonde ele teve a maior audiência da sua vida. Em 1992, ele bateu o recorde dos Beatles, esgotando os ingressos do Hollywood Bowl no menor tempo já registrado. Ele foi, estranhamente, acolhido pela audiência dos chicanos dos EUA – audiência que adora el Moz com a mesma intensidade que os pálidos britânicos tinham tido dez anos antes. Quem sabe eles sejam apenas apaixonados pelos topetes rockabilly ou quem sabe eles apenas encontraram um cantor pop que canta sobre chorar sobre o travesseiro da mesma maneira que os cantores de baladas mexicanas fazem. Mas é provável que o principal é que as letras de Morrissey sobre ser um outsider são universais. Quão bem você se adaptou aos Estados Unidos, realmente? Existem tantas coisas que são muito importunas e as pessoas geralmente são muito importunas. Mas a paisagem é fabulosa; eu costumava dar uma volta com meu Jaguar e aproveitar a linda paisagem. Além disso, eu não tenho que ver uma única pessoa por milhares de milhas – o que, é claro, é muito prazeroso. As letras são muito diretas, pelo menos em "America Is Not The World" Sim, sem nuances, sem ambigüidade nenhuma. Eu não me importei muito em ser sutil agora. Simplesmente não há tempo para isto. E os Estados Unidos da América não é o mundo. Se você se opuser a isto você vai aparecer apenas idiota. Qual o objetivo em cantar sobre coisas óbvias? Bem, ao menos você não corre o risco de que eles não entendam o que você está cantando. Como nós podemos interpretar todas as suas referências a "andar ao léu" no álbum? É algo em que você está engajado? Ah sim. É realmente uma grande parte da minha vida, um hobby sem par. É algo que eu não posso deixar de fazer, especialmente quando estou num hotel. Aqui está o título do seu artigo: "Morrissey, eu amo andar ao léu", em negrito. Você já cantou, há vinte anos, que você "gostaria de deixar suas calças para a rainha", em “Nowhere Fast”, do álbum Meat Is Murder. Mmm... é verdade... Ela nem soube disso, eu temo. Os concertos de Morrissey usualmente tendem a ser revivals, onde a audiência tenta subir no palco apenas para tocar seu salvador. Não há surpresa que você não queira dividir esta experiência com stage divers fãs de Linkin Park. Eu acho que é tempo dos fãs ficarem chocados, será bom para eles. Pode ser difícil de acreditar, mas a explicação simples do porquê eu não participava de festivais antes deste ano é que esta é a primeira vez que me oferecem esta oportunidade. Minha experiência em festivais é extremamente limitada, eu não tenho idéia do que esperar. É tão mau como você diz? E este festival sueco... Tem uma boa reputação? Muitos fãs acham que não devem dividir você com pessoas que simplesmente não sabem nada sobre você. Não, mas eles podem começar a aprender. Seria bom ter mais fãs. Você está tentando converter pessoas? Sim, eu gostaria, qualquer um é OK. Eu ouvi tantas histórias estranhas sobre pessoas que eram fanáticas por metal e então foram do metal para mim. É muito fascinante. No novo álbum você canta "os adolescentes que te amam/ Vão acordar/ Bocejar e te matar". É este o tipo de fãs que você quer? Eu os entendo em parte. Mas sim, eu os quero, eles são muito críticos e me mantém alerta. Tantas pessoas me rejeitaram de novo e de novo. E ainda – depois de tanto tempo – existem tantas pessoas que querem falar comigo. Tudo se move em círculos... Ao menos quando você tem sorte. Alguma coisa definitivamente mudou nos últimos cinco anos e provavelmente isto dependeu do quão horrível a música pop tem sido. "Ídolos pop" têm estado em todos os lugares e um dia as pessoas ficam cansadas de música que não significa nada. Você acha que seus fãs querem que você atraia milhões de novos ouvintes? Agora eles querem. Porque os anos recentes foram tão frustrantes para eles quanto para mim. Eu espero e acredito que agora é tempo para vingança. Não, bem, não vingança... E sim para algo bem mais sério que vingança. O que é mais sério que vingança? Assassinato, ha ha ha! Eu acho que eles me querem assassinado pela polícia. [comentários do jornalista] Ter uma audiência tão extática pode ser algo de uma natureza dúbia. Morrissey é, é claro, o último fracasso do mercado. Quanto menos fãs ele tem, o mais difícil é para quem é de fora ser igualmente aficionado – o número de pessoas que escreve seu nome com um "S" chegou a um nível criticamente baixo. Sempre há alguém (com um nariz grande) [nota: referência à letra de “Cemetry Gates”] que sabe mais sobre Morrissey do que você jamais saberá. Para as pessoas como eu, cuja vida foi salva por Moz em apenas poucas ocasiões, não se admite camaradagem. Bem, a maior parte das pessoas nunca salvou qualquer vida, então uma vez em um longo período já é um bom placar. Eu nunca me sinto tão sozinho quanto quando escuto Smiths junto com pessoas que são fãs extremamente dedicados dos Smiths. Isto é muito interessante de ouvir. Você gosta desta sensação? Eu me sinto como se eu não pertencesse àquelas pessoas que não pertencem a lugar nenhum. Mas o negócio é que música é uma coisa muito privada. Eu posso escutar música pop boba e isto tem seu lugar na minha vida. Mas música que é privada é intensamente privada. Quando a música se transformou em algo tão importante na sua vida? Isto começou há muito tempo. Quando criança eu não tinha nada mais e quando adulto também não. Isto nunca foi realmente trocado por nada. Todos os meus momentos felizes foram quando eu vi bandas ao vivo, ou comprando discos. [comentários do jornalista] É difícil não falar em justiça Bíblica no fato de que o mundo está pronto para se atirar aos pés do Morrissey 2004 em um tempo em que as gravadoras gastaram todo o seu dinheiro em grupos de um só sucesso e pálidas cópias de coisas que ouvimos muito tempo atrás. Cada novo álbum de Morrissey, cada show com ingressos esgotados, cada capa de revista mostrando este homem é uma pequena vitória para todos aqueles que acreditam que a música pop pode mudar vidas. Mark Simpson, que recusou-se a ser entrevistado neste artigo dizendo que "Morrissey é um deus ciumento", escreveu em sua intrigante biografia "Saint Morrissey" que houve um erro no sistema, uma frágil abertura nos anos 80 que foi transpassada pelo último fã de música pop, transformando-o no último ídolo pop. Isto pode soar uma supersimplificação, mas não existe necessidade em se analisar o mais analisado ícone pop na Terra mais do que isso – o restante o próprio Morrissey deve explicar em sua autobiografia a ser publicada. Você lê livros sobre você? Não! Eu nunca os leio, mas às vezes chego a ler alguns pequenos trechos. Todos estes livros foram escritos por pessoas que nunca me encontraram, então o que eles podem saber? E neste momento você está ocupado em escrever sua autobiografia... Ela vai ser longa? Hahaha... Vai ser vulcânica! Escrever tem sido tão excitante quanto fazer música neste momento. Há tantas coisas que necessitam ser corrigidas, eu tenho estado nas mãos da imprensa e tantas coisas absurdas sobre mim têm sido aceitas como verdade. Esta é a minha vez. Você deve esperar nomes, fotos e impressões digitais. Tudo deve ser revelado. *** Les Inrockuptibles [França] Como você se sente a respeito do fato de que Tony Blair tem dado medalhas aos músicos ingleses? Eu me lembro do modo como Mick Jagger mudou o mundo, o que ele representou para uma geração lutando contra as instituições, a polícia, a justiça... Como ele pode ser condecorado cavalheiro 30 anos depois? David Bowie teve a dignidade de recusar isto – o que me surpreende, vindo de alguém que quer ser adorado por todo o mundo. Eu duvido que algum dia a rainha me convide para tomar chá. No que me concerne, o que me pediram – e eu aceitei – foi organizar o festival Meltdown. Uma oportunidade de colocar juntos de novo os últimos três New York Dolls e convidar Sparks, Sacha Distel, Jane Birkin, Nancy Sinatra, Franz Ferdinand, Ordinary Boys, Linder, James Maker, Loudon Wainwright III, Buffy Sainte-Marie, Damien Dempsey, Libertines, o ator Alan Bennett. As outras honras não são para mim. Eu sou e vou continuar sendo um pária. Você mora em Los Angeles. A Inglaterra foi te matando aos poucos? Alguém na Inglaterra teria me matado, certamente. Além do mais, a Inglaterra que eu amava tanto, sobre a qual eu cantei tanto, mesmo quando estava decaindo, começou a desaparecer. Poderia ter sido Gibraltar ou Marrocos, mas foi Los Angeles, uma cidade pela qual eu não sinto um amor louco. Eu pensei que eu ficaria lá um ano, de maneira a acalmar as coisas no Inglaterra. Mas já se passaram seis anos. É incrível como o tempo passa rápido quando você está adormecido... (risos] No que você se transformaria, se estivesse na Inglaterra? Um pária. Eu seria enterrado mais e mais. Eu tinha crescido com a imprensa musical, formado pelos singles pop, mas se tornou impossível para mim abrir os jornais ou ligar o rádio. Em 1992 você subiu ao palco com a bandeira inglesa e foi imediatamente acusado de racismo. Anos mais tarde, a mesma bandeira se transformou no emblema do britpop... Se tudo isto não tivesse sido tão deprimente e sério, poderia ter achado esta situação irônica. Eu fui vítima de ataques cruéis demais para achar graça disto. Recusei, naquele tempo, a entrar no debate, por que isto me pareceu odioso. Porque, anos mais tarde, as pessoas só precisavam mostrar esta bandeira para ter sucesso imediato nos jornais... Um geração inteira de bandas sem canções e sem experiência de shows automaticamente virou hits. Então senti que a máquina ficou louca, que o nível era baixo, que a música pop tinha perdido suas defesas e estava aceitando qualquer pessoa. Você cresceu com vinil. Como você se sente com a desmaterialização da música? Eu nunca baixei uma canção da internet. Foi-me oferecido um iPod, e eu não consegui nem abrir a caixa. Acho isto chato: música merece esforço. Como alguém pode amar um disco que chega assim tão fácil? Quando eu era garoto, acessar a música que eu amava era difícil: não estava no rádio nem na TV... Mesmo que a música fosse meu único amor, era uma luta permanente tê-la entre as mãos. Sem os discos e seus mistérios, eu jamais seria a pessoa que sou hoje. Eles me moldaram, cada single que eu tenho é ligado a um sentimento especial. Eu os tocava por horas, olhando para o diamante aterrissando no disco com fascinação. Eu ia para o subúrbio de ônibus, e, uma vez nele, olhava as capas, decorando-as... Eu passava tardes nas lojas de discos olhando os créditos de cada álbum. Tudo é muito fácil agora: escutar música, criar música, tornar-se uma estrela... Qualquer criança de 12 anos com um computador é capaz de criar música – tecnicamente, pelo menos. Programas como Pop Idol [Nota do editor: o equivalente britânico ao ianque American Idol e ao brasileiro Fama] têm só um objetivo: humilhar a música, mostrando-a como uma coisa frívola, inepta, inofensiva. Se você tivesse ficado na Inglaterra, você teria se tornado prisioneiro da persona Morrissey? Mesmo em Bangkok eu seria Morrissey. Eu não posso fazer nada a respeito, eu não atuo. Nunca me senti prisioneiro de qualquer caricatura, eu me sinto livre. A Califórnia me permitiu descobrir como é a vida lá fora. Eu me tornei mais expansivo graças ao sol, mais "físico" também. Na Inglaterra, o clima me força a ficar sozinho, entre quatro paredes. Enquanto que na Califórnia eu posso surfar com meu gato... [risos] Por exemplo, eu descobri o prazer de dirigir. Na Inglaterra, andar sem direção não existe: você tem de andar de um ponto até outro, deve existir um destino. E não é muito prazeroso dirigir sob a chuva. Na Califórnia, eu posso sair sem um objetivo, visitar o México, ficar horas seguindo a costa, passear pelos bairros latinos. Dirigir transformou-se, para mim, em uma paixão real, eu escuto música enquanto limpo minha mente todos os dias. No momento, ando em um Jaguar. Você escuta rádio? Eu não sou capaz disso, porque cada vez que eu escuto uma música que eu não gosto – o que acontece freqüentemente – eu tenho de mudar a estação. Seja na vida ou em uma música, eu não posso me forçar a ter mais sofrimento... [risos] Por exemplo, o hip hop permanece para mim um completo mistério. Eu sonho com explicações. Quando você sente falta da Inglaterra? Eu gostaria de andar, como quando eu estava em Manchester ou Londres, mas é uma coisa suspeita para se fazer em LA. Não se espera encontrar pessoas nas ruas. Eu sinto falta dos pubs, supermercados, até mesmo do pão; é bem difícil encontrar as comidas vegetarianas que eu gosto tanto. Graças a Deus, eu moro perto de uma livraria, Book Soup, onde eu posso sentir o cheiro gostoso da cultura. Exceto por isto, eu realmente não saio. Não conheço meus vizinhos [Johnny Depp por exemplo]. Não posso entrar em conversas simples sobre chuva ou tempo bom. As coisas não mudaram: sempre me sinto sozinho, isolado. Até mesmo me sinto mais assim com 44 anos do que quando eu tinha 20 ou 30. Aprendi a cuidar de mim, a apreciar minha própria companhia. Entendi que não tem assim tanta gente interessante aí fora, então eu prefiro ficar em casa, comigo... [risos]... Eu sou meu melhor amigo. Eu vou para cama comigo, eu acordo comigo, eu e eu mesmo [a quase intraduzível expressão me and myself] nunca vamos nos divorciar e temos bons momentos juntos. Tenho sorte. Eu, espiritualmente, odeio tudo o que me coloca longe de mim mesmo, do que eu sempre senti. Mas eu tento ser um artista. Poderia, sem dúvida, simplificar minha vida, mas eu tento ser um artista. E ser um não é um trabalho de tempo parcial: eu tenho de ser um artista 24 horas por dia. Sacrifiquei tudo por isto: prazer, amor... Minha vida é só um ritual de sacrifício: eu vivo no fogo... [risos] Sim, mas você mantém uma linha direita, muito razoável. Você nunca deseja ter sexo, drogas e álcool sem limites? Eu gostaria às vezes de ficar louco, sair de mim mesmo. Mas tenho muitos princípios, sou obcecado com minha integridade, minhas reações... Nunca achei muito elegante cair no chão vomitando... Cuido da minha saúde. Em "I'm Not Sorry" eu digo: "Tem um homem selvagem na minha cabeça". Eu entendo este homem selvagem. Mas, irremediavelmente, eu vou para cama cedo todos os dias sem nenhuma história. Esta é a minha danação. Totalmente sozinho? Sou mortalmente chato. Eu nunca precisei de sexo e hoje ainda menos do que quando tinha 20 anos. Não sei que tipo de brincadeira é esta. Na minha idade... Quem sabe isto me venha mais tarde, quando estiver enrugado e acabado, mas eu tenho de tentar isto. E não tenho de esconder nada: não sou um cara que esconde uma vida sexual secreta. Ela não existe, é tudo. Tampouco não recebo qualquer proposta. Você nunca mencionou a homossexualidade mais claramente – especialmente as lésbicas – do que em “All The Lazy Dykes”... Quem sabe isto seja porque eu seja lésbica... Esta música é um hino para as lésbicas que não sabem que o são, um chamado a todas as mulheres presas em seus casamentos, em seus hábitos. Digo a elas para ir ao Palms, um clube lésbico em Santa Monica Boulevard, um lugar bacana, onde elas poderiam ser felizes. Quando eu era mais jovem em Manchester, havia também clubes gays, como Berlin ou Legends, lugares extremamente glam-rock... Nunca me preocupei em ir lá. Meu negócio são os concertos... Quando você era mais novo, você era o tipo do rapaz que ficava próximo da pista de danças, fazendo piadas cruéis sobre quem estava dançando, mas secretamente querendo ser um deles? Sim, eu era, morria de ciúmes. Queria desesperadamente dançar, ser como os outros. Mas não podia me liberar, era consciente demais da minha falta de jeito. Eu me olhava enquanto dançava. Deveria ter bebido para esquecer tudo isto. Mas estaria gordo hoje. Como os Smiths funcionavam? Durante as turnês, os outros procuravam por mulheres ou drogas? Pode parecer estranho para você, mas eu, honestamente, nunca vi drogas em camarins. Soube de tudo isto pela imprensa. O que é bem desagradável para mim. Eles poderiam ter oferecido para mim, seria legal juntar-se ao clube... [risos] Eles deviam pensar que eu era frágil demais para isto, ficavam atentos para não falar nada na minha frente... Bem, eu estava ocupado, queimando minhas asas. Eu tinha de ficar sóbrio e consciente, para manter a unidade dos Smiths, para defender orgulhosamente nossa diferença. Você deu tudo para criar e manter os Smiths. Esta banda era a sua última chance? Exato. Por isto eu fiquei obcecado com os Smiths. Porque eu abandonei tudo por causa disto, dei tudo o que eu tinha, toda minha energia e alma. Era isto ou nada. [Sobre a longa época sem contrato com gravadoras entre o lançamento de Maladjusted e You Are The Quarry] Você achou que era o fim? Durante aqueles sete horríveis anos que se seguiram a Maladjusted, eu sempre mantive um pouco de esperança. Passei por situações humilhantes durante este tempo. Encontros nos quais as pessoas diziam: "nós gostamos de sua voz, mas sua banda é péssima" ou "nós tivemos uma grande idéia: você vai gravar com o Radiohead". Logo percebi que Hollywood é só uma fábrica onde as promessas não são sérias. Eu me transformei em uma espécie de troféu que era interessante de ser mostrado em restaurantes da moda, mas só. Eu freqüentemente chegava em casa com uma depressão profunda. Mas eu tive sorte quando achei uma pequena gravadora, a Sanctuary. Quando assinei o contrato, eles me ofereceram uma guitarra que pertenceu a Johnny Thunders quando ele estava nos New York Dolls: a Vox Teardrop branca. Quando comecei a gravar, me mandaram uma incrível cesta de frutas. Pela primeira vez, uma gravadora queria ser legal comigo. Você vai publicar um livro um dia? Eu já me sinto um escritor. Apenas um escritor cantando suas histórias. O que é difícil, já que uma parte inteira da vida tem de caber em uma canção de três minutos. Estou condenado a não escrever demais. Para isto, vai existir minha autobiografia... Cada canção conta uma história. E eu escrevi centenas delas. Nunca me senti preso por este modo de escrever. Eu me sentiria assim se fosse um entregador de leite. *** Mojo Morrissey está doente. Segundo suas próprias estimativas, ele está doente com o som da própria voz. Em uma suíte do Hotel Dorchester em Londres, ele pede desculpas à Mojo pelo que a revista está prestes a receber. Eu te previno que eu estou no estágio de zumbi. Eu simplesmente sento aqui, meus lábios estão se mexendo, posso ouvir o som das palavras vindo de algum lugar e então eu percebo que quem as está formando sou eu. Gostaria de ser capaz de ficar atrás de mim ou do meu próprio lado e então gritar comigo mesmo! A coisa chata é que isto acontece porque você acabou de sofrer para fazer um álbum do qual você está terrivelmente orgulhoso, e então as pessoas assumem que você tem respostas para tudo e que você pode explicar tudo com uma “fluência fantástica”. Eu tenho sido solicitado, digamos, a falar excessivamente e, infelizmente, para mim entrevistas acabam sempre virando intensas auto-análises, extremamente pessoais – o que realmente me esgota. Eu prezo intensamente, na verdade, a minha privacidade. O que significa que fazer verdadeiros malabarismos em entrevistas reveladoras é muito, muito difícil para mim. Por que, para ser honesto, eu preferia não dizer nada. Eu acharia melhor deixar a música falar por si mesma e que ela fizesse o que fosse possível. Mas eu tentei isto tantas vezes e nada aconteceu. Tudo acaba desaparecendo. Mas a gravadora, agora, quer que eu faça mais coisas ainda, e simplesmente não sei se posso. Quer dizer, não sou a Britney. Então por que você está aqui? Por que está fazendo isto? Isto é cem por cento um chamado, na verdade. Porque, infelizmente, eu não existo em nenhuma outra parte. [Comentários do jornalista:] Para ele, a importância de ser Morrissey é assegurar que ninguém sabe realmente quem ele é ou o que ele faz (e com quem). O que é, lógico, uma das razões de seu persistente fascínio. No início dos Smiths, ele contou que "Eu não sou o homem que você pensa que eu sou". E, vinte anos depois, o objetivo de despistar atrás destas palavras continua verdadeiro. Não há ninguém neste planeta que ache que eu seja OK. As pessoas são extremamente a favor ou extremamente contra. Eu não sou o tipo de pessoa que passa desapercebida. Por que você tem tantos inimigos? Eu acho que é porque eu sou uma pessoa forte, que não liga para o que os outros dizem. E eu não peço ajuda. Por isso as pessoas não têm piedade de mim. [O juiz Weeks] Fez um julgamento incorreto, dando direito ao [ex-baterista dos Smiths, Mike] Joyce de receber 1,25 milhão de libras, assegurando que ele tinha 25% dos direitos. Mas não decidiu como Joyce receberia este dinheiro. E, em conseqüência de Joyce nunca ter tido um contrato, nenhuma das partes vai lhe dar dinheiro porque ele nunca esteve sob a proteção de um contrato. Então, a cada vez que eu venho tocar na Inglaterra, Joyce tenta emitir ordens judiciais para me tirar dinheiro. Ele vai continuar isso pelo resto da vida, uma peste para todo o mundo que está na minha cola. Isto o define agora, é o que é a sua vida. Isto lhe permite continuar e ser parte da minha história. Ele se tornou uma farsa completa e só há uma vítima nesta história, que sou eu. Como você chegou a esta conclusão? Só por que o juiz não gostou de você? Ele disse muito a respeito. Ele disse aquele tanto, que foi o suficiente [nota: o juiz chamou Morrissey de “isolado, truculento e auto-suficiente”, conforme o Bacana mostrou aqui]. Isto é, um juiz tem direito de não gostar de mim, mas um juiz não tem direito de ignorar os fatos e ignorar o que é óbvio. O juiz não deve partir para o julgamento pessoal. Por que eu posso muito bem ser uma pessoa antipática, mas isto não significa que eu não seja confiável na corte. Obviamente o juiz estava se vingando de todas as coisas que eu sempre disse sobre Thatcher ou sobre a Rainha ou caça às raposas. Porque o juiz é obviamente um lorde e sempre, é lógico, há um lado privado neste tipo de coisa. Você ainda fala com Johnny Marr? Nós conversamos no último verão um pouco. Em termos realmente amistosos. Mas é muito, muito difícil por causa do problema judicial, que é um monstro enorme que segue adiante e que é muito detalhado. Mas o legado dos Smiths é pavoroso. Quer dizer, eu acho que é o pior legado de qualquer grupo na história da música. A história toda é tão negra e complicada que estou convencido que ela só vai terminar em... assassinato. E você está falando com o cadáver em potencial (risos)! Estou falando sério. Chegou neste estágio. Quer dizer, quem é que disse Viva Hate? Você sentiu algum preconceito na Inglaterra por suas origens irlandesas? Não particularmente. Na escola eu era chamado de Paddy (alcunha dada aos irlandeses), o que não era considerada uma forma amistosa de chamar os outros. Eu não entendo o porquê, já que é uma bela palavra e uma boa coisa para ser. Mas é claro que os ingleses riem de todos e ridicularizam todos. O que é bem divertido às vezes. Mas você, sendo escocês, recebeu alguma carga de racismo aqui? Só o trivial. Então não sentiu mesmo o racismo? Nada que machucasse, portanto... Eu não fui atacado fisicamente. Mas se eu fosse um negro escocês eu não teria tido tanta sorte. Sim. Mmmmm... Muito do nacionalismo escocês é devido à política do ressentimento. Contra a Inglaterra? Sim. Nos anos 70 se percebeu que certos recursos estavam sendo sugados – o que foi literalmente a verdade no caso do óleo. Você poderia, tão logicamente quanto, desprezar as multinacionais americanas por causa disso. O que nós fazemos... Mas a Inglaterra também tem sido brutalizada, e é brutalizada. Então por que as pessoas continuam levando a sério o nacionalismo, se ele é tão problemático? Por que as pessoas querem se sentir orgulhosas, o que quer que a nacionalidade signifique? Porque é o lugar onde você nasceu, onde vive e onde continua a viver. Onde você construiu sua vida. E é inconveniente sentir vergonha disso. Quer dizer, todos nós gostamos de nos sentir em um lugar razoavelmente decente. E todos nós gostamos de sentir orgulho, se pudermos. Mas então, infelizmente, há a monarquia. Mas talvez não por muito tempo. Sempre o otimista. Sempre o sonhador (risos). Embora eu goste de voltar para a Inglaterra, andar nas ruas e encontrar as pessoas, não imagino um tempo no qual eu volte em definitivo para a Inglaterra numa boa. Eu deixo a decisão para o destino. Eu sempre vou seguir o destino, seja lá o que ele me traga. Há uma frase – tenho 92% de certeza que foi dita pelo escritor Thomas Mann – que diz que você nunca pode voltar para casa. Cada segundo da vida diz respeito ao tempo e à atmosfera presentes. E você acha que o passado é o lugar para o qual você pode retornar, mas não é. Mesmo assim, eles dizem – não é mesmo? – que nunca é tarde demais para se ter uma infância feliz. Mas eu acho que você pode ter isto sem voltar para lugar nenhum. Você pode ter sua infância em outro lugar. Nunca é tarde demais para arrumar todos aqueles pesadelos em sua mente. Sobre o que é tudo isto, Morrissey? O que faz você seguir adiante? Bem, eu possivelmente não sou diferente de ninguém (ele ri e depois suspira)! Eu gostaria de não ter rido quando disse aquilo. Mas a vida, esta vida estranha, é simplesmente algo que você tem de atravessar de seu modo para ir a outro lugar. É simplesmente algo que você tem que se deixar levar. E nós simplesmente esperamos que em algum lugar alguma coisa realmente excitante ocorra conosco. A maioria das pessoas procura um romance e isto é o que realmente mantém as pessoas seguindo adiante. E você não está procurando um romance? Mmmm.... Err... Bem, não é a coisa que me mantém seguindo adiante, a esperança de ter um. Não. Não sou tão bobo. E eu sinto romance em objetos inanimados (risos)! Como carpetes, lâmpadas... Você finalmente quer ser amado? Bem, eu gostaria que gostassem de mim, tanto quanto. Mas eu vou ficar com o amor, se isto for tudo o que me ofertarem. Você tem algum conselho para me dar? Be yourself, free yourself (“Seja você mesmo, se liberte" – trecho da letra da música “All The Lazy Dykes, do mais recente disco de Morrissey, You Are The Quarry) (Dá uma risadinha) Eu vou dar uma chance a isto. *** NME [Entrevista publicada em edição lançada antes da edição 2004 de Glastonbury, realizada no último fim de semana de junho] Você está ansioso para se apresentar no festival de Glastonbury? Esta é a primeira vez que eu me aventuro nessa coisa de festival. Nós tocamos em um festival nos confins distantes da Suíça e foi pavoroso, e tocamos em outro em algum lugar por aí. Então isto tende a ser um desastre completo. Então você nunca tocou em Glastonbury? Há 21 anos. Tomara que o fornecimento tenha mudado, mas você nunca sabe. Quais são as suas memórias disso? Pedi para ir ao banheiro e me mostraram um buraco no chão. Eu pensei, "isto não é para mim". Você vai chegar cedo e ficar o fim-de-semana lá? Sim, eu vou direto para a grama e então... Vou me rastejar até uma barraca. Michael Stipe diz que quando toca em Glastonbury ele anda pelo local no meio do público sem camisa e ninguém o reconhece. Sim, o público o reconhece mas, como ele está sem camisa, ninguém quer chegar perto. Isto foi uma piada. Você deveria tentar isso. Michael é extremamente simpático. De camisa. Não, é algo que eu deveria tentar. Mesmo! Eu sou inseguro demais. *** Index [Morrissey foi entrevistado para a Index por James Murphy e Tim Goldsworthy, co-fundadores da jovem e crescentemente aclamada gravadora DFA.] James: Você ia a muitos shows quando criança? Eu comecei a ir a shows sozinho e muito cedo. Eu amava e ainda amo Velvet Underground. Eu vi Lou Reed em turnê antes de seu primeiro álbum quando eu tinha 12 anos. James: T.Rex e Roxy Music eram realmente anárquicos, mas sua música eram tão bonitas. As bandas preferidas de minha mãe são Johnny Mathis e Roxy Music. Isto fala muito sobre eles. E eu vi Bowie em 1972, na turnê de Starman. James: 1972 foi mesmo um ano para você! Realmente foi. Eu vi as coisas certas no tempo certo. Mas não há estrelas pop hoje como Bowie era então. Você precisa lembrar a idade dele: tinha só 23 anos. Marc Bolan também. Eu não acho que exista ninguém como ele. James: Eu não sei se entendi perfeitamente suas letras quando eu era jovem. Em que grau suas músicas são governadas pela ironia? Bem, eu acho que o humor faz parte, mas em toda a minha vida eu acreditei que eu sou uma pessoa real. Quando algumas pessoas chegam no palco, elas deixam de ser aquilo que elas são nas suas vidas. Mas, realmente, não há artifícios em mim! É tudo verdade. Tim: Talvez seja por isso que você consegue escrever músicas pop com tanto conteúdo e profundidade. Bem, eu quero usar a música pop para dizer alguma coisa inteligente e memorável. Isto era muito pouco comum quando eu comecei. Músicos que se consideravam intelectuais não esperavam ser populares, então eles faziam músicas que não poderiam tocar no rádio. James: Foi uma surpresa quando você se percebeu massivamente relevante? Bem, os Smiths nunca tocaram no rádio durante o dia. James: Mesmo assim... Sim, suponho que fôssemos, sim. James: Você estava nos programas de John Peel e de Janice Long. É isto a que eu estava me referindo. Claro, eram outros tempos. As estações de rádio estavam tocando estes ultrapop caros, enquanto nós tínhamos um som um pouco áspero. Eu acho que os programadores tinham uma idéia bem estabelecida do que soava profissional e do que soava amador. E os Smiths soavam amadores. James: E o que pensavam dos Smiths no começo da carreira? Nós éramos considerados detestáveis, esnobes, rudes, estúpidos, depressivos e sarcásticos. James: Você acha que vocês eram mal-interpretados. De jeito nenhum... (risos) Tim: O que você procura em um produtor? É importante ser apto a falar abertamente sem medir as palavras. E eu não sou o tipo de pessoa que fica vagueando em estúdios e jams. (...) É importante para o produtor entender que eu não sou um cantor técnico. Mas não sou fastidioso, não perco um tempo muito grande fazendo takes atrás de takes. James: E você continua fazendo discos que outras pessoas querem ouvir. Por algum acidente ou sorte, muitas pessoas gostam da minha música. Muitas pessoas querem falar sobre isto e falar comigo. Mas eu nunca, nem remotamente, tentei cortejar a imprensa. James: Alguma vez já pensou que deveria fazer isso? Não, moralmente eu não poderia fazer isto James: Mas o hype cria artistas que vendem milhões e milhões de cópias. Eles estão atingindo as pessoas não-pensantes, que só vão comprar CDs que são familiares a eles. E o que elas estão comprando é o retrato que elas se lembram de ter visto. Quando eu vejo um gigantesco vendedor de discos quando estou dirigindo no Sunset Boulevard, eu instantaneamente me afasto. James: Você ainda vive em Los Angeles? Eu ouvi que você se mudou para lá no início dos anos 90. Sim. Eu sei o que você vai dizer mesmo antes de você dizê-lo. E você está absolutamente certo. James: Que lá é um lugar esquisito? Sim. As pessoas sempre dizem que é um lugar muito peculiar, e eu concordo. Mas tem boas qualidades. Tem muito glamour visualmente, o que sempre é convidativo. Em LA você pode escolher quais elementos da vida da cidade você quer tomar parte, enquanto que em Nova York você não tem escolha, realmente. Eu fujo de praticamente tudo. Eu acho que a idéia toda de celebridade é terrivelmente embaraçosa. James: Mas Los Angeles é um lugar enormemente embaraçoso, onde ser celebridade vale mais do que tudo. É terrível. As opiniões das celebridades sobre todos os assuntos são levadas em conta, mesmo quando elas não têm qualquer ponto de vista a respeito.
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“Cassino Hotel”, de André Takeda
Literatura
“Cassino Hotel”, de André Takeda
15 de abril de 2021 at 00:48 0
João Pedro é um guitarrista que fez muito sucesso, nos anos 80, com a banda gaúcha Gol. Depois da dissolução do grupo, passou a sobreviver como músico acompanhante de vários cantores de quem antes "falara mal em festas promovidas por socialites que faziam de tudo para passar de modernas". Quando Cassino Hotel, o segundo romance de André Takeda (Editora Rocco, 196 páginas), começa, ele é o guitarrista do conjunto de Mel X – nome artístico da cantora pop Melissa, uma menina recém-saída da adolescência, filha de um cantor sertanejo de sucesso (alguém aí pensou em Sandy ou Wanessa Camargo?). O complicador de tudo vem agora: João Pedro mantem um tórrido caso de amor com Mel X e o pai dela não gosta nada da história (alguém aí pensou nos pais de Sandy ou Wanessa Camargo?), principalmente devido ao passado de excessos do guitarrista. Pressionado pelo pai da cantora para que abandone o romance com Melissa, João Pedro toma uma decisão radical. Foge de São Paulo, onde participaria de um show dali a alguns dias, para a praia do Cassino, no litoral gaúcho – "o mais feio de toda a costa brasileira". E é lá, no Cassino Hotel, que João Pedro, com enormes dificuldades pessoais, começa a enfrentar os problemas do passado. Isto por que no hotel estão hospedados Letícia, a namorada que abandonara quando ela não quis se mudar para São Paulo com ele; seu ex-melhor amigo Mateus, agora casado com a mesma Letícia; e, principalmente, o seu pai, com quem o guitarrista havia perdido totalmente o contato – a família nunca se recuperara totalmente da perda de Cibele, irmã de João Pedro, quando ambos ainda eram crianças. Escrito em primeira pessoa, o livro é uma espécie de catarse para João Pedro – que, sintomaticamente, faz aniversário de trinta anos na ocasião. Voltando a ter contato com pessoas fundamentais do seu passado, o guitarrista é obrigado a enfrentar o fato de que sempre preferira escapar dos problemas a enfrentá-los: por isso a fuga nas drogas e no álcool, os quais [antes da parada definitiva, aos 27 anos] quase tinham acabado com sua vida. Passando por avanços e retrocessos, coragens e covardias, os diferentes estados de espírito de João Pedro são apresentados para o leitor. Mas, apesar de tanta tensão e insegurança, o livro termina esperançoso. Cassino Hotel é uma obra intensa, profundamente emocional e bem escrita- você a lê praticamente de um fôlego. Alguns trechos nos quais Takeda fala com o leitor [por exemplo, quando ele diz lá pelas tantas: "Você é capaz de ler? Você é capaz de decifrar? Você é capaz de me aceitar? Sem preconceitos, por favor"] parecem perfeitamente dispensáveis. E parte do Apêndice 2, onde ele escreve que o romance "não seria possível" sem a ajuda de vários grupos de música pop, está muito mais para texto de de blog do que para texto impresso – parto do óbvio pressuposto que o livro seria, sim, possível sem a ajuda das bandas citadas. Entretanto, isso em nada atrapalha o verdadeiro prazer que temos ao ler Cassino Hotel. (Texto publicado anteriormente no Mondo Bacana; fonte da foto: Buenos Porteños: André Takeda)  
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