abril 2020

História, Literatura
Leituras na pandemia
20 de abril de 2020 at 21:52 0
foto do autor

“O império de Hitler”, do britânico Mark Mazower (Companhia das Letras, 801 páginas, tradução de Claudio Carina e Lucia Boldrini), conta o que os alemães aprontaram em toda a Europa quando colonizaram grande parte do continente entre 1939 e 1945. O livro mostra que a ideologia racial nazista era mais importante que considerações práticas ou econômicas – e que isto acabou tendo importância fundamental na derrota do regime de Hitler em 1945.

Não acho que a literatura deva defender posição política – não explicitamente, pelo menos. “A barata”, de Ian McEwan (Companhia das Letras, 104 páginas, tradução de Jório Dauster), faz exatamente isso: o livro, em que uma barata se transforma no primeiro-ministro inglês (a alusão à “Metamorfose”, de Kafka, é óbvia), é declaradamente uma denúncia contra o Brexit – como o posfácio, escrito pelo autor, deixa muito claro. Mas o livro é muito divertido e, como sempre no caso do grande escritor inglês, é extremamente bem escrito.

Fiquei sabendo depois de ter comprado o livro que “Blade Runner”, de Philip K Dick (Aleph, 283 páginas, tradução de Ronaldo Bressane) se chamava inicialmente “Androides sonham com ovelhas elétricas”. Assisti ao filme baseado no livro muitos anos atrás, e lembro que gostei muito. O romance - uma ficção científica que conta a história de um caçador de androides que estavam causando perigo às pessoas - não me impressionou tanto (creio que se ele tivesse metade do tamanho seria melhor). De todo modo, as discussões que o livro desperta - sobre consciência, empatia e sobre o que, afinal, nos faz humanos – são muito interessantes.

Aparentemente, “Não me abandone jamais”, do escritor Prêmio Nobel de Literatura de 2017, o inglês Kazuo Ishiguro (Companhia das Letras, 343 páginas, tradução de Beth Vieira), conta a história de uma escola na Inglaterra, com alunos vivendo as situações normais da infância/adolescência: o bullying, a amizade, a descoberta do sexo. Mas não é bem isso. Melhor não contar mais nada, mas vou dar uma dica: se você quiser ler o livro, recomendo que nem leia as orelhas do romance, uma obra-prima assustadora publicada originalmente em 2005.

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Literatura
Três livros escritos por mulheres
12 de abril de 2020 at 22:19 0
V.S.Naipaul

O Prêmio Nobel de Literatura de 2001, o trinitário-britânico de origem indiana V.S.Naipaul (de quem, aliás, li três ótimos livros, “Os mímicos”, “Uma casa para o sr. Biswas” e “Guerrilheiros”) causou polêmica em 2011 ao criticar a literatura feminina, devido à "sensibilidade e estreita visão de mundo das mulheres". Isso é uma bobagem tão grande que nem merece refutação.

Mas é outra afirmação do escritor, na mesma ocasião, que me faz citá-lo aqui: ele acrescentou ainda que lia uma obra e depois de dois parágrafos já sabia dizer se o livro tinha sido escrito por uma mulher ou não. Li recentemente três ótimos romances escritos por mulheres, e fico me perguntando se eu saberia se tinham sido escritos por membros do sexo feminino caso eu não soubesse o nome do autor(a).

Sou fascinado pela distopia da república fictícia de Gilead, criada pela escritora canadense Margaret Atwood no romance “O conto da Aia” e que é a origem da excepcional série “Handmaid’s Tale”, ambos já comentados por aqui. Em 2019 ela lançou uma continuação de sua saga, chamada “Os testamentos” (Rocco, 448 páginas, tradução de Simone Campos). O livro é contado, de forma alternada, por três personagens femininas, tanto a favor quanto contra a opressora República de Gilead. O livro é excelente e com conflitos muito bem resolvidos, mas eu esperava um pouco mais. Coisa de fã.

Já “Largo pétalo del mar”, da chilena Isabel Allende (Sudamericana, 2019 – já existe uma tradução brasileira, a cargo da Bertrand Brasil) é uma verdadeira epopeia. O romance contando a história do casal espanhol (um casal bem diferente, diga-se, mas prefiro não dar mais detalhes) Víctor e Roser Dalmau desde a fuga da Guerra Civil Espanhol até seu final da vida no Chile – passando por uma fuga deste país quando do golpe de estado do ditador Augusto Pinochet. O livro parece esbarrar na pieguice aqui e ali, e os personagens principais são inesquecíveis.

Finalmente, “A época da inocência”, escrita pela americana Edith Wharton em 1920 (Penguin-Companhia, 416 páginas, tradução de Hildegard Feist), conta a história de amor mal-resolvido entre o rico advogado Newland Archer e a condessa Olenska, prima de sua futura esposa May Welland. Os preconceitos e costumes dos ricos americanos entre final do sec. XIX e o início do sec. XX são descritos com precisão cirúrgica e desapiedada por esta extraordinária Edith Wharton. Uma obra-prima.

Voltando à pergunta inicial: eu saberia se algum dos livros foi escrito por mulher, caso eu não soubesse o nome das autoras? Com certeza não. V.S. Naipaul era um bobão mesmo.

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Literatura
“O dom”, de Vladimir Nabokov
5 de abril de 2020 at 22:39 0
Vladimir Nabokov - The New Republic

Fyodor é um exilado russo em Berlim na primeira metade do século XX, e está tentando iniciar sua carreira literária. Lá ele conhece outros fugitivos da Revolução Russa e passa os dias entre os livros, algumas aulas particulares que ministra, e andanças pela cidade. O personagem principal de “O dom”, de Vladimir Nabokov (Alfaguara, 384 páginas) tem bastante em comum com o autor, também exilado russo que viveu em Berlim.

Composto por cinco longos capítulos, o romance, entre outras técnicas, usa metaficção – conforme notado por Paulo Nogueira em seu texto sobre o livro no Estadão, “a própria primeira frase é interrompida para a citação de um crítico a respeito de... primeiras frases” – alternância entre primeira e terceira pessoas na narração – e o leitor que se vire para saber o que está rolando. O quarto capítulo é composto por uma biografia meio debochada, escrita por Fyodor, de Nikolay Chernishevski, o autor favorito de Lênin.

Não acontece muita coisa em “O dom”, e boa parte da narrativa é composta por comentários sobre personagens, autores, romances, poesias e lembranças do próprio Fyodor (impressiona a história do pai dele, que era um entomologista muito famoso na Rússia de antes da Revolução - importante lembrar que o próprio Nabokov era entomologista profissional). O tipo de técnica utilizada faz com que às vezes seja meio difícil saber o que exatamente está ocorrendo; mesmo assim, o livro não é de leitura muito complexa.

Nabokov considerava “O dom” como seu melhor livro, e hoje a crítica o coloca no mesmo nível de seus romances mais importantes, como “Lolita” e “Fogo Pálido” (o meu preferido dele, aliás).

Quanto a mim, a cada novo livro fico mais impressionado com a incrível criatividade de Nabokov: “O dom” não se parece em nada com os demais romances dele que já li – uns muito diferentes dos outros, aliás.

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