A primeira vez que lembro de ter ouvido falar de Roberto Campos foi numa entrevista na Veja em que ele, então senador pelo Mato Grosso, vituperava contra a lei de reserva de mercado da informática. Era uma coisa estranha: uma espécie de Dom Quixote, do
próprio partido do governo (de quem era a responsabilidade pela a malfadada lei), numa luta solitária e infrutífera contra tudo e contra todos: nesse ponto específico, o governo e a oposição de esquerda estavam do mesmo lado,
contra Roberto Campos.
Era uma lei que hoje parece uma coisa do século XV: as grandes empresas estrangeiras de informática eram proibidas de investir no Brasil – nos dias de hoje, é como se ninguém pudesse mais comprar um iPhone ou um
laptop da Lenovo.
É claro que estavam todos errados, e só Roberto Campos estava certo.
(...)
Il va sans dire que Roberto Campos tinha uma forte rejeição por parte da esquerda. O Luís Fernando Veríssimo, inclusive, criou uma piada que dizia que Delfim Netto era o Roberto Campos brasileiro – o senador mato-grossense, afinal, era chamado de
Bobby Fields. Para a esquerda ele era um entreguista. Queria vender o país para os Estados Unidos a preço vil (a esquerda adora essa expressão). Era um lobista que defendia apenas os interesses estadunidenses (aqui no Brasil, quando alguém fala “estadunidense”, pode saber que é de esquerda).
Durante um bom tempo, o que Roberto Campos escrevia era lei para mim. Eu ficava esperando - não lembro exatamente quantas vezes por semana - para ler suas colunas no jornal, ficava acordado esperando suas entrevistas na TV, defendia o cara contra tudo e contra todos.
O ápice da minha ligação com ele foi a leitura do monumental “Lanterna na Popa”, autobiografia de mais de mil páginas. Eu reconhecia que certos comentários dele eram grosseiros, mas que vida a do Roberto Campos! Ministro da Fazenda de Castello Branco, embaixador na Inglaterra no governo Médici, senador por Mato Grosso no governo Figueiredo. Fica evidente, no livro, a frustração que ele teve ao perder o poder que teve no início do regime militar e que nunca mais iria recuperar. Ele deixava claro sua opinião segundo a qual o milagre econômico do governo Médici dependeu de maneira fundamental das reformas que ele implantara, ainda no governo Castello Branco. Para Roberto Campos, o governo Médici era excessivamente repressor contra a oposição. Para quem, como eu, cresceu num lar em que a mãe, esquerdista, tinha um peso fundamental na
ideologia da casa, ser um admirador tão incondicional de um burocrata importante do governo militar não deixava de ser meio incômodo. O fato de ele efetivamente não ter participado da repressão e tê-la até criticado um pouco não deixava de ser um alívio.
Pequeno, mas um alívio.
De todo modo, ele estava numa fase áurea em termos de influência intelectual – até a esquerda o estava respeitando - Roberto Campos subitamente parou de escrever no jornal, por estar doente. Eu senti o baque, fiquei meio perdido, mas achava, claro, que logo ele se recuperaria e eu teria de novo meu economista de bolso para poder copiar as opiniões. Mas isso não ocorreu. Roberto Campos faleceu depois de uns dois anos doente. Nesse meio tempo era possível ler algumas notícias sobre a sua vida de recluso. Uma delas é que ele se obrigava a rezar a Ave-Maria – mesmo sem acreditar direito em Deus - em algumas línguas, para não perder a memória.
Não adiantou, acabou perdendo a vida.
Desculpem essa piada sem-graça: é uma homenagem às piadas sem graça de Roberto Campos. Na época em que os telefones celulares eram melhores e mais caros quanto mais pequenos, ele escreveu que eles eram uma espécie de homenagem à impotência, já que viviam dobrados e paravam de funcionar quando entravam em túneis. Chamava o
whisky de néctar. Ex-seminarista, no início de seu livro de memórias ele conta a história de um colega de seminário que virou padre, mas que acabou sendo afastado. Segundo o que um colega em comum acabou contando para Roberto Campos, o padre afastado
"era comunista, e isso a gente podia aceitar; ele tinha um caso com uma mulher, e isso dava para aceitar; mas nunca acreditou em Deus, e isso não dava para aceitar".
(trecho de Energia, terceira parte do meu livro "Rua Paraíba", publicado recentemente - mais detalhes aqui; fonte da foto: Estadão)
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