Fabricio Muller
11 de outubro de 2025
0
Francisca era uma garota de programa que trabalhava num apartamento ao lado do Passeio Público. Passava o horário comercial ali, e a casa tinha, normalmente, uma alta rotatividade de clientes. Alguns eram muito bondosos, davam gorjetas e chegavam a pedir por programas de cinco horas. Outros eram asquerosos, tratavam-na mal, eram grosseiros — pelo menos estes, normalmente, chegavam rapidamente ao orgasmo e o programa era curto. À noite, ela voltava para casa, um sobrado bem ajeitado no Umbará, onde morava com o marido. Pegava dois ônibus para ir para casa, o primeiro na Praça Rui Barbosa e o segundo no Terminal do Pinheirinho. Quando chegava, o marido lhe perguntava como tinha sido o dia. Ela dizia que trabalhava como cuidadora de uma senhora senil perto das Mercês, e ele aceitava sem problemas. O marido, que se chamava Paulo, trabalhava com transporte de bebidas e era um homem sério e compenetrado. Nos fins de semana, ele, a mulher e os três filhos assistiam aos cultos na Igreja Universal do Reino de Deus, a três quadras da casa deles. Como ela trabalhava de segunda a sexta, podia ir aos cultos de sábado e domingo sem maiores problemas. Às vezes a família ia visitar o pai dela, que morava em Matinhos, e era só assim que perdiam as cerimônias religiosas. Em algumas dessas ocasiões, Paulo assistia a um culto da mesma denominação lá no litoral, mas o mais comum era avisar ao seu pastor na igreja do Umbará que “naquele fim de semana eles iriam fazer a obrigação de dar uma atenção para o sogro, um velhinho muito bom, mas, infelizmente, distante da igreja”. O pastor então orava junto com Paulo pela conversão de Raul, o pai de Francisca. Não se pode dizer que essa vida dupla não pesava na consciência da pobre Francisca, que realmente tinha trabalhado durante algum tempo cuidando de idosas. Quase meia década antes dos fatos narrados aqui, a última mulher sob seus cuidados morrera de uma hora para outra e ela ficara desempregada. Seu marido também estava sem emprego, e o desespero do casal era imaginável: eles tinham três filhos, sendo que nenhum dos três trabalhava e o mais velho tinha apenas dezoito anos. Nessa situação desoladora — o pouco dinheiro que tinham economizado já estava no fim —, a irmã de Francisca, uma católica não praticante que não se importava com os chamados “moral e bons costumes”, sugeriu que ela começasse a vender seu corpo para ganhar dinheiro. Se Francisca quisesse, Raquel — a irmã — poderia lhe passar o contato de uma amiga dona de um apartamento que estava precisando de meninas para esse tipo de trabalho. Depois de muita hesitação, Francisca acabou conversando com a moça, e as duas combinaram que na semana seguinte ela começaria a trabalhar ali. Francisca acabou gostando muito mais de trabalhar com sexo do que tinha imaginado. Tinha muito mais desejo sexual que o marido — frequentemente ia dormir insatisfeita porque ele não queria nada com ela — e os clientes, em sua maioria, a tratavam bem. Percebeu que não precisava se esforçar muito para ganhar muito mais dinheiro que antes: na verdade, em grande parte do tempo, o trabalho lhe dava prazer. Era assídua com os horários — a dona exigia que ela chegasse às sete da manhã e ela não poderia sair antes das cinco da tarde —, e não faltava nem quando estava muito resfriada. Para a família, como se pode imaginar, ela tinha dito que arranjara outro trabalho como cuidadora de idosos. Sua consciência pesou mais no início da vida dupla: ela se sentia mal nos cultos, dada a incoerência entre o que era pregado e seu trabalho. Faltou a algumas cerimônias religiosas, mas teve que voltar a participar delas quando o marido disse que não era bom que ela continuasse se ausentando da casa de Deus. Então, recomeçou a frequentar as cerimônias. Quanto a seu dia a dia em casa, percebeu que nada se modificara e que, de certa maneira, seu trabalho no apartamento era apenas mais um trabalho: continuava sendo a boa mãe e esposa de sempre, carinhosa e atenta às necessidades da família. *** Além dos problemas de consciência, que às vezes eram maiores, às vezes menores, Francisca se incomodava com o que ela chamava de “sombra”. Sempre que estava sozinha à noite andando na rua (que não precisava estar necessariamente deserta para que isso acontecesse), ela via um homem alto, com uma capa comprida e chapéu pretos. Às vezes ele estava na sua frente, normalmente a uns vinte metros de distância, mas às vezes ela sentia que ele estava atrás dela — e, quando se virava, lá estava ele. O pior nem era isso: o mais comum era Francisca olhar para ele, se distrair e, quando olhava de novo, ele sumia — normalmente para aparecer em outro lugar da rua, frequentemente distante do anterior, alguns minutos depois. Ela sentia uma sensação estranha, uma espécie de calafrio, quando o via. No início, ela sentia bastante medo do homem misterioso, de quem nunca conseguiu ver direito o rosto — ele sempre aparecia à noite, e o chapéu aumentava a sua sombra, afinal de contas. Só sabia que ele usava uma barba, muito escura, aliás. Com o tempo, o medo diminuiu, mas não a sensação de desconforto que ele lhe trazia. *** Grandes mudanças na vida de Francisca tiveram início quando Paulo passou a chegar cada vez mais tarde em casa, devido a mudanças em sua escala de trabalho. Logo ele se estabeleceu num horário fixo na transportadora de bebidas: do meio-dia às oito da noite, de terça a sábado. Por isso, ele deixou de ir aos cultos do sábado — mas Francisca e os filhos não. Continuaram os mesmos bons crentes de sempre. Para ela, a principal diferença era a falta que o marido lhe fazia entre a hora em que ela chegava em casa — normalmente perto das seis da tarde — e a hora de Paulo, entre nove e dez da
Leia mais +
Comentários Recentes