“Comme ils disent”, de Charles Aznavour
Música
“Comme ils disent”, de Charles Aznavour
16 de fevereiro de 2025 0
Ele mora sozinho com a mãe, num velho apartamento na Rua Sarasate. Sua companhia é uma tartaruga, dois canários e uma gata. Para deixar sua mãe descansar, ele frequentemente faz compras e a cozinha. Ele arruma, lava e seca. Ele não tem medo do trabalho: é um pouco decorador e estilista! Mas seu trabalho verdadeiro é à noite, que ele exerce travestido de mulher, ele é artista! Ele tem um número muito especial, em que termina completamente nu, depois do strip-tease. Nestes momentos os machos não acreditam no que veem: “nossa, ele é um homem!”, como eles dizem. Aí pelas três da manhã ele vai lanchar com os amigos de todos os sexos! E em um bar qualquer, ele e sua turma se divertem de verdade, e sem complexos! Eles falam verdades ácidas sobre as pessoas do lugar, mas fazem isso com humor. Nas madrugadas alguns retardados tentam imitar seus amigos e ele, para tentar fazer sucesso em suas mesas, mas só se cobrem de ridículo. As piadas e as provocações deixam-no frio, porque “ele é um homem”, como eles dizem. Quando o dia amanhece, ele volta para seu lugar de solidão, como um pobre palhaço infeliz e esgotado. Ele se deita, mas não dorme, pensa nos seus amores insignificantes e sem alegria. Ele pensa naquele garoto belo como um deus, que sem fazer nada colocou fogo na sua memória. A sua boca jamais ousará lhe revelar seu doce segredo, seu drama delicado: afinal de contas, o objeto de todos os seus tormentos passa a maior parte do tempo em camas de mulheres. Na verdade, ninguém tem direito de julgá-lo, de culpá-lo, e ele deixa isso bem claro: porque a natureza é a única responsável se “ele é um homem”, como eles dizem! *** Se trocar a terceira pela primeira pessoa no texto acima (por exemplo: no início, ler “eu moro sozinho com a minha mãe”), tem-se quase uma tradução de “Comme ils disent” (como eles dizem), canção do grande cantor francês Charles Aznavour. ´ A música foi lançada em 1972. Depois de pronta, o chansonnier – heterossexual e que na época tinha cinco filhos de três casamentos – foi testá-la diante de amigos homossexuais. Segundo o próprio cantor, a canção foi recebida com um frio generalizado na pequena plateia. Perguntaram-lhe: “quem vai cantar esta música?”. “Eu mesmo”, respondeu Aznavour. Novo silêncio no grupo. Os assessores do cantor na época lhe aconselharam a não gravá-la, para não correr o risco de prejudicar sua imagem. Mas ele decidiu correr o risco porque essa questão era muito importante para ele, e merecia uma posição. Na época, o jornal “Le Monde” criticou a canção. A crítica Claude Sassaute comentou acidamente: “esta evocação do homossexual que substitui a mãe na cozinha, na lavanderia, na máquina de lavar, que esconde seu desespero, seu ‘doce segredo’, sua paixão ridícula por um conquistador heterossexual, e é uma pequena trabalhadora apaixonada pelo chefe, (…) é boa para os (inofensivos) Frères Jacques (quarteto vocal tradicional francês).” Mas o sucesso de “Comme ils disent” foi praticamente imediato, não só entre o público em geral como no meio homossexual – e vários números de travestis usavam esta canção de fundo. Até hoje raramente é lançada uma coletânea das melhores canções de Aznavour sem ela. Quanto a mim, desde a primeira vez que a ouvi fiquei impressionado com a belíssima melodia, a incrível expressividade do chansonnier, com a delicadeza da letra e com a maneira como ele tratava sem ironias o mundo homossexual – foi a primeira canção francesa de sucesso, aliás, a tratar a homossexualidade com seriedade. Assim que Aznavour faleceu, em 2018, o canal France Info entrevistou um senhor homossexual chamado David, com 48 anos na época, que declarou que “Comme ils disent” o ajudou, durante toda a sua vida, a aceitar-se como era – porque, afinal de contas, ser homossexual não era culpa sua. “Ninguém, até o início dos anos 1970, tinha ousado dizer uma coisa dessas”, complementou. (fonte da foto: Wikipédia em francês. Se você quiser receber meus textos semanalmente, clique aqui e cadastre seu e-mail)
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“A vegetariana”, de Han Kang
Literatura
“A vegetariana”, de Han Kang
9 de fevereiro de 2025 0
Quando fiquei sabendo, em algum noticiário, que o livro mais conhecido da escritora coreana Han Kang (1970- ), vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2024, chamado “A vegetariana” (Todavia, 171 páginas, tradução de Jae Hyung Woo, lançado originalmente em 2007), falava sobre uma mulher que, um belo dia, resolveu parar de comer carne, causando revolta na família, logo pensei que era alguma espécie de libelo pró-vegetarianismo. Ledo engano. O grande escritor inglês Ian McEwan chamou “A vegetariana” de “um pequeno romance sobre sexualidade e loucura que merece seu grande sucesso”. É interessante perceber que, como o livro é dividido em três partes, a primeira e terceira tratam de “loucura”, e a segunda, de “sexualidade”. A mulher que resolve parar de comer carne, por causa de “sonhos”, é Yeonghye, uma discreta e calada dona-de-casa coreana, vivendo em Seul, mulher de um alto executivo. Conforme comentado acima, a família entra em polvorosa com a sua decisão, mas não é porque ela simplesmente virou vegetariana – o que até seria aceitável -, mas é porque estava perdendo peso numa escala e numa velocidade preocupantes. Isso é contado principalmente na primeira parte do livro, escrito em primeira pessoa pelo marido de Yeonghye. A segunda parte, narrada em terceira pessoa, é contada sob o ponto de vista do cunhado da personagem principal do romance, um artista visual casado com a irmã da “vegetariana”. Já a terceira, também narrada em terceira pessoa, mostra os acontecimentos sob o olhar da irmã de Yeonghye. Por mais que eu pense a respeito, não consigo contar mais do livro para não dar spoiler, tantos são os acontecimentos surpreendentes no romance. Mas o que dá para contar é que “A vegetariana” é realmente uma obra-prima, uma história extremamente perturbadora narrada com uma prosa límpida. (Se você quiser receber meus textos semanalmente, clique aqui e inscreva seu e-mail.)
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Bones: “SoftwareUpdate2.0”
Música
Bones: “SoftwareUpdate2.0”
2 de fevereiro de 2025 0
Já nos primeiros acordes de “TwentyThirteen” percebemos que, dezenas de álbuns depois de seu início em 2010 ainda como Th@ Kid, Bones continua relevante. A faixa, que começa imodesta e absolutamente verdadeira (“tenho estado na estrada desde 2013 / eles têm me chamado de o Melhor de Todos os Tempos (G.O.A.T.) desde 2013”) gruda na cabeça como só as melhores do rapper, e não se pode dizer que, necessariamente, seja a melhor do álbum “SoftwareUpdate2.0”, lançada no meio de dezembro último (“SoftwareUpdate1.0” tinha sido lançado em 2016, com o destaque “SleepMode”). O álbum ainda não tem nenhum clipe, mas é possível que seja lançado algum nos próximos meses: o terceiro vídeo do ótimo disco anterior, “CADAVER” (de outubro de 2024), chamado “MPEG-4”, foi lançado já em 2025 – depois de “SoftwareUpdate2.0”, portanto. “AccesDenied” é uma faixa típica de Bones, que continua fazendo faixas parecidas e sempre interessantes. “ElmoAndTheAmazingTechnicolorDreamcoat” é uma de suas lindas baladas, na qual ele se queixa de não pode fazer a chuva parar. “CCTV” é hipnotizante, e “CPU” cria um clima perfeito para uma letra que comenta que “você não pode cair se estiver no modo SESH” (entre outros significados, “sesh” pode ser uma sessão fazendo alguma atividade agradável, e é um termo que é uma espécie de marca de Bones e sua turma). “DropTopFilledWithRain” é daquelas músicas em que o rapper mostra seu lado afetivo, não só nos vocais e na melodia, como também na letra: “pensando em você, só espero que não mude comigo / não duvidaria, se você colocasse a culpa em mim”. “ColdConversationsOnBurnerPhones” tem uma levada vaporwave, na qual ele diz que rappers estão sempre caindo, mas “SESH nunca vai desconectar”. Sorte nossa. (se você quiser receber meus textos semanalmente, clique aqui e cadastre seu e-mail)
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O Piloto
Podcasts
O Piloto
26 de janeiro de 2025 0
Ilo Rodrigues era um piloto amador de avião que desapareceu num voo solitário pouco antes do Natal de 1986, e que nunca mais foi encontrado – nem ele, nem a aeronave que pilotava. Nascido em 1946, ele era o terceiro dos quatro filhos do casal Gecy e Castorino Augusto Rodrigues – este último, um alto funcionário das empresas Votorantim, de propriedade José Ermírio de Moraes, uma das maiores empresas do país. Por motivos de trabalho, Castorino morou com a família no Recife, e acabou se estabelecendo em Curitiba. Por volta de 1980, Ilo passa num concurso público e mais tarde seria nomeado diretor da Delegacia Regional do Ministério da Agricultura, em uma das fronteiras mais complicadas do Brasil: Foz do Iguaçu, de onde é possível ir para o Paraguai e para a Argentina. Como ele era um homem de gastos extravagantes – era proprietário do avião em que desapareceu, era fotógrafo amador e gastava parte expressiva do seu salário com a ex-esposa Wanda, com quem teve dois filhos, Cassiano Luciano – e fontes de renda pouco claras – uma loja de bijuterias e negócios variados que até hoje não se sabe exatamente quais eram -, sempre se desconfiou que o desaparecimento de Ilo estivesse ligado com alguma história de origem escusa. Outro possível motivo do seu sumiço poderia ter sido o sequestro do seu avião por traficantes bolivianos, como aconteceu com várias outras aeronaves brasileiras na época. A história de Ilo Rodrigues e do seu desaparecimento é o tema “O Piloto”, de Ivan Mizanzuk, provavelmente o mais importante criador de podcasts na área de true crime do Brasil – sim, basicamente ele foi o responsável por descobrir a inocência dos principais acusados do rumoroso caso do assassinato do menino Evandro, que tinha ocorrido em 1992 na cidade de Guaratuba, no Paraná. Publicado pela Globoplay em oito episódios, o podcast  “O Piloto” é a sétima temporada do “Projeto Humanos” (“O caso Evandro”, citado acima, foi a quarta e, além do podcast também tem uma série televisiva na Globoplay). Se o desaparecimento – sobre o qual Ivan Mizanzuk cria sua própria teoria – de Ilo Rodrigues é o principal tema da série, o que fica mesmo na audição de “O Piloto” é a impressionante história familiar descortinada ali. O pai de Ilo, Castorino, era um homem extremamente controlador (seus filhos tinham nomes como Ida, Iná e Ivo “para que não tivessem apelidos”) e cruel – era extremamente mesquinho com dinheiro, nunca quis ter filhos e fez sua esposa Glecy fazer diversos abortos. Mas todos os entrevistados no podcast, tanto os descendentes diretos de Castorino – filhos, netos e a bisneta – quanto a primeira e segunda esposas de Ilo – Wanda e Cristina – mostram uma extrema e comovente franqueza sobre todas as qualidades e defeitos dos principais personagens de “O Piloto”: o homem desaparecido e seu pai. É uma história, mesmo, profundamente humana, que faz com que o nome da série “Projeto Humanos” seja extremamente bem colocado.
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Emilia Pérez
Cinema
Emilia Pérez
19 de janeiro de 2025 0
Rita (Zoë Saldaña) é uma advogada brilhante, mas insatisfeita porque é pouco reconhecida por seus superiores. Ela, que mora no México, é sequestrada na rua e os perpetradores estão a serviço de um dos maiores chefes de cartel de droga do país. O que o traficante, Juan “Small Hands” Del Monte, quer de Rita é pouco usual, para dizer o mínimo: não se sentindo à vontade como homem, ele – que é violentíssimo, casado com uma linda mulher chamada Jessi del Monte (Selena Gomez), com quem tem um casal de filhos – quer fazer transição de gênero. Juan quer passar a ser “Emilia Pérez” (Karla Sofía Gascón é a atriz trans que faz os dois papéis). Melhor não contar mais para não dar spoiler. Dirigido pelo francês Jacques Audiard, o musical “Emilia Pérez” (130 minutos, 2024) é um filme franco-mexicano que é um dos grandes favoritos para o Oscar de 2025. Entre vários prêmios já amealhados, ele venceu o do júri de Cannes do ano passado e suas quatro atrizes principais (Zoë Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez e Adriana Paz – que vive Epifania, personagem que aparece na segunda metade do filme) venceram conjuntamente o prêmio de melhor atriz daquele festival. “Emilia Pérez” estreará no Brasil no dia 6 de fevereiro próximo, e já foi lançado pela Netflix nos Estados Unidos. Quando se imagina um musical, normalmente se pensa em alguma coisa com glamour do tipo Broadway, como os filmes “Cantando na Chuva” ou “Chicago”. A primeira coisa que chama a atenção em “Emília Pérez” é que as cenas musicais são “esquisitas” – na falta de uma palavra melhor. Boa parte do filme se passa em lugares pobres e periféricos e, quando os personagens começam a cantar, a tendência é se perguntar: “mas que coisa estranha é essa?” – já que, ao contrário de glamour, as cenas musicais parecem só aprofundar a pobreza e a violência (estamos falando de uma poderosa gangue de traficantes mexicanos, afinal) apresentadas na história. Tudo parece meio fora de lugar em “Emilia Pérez”. A história esquisita de um homem poderoso e violento que quer virar mulher. As cenas musicais diferentes do que se espera. Apesar de a história ser mexicana, o filme é francês e as principais personagens são a espanhola Karla Sofía Gascón e as americanas Zoë Saldaña e Selena Gomez – fatos que causaram polêmica no México. O sotaque desta última, aliás, foi bastante criticado, mas isso aparentemente não incomodou o diretor Jacques Audiard, que não fala espanhol e que declarou que as diferenças entre “as nuances do acento mexicano versus castelhano passaram em branco” por ele e que foram “arrumadas na edição”. Eu diria que esse problema do sotaque de Selena Gomez é só mais uma esquisitice do filme, e por isso este fato não incomodou o diretor, que queria fazer um negócio diferente mesmo. “Emilia Pérez” parece se passar em uma realidade paralela, que se parece e que não se parece com a vida real. Mas é intenso e original o suficiente para merecer todas as críticas favoráveis e os prêmios que têm recebido. (imagem que acompanha o texto, com Karla Sofía Gascón no papel de Emilia Pérez,  obtida no site G1)
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David Lynch (1946-2025)
Cinema
David Lynch (1946-2025)
16 de janeiro de 2025 0
Quando, na adolescência, eu e alguns poucos amigos saímos assustados do cinema depois de uma sessão de “Veludo Azul”. Quando, recém-casados, eu e a Valéria saímos assustados do cinema depois de uma sessão de “Coração Selvagem”, Palma de Ouro em Cannes. Quando, mais de dez anos atrás, dei uma piscadela e acordei assustado com uma cena esquisita de “Império dos Sonhos”, um dos meus filmes preferidos e que não sei bem por que amo tanto – deve ser porque ele se parece com alguns dos meus próprios sonhos. Quando entendi pouquíssimo a história de “Cidade dos sonhos”, filme “explicado” em uma postagem perdida na internet, que eu li e da qual não lembro nada, nem onde foi. Quando, durante a pandemia, assisti à terceira temporada de “Twin Peaks” na Netflix, não gostei, mas que tinha umas imagens impressionantes – algumas parecidas com um clipe do Radiohead, será que só eu reparei? Quando fiquei absolutamente hipnotizado pela delicadeza de “História Real”. Quando resolvi colocar a sua foto no meu álbum “cinema”, do Facebook, apenas para descobrir que ela já estava lá. Quando, também na pandemia, assisti às duas primeiras temporadas de “Twin Peaks”, e descobri que a estética vaporwave tinha sido inventada por ele ainda nos anos 1990. Quando escrevi aqui sobre “Os últimos dias de Laura Palmer” e não cumpri a promessa feita ali de escrever sobre a série “Twin Peaks”. Quando, alguns dias atrás, fiquei chocado comigo mesmo ao perceber que não tinha assistido, numa caixa de DVDs que comprei há muitos anos, “Erasehead” e “O homem elefante”, e me perguntei: será que ele vai fazer mais filmes? Não vai. David Lynch faleceu hoje (16 de janeiro de 2025) e fico me lembrando das muitas vezes – algumas citadas acima – em que suas obras marcaram o meu amor pelo cinema. Descanse em paz, gênio. (foto que acompanha o texto obtida no site do jornal “The Guardian”)
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Charles Dickens, Henry James e um álbum de fotos no Facebook
Literatura
Charles Dickens, Henry James e um álbum de fotos no Facebook
12 de janeiro de 2025 0
Foi num livro (“Drible”, de Sérgio Rodrigues) – que minha mãe insistiu por anos para que eu lesse, que só estou lendo agora (e amando) e que será tema de minha série “Livros que minha mãe amava” -, que li o seguinte trecho: “- Ah, então esse é o nosso Dickens – riu um homem de suspensórios sentado de frente para ele. Meu rosto queimava.” Eu percebi na hora, pelo contexto, que aquele homem de suspensórios era o jornalista e escritor Nelson Rodrigues – afinal, li a biografia dele escrita pelo Ruy Castro muitos anos atras, também recomendada pela minha mãe. Mas o que mais me tocou na memória foi a menção ao escritor britânico Charles Dickens (1812-1870). Não sei de onde que tirei meu preconceito contra Dickens na infância. Minhas fontes impressas principais de cultura eram a Enciclopédia Abril e a Revista Veja. Foi de uma dessas? Sei eu, eu sei que eu tinha a ideia de que Dickens era um romancista meio brega e muito meloso. Bem, isso mudou quando Morrissey recomendou o escritor como sugestão de leitura numa entrevista, ali num momento entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Todos os fãs do ex-vocalista da banda inglesa Smiths sabem que ele é obcecado por Oscar Wilde, e alguns sabem que ele declamou um texto de Marcel Proust num show. Quanto a Dickens, só soube que ele citou este escritor naquela entrevista, e mais nada (por uma coincidência engraçada, uma outra das raras sugestões literárias de Morrissey foi “O livro do desassossego”, de Fernando Pessoa, que minha mãe amava imensamente e que será também tema da série “Livros que minha mãe amava”). Enfim, dica do Morrissey é dica do Morrissey e entrei numa “fase Dickens”, muitos anos atras. Eu me apaixonei. Não tenho bem certeza quais livros dele eu li, mas certamente nesta lista estão incluídos os romances “Grandes esperanças” (que foi o que mais gostei), “As aventuras do sr. Pickwick”, “Um conto de duas cidades”, “David Copperfield”, “Oliver Twist” (e, quem sabe, “A pequena Dorrit”). Ainda nos anos 1990 estava na moda o tal “cânone literário ocidental” do crítico britânico Harold Bloom, sobre o qual o famoso jornalista brasileiro Paulo Francis falava bastante, e que foi compilado numa obra chamada “O cânone ocidental”, na qual o crítico citava e descrevia os – segundo ele – grandes escritores ocidentais. Um dia, numa livraria, dei uma folheada no livro de Bloom, e lá estava escrito algo como “que era consenso entre a crítica especializada que o grande livro de Dickens era ‘A casa soturna’”, sobre a qual eu pouco tinha ouvido falar. Minha “fase Dickens” tinha passado alguns anos antes, mas me vi na obrigação de ler o romance considerado “por grande parte da crítica” o melhor do grande escritor britânico. Foi meio difícil encontrar o longo (824 páginas) romance, que tenho numa edição (Nova Fronteira, tradução de Oscar Mendes) obtida provavelmente na Livraria do Chain, a preferida de Dalton Trevisan. A leitura inicial me revelou um romance excelente, primorosamente escrito, em tom muito sério, muito diferente do que eu estava acostumado com Dickens. Mas tinha personagens demais! Quando eu começava a me sentir familiar com um personagem ou uma história, já entrava outra coisa. E isso aconteceu tantas vezes que eu – que estava numa fase de poucas leituras – com muita dor no coração resolvi abandonar o romance escolhido “por grande parte da crítica” o melhor de Charles Dickens. Entro agora no tema que originou este texto: minhas pequenas maluquices. Gosto de pensar que todas as pessoas têm uma pequena mania que a maioria dos outros pode achar estranha. Assim fica mais fácil conviver com as minhas birutices. Eu, por exemplo, só tenho um TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) que reconheço como tal: nunca comprar pães em número ímpar. Se, em termos de TOC, provavelmente não saio disso, eu tenho uma pequena mania, um negócio que eu levo muito a sério, mas que sei que não tem a menor importância. Este “negócio” são meus álbuns de fotos “cinema”, “literatura”, “músicas”, “esportes” e “tv” no Facebook. Cada um destes álbuns tem retratos daquelas pessoas que eu considero as mais importantes em seus campos. Sobre o álbum “músicas”, por exemplo, escrevi aqui o seguinte: “Eu não sei como explicar direito, mas acho que isso deve acontecer meio com todo o mundo: umas músicas batem diferente das outras. Sei lá, é como se elas tocassem um nervo que as outras não tocam. Normalmente os músicos, ou compositores, ou cantores, ou bandas, que têm músicas que ‘batem’ aqui comigo estão no meu álbum ‘músicas‘ do Facebook. Sempre que vou colocar uma foto lá fico me perguntando se aquele músico compôs (ou interpretou) coisas que realmente tocaram aquele ‘nervo’ metafórico”. Às vezes fico meses (quando penso no assunto, é claro) tentando me decidir se um artista, escritor ou esportista deve ou não entrar em algum álbum de fotos no Facebook. Às vezes – como no caso das bandas Mgła ou do The Brian Jonestown Massacre, citadas recentemente por aqui – a identificação é imediata e logo coloco as fotos correspondentes no álbum (“músicas”, nos dois casos). Enfim, pus um negócio na cabeça: como eu tinha lido Dickens muito antes de o Facebook existir, o escritor britânico só “mereceria” entrar no álbum de fotos “literatura” quando eu acabasse de ler “A casa soturna”. Olha o tamanho da birutice do sujeito (no caso, eu). Como não acabei de ler o romance de Dickens “mais estimado pela crítica”, ele não está no álbum correspondente até hoje. E Henry James (1843-1916), que tem um livro na foto que acompanha o texto, o que tem a ver com essa maluquice? Bem, também li romances deste grande escritor americano décadas atrás, e também resolvi não colocar sua foto no meu álbum do Facebook enquanto não acabasse de ler um romance seu – no caso, “As asas da pomba” (Ediouro, 555 páginas, tradução de Marcos Santarrita): meu texto seria um paralelo entre estes dois gigantes.
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Fernanda Torres escritora
Cinema, Literatura
Fernanda Torres escritora
6 de janeiro de 2025 0
A vencedora do Globo de Ouro de 2025 de melhor atriz de filme (drama) é também uma excelente escritora. Seguem abaixo os dois textos que escrevi sobre os romances de Fernanda Torres. Aproveitando a vitória dela, acabei de comprar seu livro de crônicas, “Sete anos”, sobre o qual logo comento por aqui. *** “O Fim” 27 de julho de 2015 O início de cada um dos capítulo de O Fim, de Fernanda Torres, é um monólogo interior com os últimos momentos da vida de cada um dos cinco personagens principais da história – na continuação, os capítulos são escritos em terceira pessoa, contando as histórias inter-relacionadas de Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro. Os cinco amigos viveram a grande liberdade de sexo e drogas no Rio de Janeiro entre os anos 50 a 70 e terminam a vida – a partir do início dos anos 90 – deprimidos, solitários e, quase sempre, abandonados pelos familiares mais próximos – a quem haviam negligenciado durante toda a vida. Fernanda Torres parece querer mostrar, de forma cínica e amarga, que a grande liberdade de costumes daqueles anos loucos pôde transformar quem os viveu em monstros egoístas, autoindulgentes, capazes de trocar qualquer valor moral por um naco de prazer. Quem conhece aquela atriz meio amalucada de Os Normais e das suas, muitas vezes, destrambelhadas entrevistas, não consegue imaginar que seu primeiro romance seria tão sério e, porque não dizer, profundo – mesmo que muitas vezes bem humorado. Pelo menos, não me surpreendi com a qualidade indiscutível de sua prosa: as colunas mensais que ela escreve na Folha já me mostravam que ali estava alguém com um grande talento literário. Fico na expectativa de seus próximos livros. *** “A glória e seu cortejo de horrores” 22 de abril de 2018 Eu tinha escrito o seguinte sobre o romance anterior de Fernanda Torres, “O Fim”, lançado em 2013: “Quem conhece aquela atriz meio amalucada de Os Normais e das suas, muitas vezes, destrambelhadas entrevistas, não consegue imaginar que seu primeiro romance seria tão sério e, porque não dizer, profundo – mesmo que muitas vezes bem-humorado. Pelo menos, não me surpreendi com a qualidade indiscutível de sua prosa: as colunas mensais que ela escreve na Folha já me mostravam que ali estava alguém com um grande talento literário. Fico na expectativa de seus próximos livros. ” Baseado nisso, quando descobri que Fernanda Torres tinha lançado um segundo romance, “A glória e seu cortejo de horrores” (Companhia das Letras, 215 páginas), comprei-o assim que pude, e o livro é o objeto do presente texto (ela também lançou em 2014 um livro de crônicas, “Sete Anos”, que ainda não li). “A glória e seu cortejo de horrores” conta a história do ator Mario Cardoso, personagem fictício que é uma espécie de exemplar de toda uma geração: ainda jovem, nos anos 60, foi fazer uma espécie de teatro de guerrilha no sertão nordestino; depois, já no Rio de Janeiro, ingressa na produção de “Hair”, exemplar mais famoso do desbunde hipppie; acaba sendo descoberto mais tarde em duas produções de vanguarda, “Tio Vânia”, de Tchekhóv, e “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos. O enorme sucesso destas duas montagens acaba por levá-lo à TV, onde faz novelas e fica rico e famoso no país inteiro. Anos depois, abandona a TV e cria uma montagem totalmente fracassada de “Rei Lear”, de Shakespeare – e é com este fracasso que “A glória e seu cortejo de horrores” se inicia: a vida pregressa de Mario Cardoso é contada por meio de suas reminiscências. Confesso que eu achava irritantes boa parte das entrevistas do extinto programa de entrevistas do Jô Soares com atores, frequentemente se auto elogiando, falando maravilhas de seus próprios trabalhos: a acreditar em boa parte de que eles falavam de si mesmos no programa do Jô, o teatro é uma arte espetacular, os atores são pessoas especiais, participar de peças é sempre recompensador e especial. Em “A glória e seu cortejo de horrores” há muito pouco deste discurso cansativo: é ressaltada, claro, a importância do teatro e da arte, mas o próprio Mario Cardoso não cansa de repetir que a maior característica dele é a vaidade, o amor por si mesmo. É claro que no romance as coisas não são assim tão esquemáticas: afinal de contas, mais do que uma ótima atriz, tenho a impressão de que Fernanda Torres é, mesmo, uma grande escritora, que escreveu mais um grande livro. E grandes livros têm mais de uma leitura possível. *** (Foto que acompanha o texto obtida no Gshow)
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