URSS

O Grande Jogo e a Galinha dos Ovos de Ouro
História
O Grande Jogo e a Galinha dos Ovos de Ouro
9 de novembro de 2025 at 13:50 0
No ano (2006) em que escrevi textos semanais sobre literatura (e um pouco de música) no Caderno Dominical do extinto jornal O Estado do Paraná, graças a meu grande amigo Abonico Ricardo Smith, acabei tendo contato com livros que dificilmente leria em condições “normais”. De alguns deles eu gostei muito, como “Cidade dos Anjos Caindo“ (comentado aqui na semana passada) e os dois citados abaixo, na reprodução revisada da resenha que publiquei no jornal na época. O livro sobre caviar, principalmente, me descortinou todo um universo que eu não tinha nem ideia que existia. Recomendo fortemente, até hoje, mesmo que muita coisa deva estar desatualizada.

Não é necessário ser fã das histórias de James Bond para se sentir fascinado com “O grande inimigo - a história secreta do confronto final entre a CIA e a KGB“, escrito pelo ex-agente da CIA Milt Bearden e pelo jornalista James Risen (Objetiva, 569 páginas), livro que narra a guerra de espionagem entre os Estados Unidos e a União Soviética, no final da existência desta última, entre os anos de 1985 e 1991Bearden era chefe da Divisão Soviética e do Leste Europeu quando da Queda do Muro de Berlim, em 1989 , e sua participação no livro — contando inclusive os fatos que ele vivenciou em primeira pessoa — ajuda a tornar “O grande inimigo“ um documento histórico de grande importância. O livro analisa três pontos principais:
  1. O primeiro é a perda, pela CIA, de diversos espiões que ela controlava na URSS.
  2. O segundo é a ajuda que os americanos deram aos guerrilheiros que lutavam contra a ocupação soviética no Afeganistão — onde ficamos sabendo em detalhes que realmente a CIA armou, entre muitos outros, aqueles que fundariam o regime talibã anos mais tarde.
  3. E, finalmente, a queda dos regimes comunistas do Leste Europeu, que pegou a CIA tão de surpresa que seus agentes tinham que apelar para a CNN para saber das novidades.
Dada a importância do primeiro destes pontos no livro, vamos nos estender um pouco mais sobre ele. Se, em décadas anteriores à década de 80, havia um certo equilíbrio na guerra de espionagem entre URSS e EUA, a partir de 1985 a grande quantidade de perdas de agentes duplos russos que trabalhavam em segredo para os americanos começou a fazer o jogo pender para o lado soviético. Alguns agentes ocidentais de patente razoavelmente alta começaram a delatar à KGB quem eram boa parte dos russos traidores. Estas famosas “perdas dos anos 80“, como não poderia deixar de ser, prejudicaram imensamente o trabalho da CIA. Os diversos capítulos que tratam deste assunto são, de longe, a parte mais fascinante do livro : encontros secretos em lugares ermos, malas de dinheiro entregues a agentes duplos dos dois lados, condenações de traidores à morte, todo o tipo de grampo telefônico, espionagem militar, impressionantes códigos de despistamento, e até mesmo o canal secreto de comunicações entre a KGB e a CIA, entre muitos outros detalhes do jogo de espionagem, são mostrados com clareza e brilhantismo. “O grande inimigo“ é muito melhor do que qualquer romance de espionagem: senão por outro motivo, é porque aqui os fatos aconteceram realmente. Além de tudo isto, transparece no livro o grande respeito — e, até mesmo, admiração — que os agentes da CIA tinham para com seus oponentes da KGB. Isto, somado à franqueza com que são mostrados os pontos fracos da Defesa americana, torna o livro bastante verossímil.

A extinta União Soviética também tem papel preponderante no ótimo “Caviar - a estranha história e o futuro incerto da iguaria mais cobiçada do mundo“, da jornalista americana Inga Saffron (Intrínseca, 318 páginas). O livro é um completo painel sobre o caviar:
  • Analisa, entre outros assuntos, a história do seu consumo pelos humanos.
  • Descreve as características que fazem com que o esturjão, o peixe de cujas ovas se faz a iguaria, seja uma espécie de fóssil vivo, já que ele pouco se modificou nos últimos 250 milhões de anos (segundo Saffron, por todas as normas usuais da evolução ele já deveria estar extinto).
  • Menciona os países em que o esturjão foi ou tem sido pescado (em muitos deles o esturjão foi extinto ou está em processo acelerado de extinção).
  • Conta a história das principais empresas que comercializam ou comercializaram o caviar.
O assunto tratado com maior profundidade é a história da pesca do esturjão na URSS, o país que era o maior e melhor produtor de caviar do mundo (hoje ultrapassado pelo Irã) — e o que aconteceu com a pesca por lá quando o regime comunista acabou. Segundo Saffron, o rígido sistema político dos tempos do socialismo conseguia controlar a produção do esturjão, preservando a espécie — até mesmo porque era de grande interesse econômico, por parte dos soviéticos, a venda de caviar para o exterior para a obtenção de divisas em moeda forte. Com o final da União Soviética no início dos anos 90, este cenário mudou completamente: desde então, a pesca clandestina indiscriminada diminuiu sensivelmente a quantidade de esturjões que deságuam no Mar Cáspio (região em que se consegue o melhor caviar do mundo), fazendo com que o peixe chegue a estar em perigo de extinção — para as pesquisas do seu livro, inclusive, Ingrid Saffron chegou a visitar os locais de pesca clandestina na Rússia. Somando tudo, “Caviar - a estranha história e o futuro incerto da iguaria mais cobiçada do mundo“ é um livro muitíssimo bem escrito e fascinante — mas é também um alerta: por cobiça, mas também por necessidade, os russos estão matando sua galinha dos ovos de ouro. E a humanidade toda perde com isto, é claro. (Se você estiver interessado em receber meus textos semanalmente, clique aqui e cadastre seu e-mail. Imagem que acompanha o texto obtida no Gemini.)
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