Marc
Renton (ou simplesmente Rents) é o sujeito de personalidade complexa: mesmo
viciado em heroína e aplicador de golpes aqui e ali, é universitário, culto, e
tem seu próprio e quase justificável senso de justiça. Begbie quer distância de
heroína e é fiel às suas amizades, mas é um psicopata violento que arrebenta
praticamente qualquer um por motivos insignificantes. Sick Boy é um viciado
almofadinha, frio, calculista e manipulador – e fã de James Bond. Já Spud é um
perdedor, um derrotado, que sustenta seu vício em heroína com pequenos golpes e
com o dinheiro Assistência Social – mas é cara legal e, somando tudo, o melhor
caráter dos quatro.
Estes amigos de Edimburgo, capital da Escócia, são os principais personagens de Trainspotting, do autor escocês Irvine Welsh, romance publicado originalmente em 1993 e que teve uma versão cinematográfica lançada em 1996 que foi um cult de enorme sucesso – e que catapultou as carreiras do diretor Danny Boyle e do ator Ewan McGregor. Pornô, lançado originalmente em 2002 (Rocco, 568 páginas, tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari) é a continuação daquela obra e conta o que aconteceu com os personagens citados acima – e mais alguns novos – cerca de uma década depois (Trainspotting se passa no final da década de 80).
Em Pornô,
praticamente ninguém mais usa heroína, só mesmo Spud e muito de vez em quando.
Isto não quer dizer, contudo, que os personagens tenham se transformado em
exemplares e responsáveis pais-de-família. Renton abriu, com sucesso, algumas
boates na capital holandesa e vive um casamento em crise. Spud agora tem um
filho pequeno e a mulher Ally; tudo estaria muito bem se ele não continuasse
totalmente perdido, sem emprego, sem ocupação e dando pequenos golpes para
arranjar algum dinheiro para drogas e bebidas. Begbie passou uma temporada na
cadeia depois de ter assassinado um sujeito e agora está à solta, mais insano,
alucinado e violento do que nunca. Sick Boy morou em Londres um bom tempo, e
agora voltou para Edimburgo, onde abriu um pub; ele não admite mais o
antigo e humilhante apelido e agora quer ser chamado pelo seu nome verdadeiro,
Simon David Williamson. Simon está mais mau-caráter e manipulador que nunca, e
é o verdadeiro personagem principal de Pornô – ao contrário de Trainspotting,
que tinha Marc Renton como protagonista.
Em Pornô, Sick Boy resolve patrocinar um filme pornográfico e está de caso com a inglesa Nikki Fuller-Smith, a única nova personagem com importância similar aos quatro já citados. Jovem, bonita, inteligente e extremamente liberada em relação ao sexo, Nikki faz massagens numa sauna para ajudar a custear seus estudos na Universidade de Edimburgo. Ela não pensa duas vezes antes de aceitar um dos papéis principais no filme que o namorado está produzindo: seu desejo é que o filme pornô lhe abra as portas para um mundo rico e glamouroso. Para ajudar na produção, Sick Boy (ou melhor, Simon) chama Marc Renton, seu antigo desafeto. Só que quem leu (ou assistiu a Trainspotting) deve se lembrar que este último fugiu de Edimburgo com o todo o dinheiro, fruto de uma grande venda de heroína e que deveria ser dividido entre os quatro amigos, mais outro personagem chamado Segundo Lugar. Rents, mais tarde, devolve apenas a parte de Spud, deixando Sick Boy, Begbie e Segundo Lugar a ver navios. Por causa deste golpe, Marc quer distância de Edimburgo. Sobretudo por medo da vingança do violento Begbie, que não achou muito legal (óbvio!) ter sido passado para trás na história da negociação da droga.
(texto publicado no Mondo Bacana em 2017; o texto sobre a continuação de "Pornô", chamado "Skagboys", foi publicado aqui.)
“Marianne” (2019) é uma série francesa de terror da Netflix com oito episódios de cerca de cinquenta minutos cada um. Ela conta a história de Emma, uma escritora de romances de terror que acaba percebendo, para seu desgosto, que os personagens de seus livros tinham correspondentes na vida real. A série é assustadora, tem belas paisagens e ótimas atuações, principalmente de Victoire Du Bois, a atriz principal. Não se impressione pelo fato de a Netflix ter cancelado a série depois da primeira temporada: Stephen King é fã, e isso diz tudo.
Belíssimas paisagens também são um destaque de “Labirinto
verde” (“Zone Blanche”), série franco-belga da TV France 2, distribuída por
aqui pela Netflix, com duas temporadas com oito episódios de cerca de 50
minutos cada uma – está
prevista uma continuação para este ano. A série conta a história de uma
pequena cidade ficcional na França, Villefrance, que tem uma quantidade de
crimes muito superior à da média nacional. Para tentar resolvê-los, a capitã
Laurène Weiss (Suliane Brahim, ótima) conta com poucos ajudantes. “Labirinto
verde”, cuja primeira temporada foi lançada em 2017, é uma série muito bem
conduzida e com alguns toques fantásticos.
“Downton Abbey” é uma série inglesa de grande sucesso lançada
entre 2010 e 2015, com seis temporadas de mais ou menos oito episódios com
cerca de uma hora cada um. Ela foi produzida pelo canal ITV
e atualmente é transmitida aqui no Brasil pela Amazon Prime. A série conta a
história dos Crawley, família nobre inglesa fictícia, entre 1912 e 1925. “Downton
Abbey” aborda temas históricos – a decadência da nobreza inglesa, o naufrágio
do Titanic, o início da mudança nos rígidos costumes da época, a Primeira
Guerra – com brilhantismo, e tem um
grande número de personagens (tanto nobres e como seus criados) muito bem
construídos e interpretados. A série mereceu todo o sucesso que fez – está previsto,
aliás, um filme sobre ela.
Comentei anteriormente
sobre o romance “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick; a série baseada nele,
da Amazon Prime, foi lançada por aqui
com o nome original, “The man in the high castle”. Ela tem quatro temporadas, lançadas
entre 2015 e 2019, cada uma com dez episódios de cerca de uma hora. A história
conta sobre um mundo paralelo em que alemães e japoneses ganharam a Segunda
Guerra Mundial e dividiram os Estados Unidos em duas partes – o leste alemão e
o oeste japonês. É interessante notar, entre outras coisas, a coerência da
série tendo em vista a ideologia dos vencedores: os americanos, vistos como
arianos pelos alemães, não sofrem preconceito e chegam a altos postos na administração
nazista, mas são considerados inferiores pelos japoneses. “The man in the high
castle”, que não terá mais continuação, é uma ótima série distópica, mas menos
assustadora do que “The handmaid’s tale”, por exemplo: afinal de contas,
sabemos que os nazistas e japoneses já perderam a guerra, mas não temos certeza
de que loucuras como as de Gilead jamais acontecerão.
O regime nazista,
comandado por Adolf Hitler na Alemanha, foi um dos mais brutais de todos os
tempos, senão o mais brutal: não só provocou a Segunda Guerra Mundial como
assassinou friamente, fora dos campos de batalha, cerca de seis milhões de
judeus, quinhentos mil ciganos e cinco milhões de pessoas de outras etnias.
Toda esta barbárie ainda chama muito a atenção dos historiadores e do público
em geral, e novos lançamentos de história e de ficção abordam diferentes
aspectos do regime nacional-socialista.
Falecido
recentemente, o historiador alemão Joachim Fest escreveu aquela que é
considerada por grande parte dos especialistas como a melhor de todas as
biografias de Adolf Hitler. O segundo volume desta obra foi relançado em 2006
(o primeiro tinha saído em 2005): Hitler - vol. 2 (Nova Fronteira, 528 páginas).
O primeiro tomo
cobria a vida de Hitler desde o seu nascimento até a posse como Chanceler
(cargo equivalente ao Primeiro-Ministro de um país parlamentarista) alemão, em 30
de janeiro de 1933. Hitler - vol. 2 inicia-se nesta data e termina com a
morte do Führer no seu bunker em Berlim, quando da derrota da Alemanha
em 1945.
Os dois volumes
desta biografia são extremamente detalhados, precisos e bem escritos, fruto de
um trabalho sério e obsessivo do historiador. Merecem totalmente o imenso
prestígio que obtiveram ao longo dos anos, desde a sua publicação na Alemanha
em 1973.
Para o leitor leigo, uma boa introdução ao modo nazista de pensar e de governar encontra-se em Itália Nazista e Alemanha Nazista (Madras, 180 páginas), escrita pelo catedrático de História Europeia Moderna da Universidade Estadual da Carolina do Norte Alexander J. De Grand. A obra faz uma comparação entre os regimes fascista da Itália e nazista da Alemanha em relação a assuntos como a marcha para o poder, os sistemas econômicos, as comunidades, a cultura, os militares, a expansão e a guerra.
Dificilmente
alguém que não tenha ficado chocado com a barbárie nazista não tenha algum dia
se perguntado como estaria hoje o mundo se o Eixo - aliança entre a Alemanha, a
Itália e o Japão - tivesse vencido a Segunda Guerra Mundial. Uma fantasia -
tétrica, como não poderia deixar de ser - neste sentido foi criada pelo
escritor de ficção científica Philip K. Dick no romance O homem do castelo
alto, publicado originalmente em 1962 e apenas agora lançado no Brasil
(Aleph, 304 páginas).
O livro mostra
como seria o início dos anos sessenta após a derrota dos Aliados. Neste
assustador mundo fictício, os japoneses governam a Costa Oeste dos Estados
Unidos e a Alemanha, a Costa Leste. Hitler está tão doente que já não tem mais
condições de governar, e o ditador do Reich agora é o antigo fiel escudeiro do
ex-Führer, Martin Bormann. Os
dirigentes nazistas (como sempre ocorrera, aliás), travam ferozes lutas
internas por nacos de poder: com Heinrich Himmler já falecido, os mais
importantes mandatários alemães são o ministro da aeronáutica e ex-vice premiê Hermann
Göring, o ministro da propaganda Joseph Goebbels, o ex-dirigente da juventude
nazista, o moderado Baldur Von Schirach, e os cruéis Arthur Seyss-Inquart e Reinhard
Heydrich – que, na ficção de Philip K. Dick, não tinha sido morto em
decorrência de um atentado em Praga perpetrado por terroristas tchecos,
conforme realmente ocorreu no ano de 1942. Na África, os nazistas promoveram um
monstruoso genocídio contra a população negra e, em todo o mundo, dão total
publicidade ao assassinato em massa de judeus nas câmaras de gás - que
continua, claro, com todo o fôlego. Os eslavos que não são escravizados ou
assassinados são mandados para regiões distantes da Sibéria. Não satisfeitos em
colonizar a Terra, os alemães mandam os primeiros seres humanos para Marte.
Ainda na parte tecnológica, os nazistas criam foguetes de linhas comerciais que
fazem o trajeto Estados Unidos-Europa em menos de uma hora.
O homem do
castelo alto se passa na
Costa Oeste dos Estados Unidos, na região de San Francisco. No romance, os
americanos são cidadãos de segunda classe, totalmente subjugados ao poder
japonês, que é bem menos agressivo que o correspondente nazista: o governo
imperial permite alguma liberdade de imprensa e jamais perseguiu judeus. Os
japoneses, além disso, admiram a cultura americana, apreciando o jazz e o
blues, e colecionam objetos fabricados nos Estados Unidos no período anterior à
Segunda Guerra Mundial.
O livro conta a história de alguns personagens - quase todos aficionados pelo milenar livro chinês de adivinhação, o I Ching - vivendo nesta Costa Oeste fictícia. O espião alemão que quer, com grande risco de vida, passar informações extremamente importantes para o governo japonês. O artesão judeu que fez operações plásticas e mudou seus documentos para esconder sua origem. A mulher problemática que namora um rapaz pretensamente italiano que ela acaba descobrindo ser um espião alemão preparado para assassinar o escritor de um romance que contava a história de um mundo em que o Eixo perdeu a guerra. O comerciante americano de objetos antigos que está sempre querendo agradar os superiores japoneses. O burocrata japonês que sofre com as políticas nazistas e com as guerras de espionagem.
O homem do
castelo alto é um livro
sombrio e melancólico, e que gruda na memória do leitor.
Se a obra de
Philip K. Dick angustia quando trata de um tempo presente que poderia ter
acontecido com a vitória alemã na Segunda Guerra Mundial, Diário de um
skinhead - um infiltrado no movimento neonazista, do jornalista espanhol
Antonio Salas (Planeta, 280 páginas) assusta ao falar do nazismo "de
verdade" nos dias atuais. O autor,
que utilizou um pseudônimo para assinar o livro por motivos óbvios, passou mais
de um ano como infiltrado entre violentos skinheads
espanhóis, sempre filmando tudo com uma câmera escondida. O risco que ele
correu nesta empreitada foi, obviamente, enorme, e o jornalista brasileiro Tim
Lopes, brutalmente assassinado por traficantes cariocas ao fazer uma reportagem
semelhante em 2002, é citado no livro do espanhol para dar uma idéia do perigo
da situação.
Para infiltrar-se na extrema-direita espanhola, Salas começou pelo maior meio de comunicação dos skinheads na atualidade: a internet. Ele demorou cerca de três meses – por segurança, sempre em lan houses - navegando por chats e sites nazistas, entrando em contato com pessoas do movimento, aprendendo sua gíria especializada e seus códigos de conduta, antes de pegar coragem e conhecer pessoalmente alguns de seus objetos de estudo. Como era de se esperar, para ser um infiltrado convincente ele rapou o cabelo, passou a se vestir como um skinhead e a defender (somente em público, claro) ideias nazistas. As muitas aventuras perigosas pelas quais Salas passou e os sentimentos – muitas vezes contraditórios e surpreendentes – que ele teve neste empreitada perigosa são narrados com grande detalhe, resultando numa leitura de grande impacto na maior parte do tempo. Entre os resultados mais importantes da investigação do jornalista estão a descoberta das íntimas ligações dos skinheads com os partidos legais de extrema-direita (que sempre negaram este contato) e com muitas torcidas organizadas do futebol espanhol – o que ajuda a explicar o recente aumento do racismo observado em arquibancadas europeias.
(textos publicados em 2006 na Revista Dominical do jornal O Estado do Paraná)
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