O título do presente texto é “Zonas húmidas”, e não isto é um erro de digitação. A edição que li deste romance da alemã Charlotte Roche é de Portugal (CADERNO, 222 páginas, tradução de João Bouza da Costa), e lá “úmido” se escreve com “h” mesmo. Como o livro é permeado de gírias, é ao mesmo tempo engraçado e angustiante para um brasileiro ler vários termos um tanto difíceis de compreender.
Publicado originalmente em 2008, o livro - muito bem escrito, aliás - conta a história de Helen, uma adolescente que está no hospital por causa de uma crise de hemorróidas. Enquanto está lá, sofrendo com dores, ela descreve e analisa seu dia-a-dia no hospital e comenta sua vida até então.
Helen é obcecada por secreções corporais e por sexo, e critica a “mania de higiene” de outras mulheres - ela mesma não se preocupa, nem um pouco, com limpeza corporal.
Segundo o site da Amazon, “os jornais relataram desmaios de ouvintes em leituras públicas” de “Zonas húmidas” - e até dá para entender um pouco isso, já que frequentemente o livro é nojento mesmo.
Mas o maior impacto do romance nem está na escatologia, mas na história da própria Helen - e é esse aspecto, que não posso contar para não estragar a surpresa, uma das coisas que fazem de “Zonas húmidas” um ótimo romance.
Como se sabe, Catherine Millet é uma respeitada crítica de arte que causou furor, em 2001, ao lançar o para lá de polêmico livro autobiográfico A vida sexual de Catherine M., sobre o qual comentei que ela falava de sua vida de verdadeira libertina (participando de orgias, relacionamentos longos e curtos) como uma crítica de arte. Aproveitando o grande sucesso do livro, o seu companheiro Jacques Henric lançou, ainda em 2001, “Légendes de Catherine M.” (Denoël, 250 páginas) e a própria Catherine lançou em 2008 “A outra vida de Catherine M.” (Agir, 200 páginas, tradução de Hortencia Santos Lencastre).
Os dois livros são interligados: o livro de Catherine conta as crises de ciúme que ela teve de Jacques em uma certa época da vida – ciúmes um tanto incoerentes, como ela mesma não cansa de repetir, tendo em vista sua própria vida sexual livre. Já o livro de Jacques Henric mostra uma série de fotos da sua companheira nua – você pode ver algumas delas abaixo – e um longo texto em que o autor fala de sua atração por ela, pelas mulheres em geral, sobre as fotos postadas, com um enorme número de citações literárias e, um tanto paradoxalmente, religiosas – sempre com grande conhecimento de causa, aliás.
Dois livros fascinantes de um casal fascinante.
Valérie Tasso é uma escritora, sexóloga e pesquisadora francesa radicada em Barcelona, na Espanha – onde é presença frequente em debates televisivos, falando sobre sua especialidade, o sexo. Li recentemente três livros dela.
“Diário de uma ninfomaníaca” (Essência, 262 páginas) foi seu livro de estreia, publicado originalmente em 2003, e é de caráter autobiográfico. O início da obra conta o tempo em que a autora trabalhava como publicitária em Barcelona, de onde saía para diversas viagens, nas quais se encontrava com vários homens diferentes para fazer sexo. Lá pelas tantas, ela se apaixonada por um “homem errado”, que a engana e acaba a levando à falência. Sem emprego e sem dinheiro, Valérie começa a trabalhar como prostituta para tentar se reerguer.
O livro é francamente ruim, escrito com mão pesada, sem nenhuma sutileza. O leitor não consegue ter muita empatia para com a narradora, o que dificulta muito a leitura num livro com tal temática.
Por sorte eu – que sigo a Valérie Tasso no Twitter e simpatizo com suas postagens – acabei insistindo com a autora e acabei tentando a leitura de “Confesiones sin vergüenza: Las mujeres españolas nos cuentan sus fantasías sexuales” (Grijalbo, 150 páginas), publicado originalmente em 2015. A partir de uma turnê na qual a autora fez palestras e reuniões por toda a Espanha falando sobre sexo, o livro reproduz fantasias sexuais escritas por mulheres participantes de tal turnê. As fantasias apresentadas no livro são de mulheres de todas as idades e estados civis, e o resultado é interessantíssimo.
Muito bom também é “El otro lado del sexo” (Plaza & Janés, 248 páginas, 2006), publicado originalmente em 2006. O livro descreve as pesquisas de Valérie Tasso sobre grupos ou pessoas que têm a originalidade (ou estranheza?) como característica principal. Entre eles, umas tais “Tigresas Brancas”, que passam a vida praticando a felação, elevando esta atividade em arte sagrada; abstinentes sexuais; um médico que diz aumentar o prazer feminino injetando colágeno no ponto G; sadomasoquistas.
Ao contrário de o “Diário de uma ninfomaníaca”, os outros dois livros comentados aqui são de leitura bastante leve e agradável.
Se a polícia política chegasse aqui e eu fosse obrigado a me exilar, levando apenas doze livros de casa, eu acho que eu levaria esses:
- “Heavier than heaven – Mais pesado que o céu: Uma biografia de Kurt Cobain”, de Charles R. Cross (Globo Livros, 456 páginas): a biografia do líder do Nirvana (estou no meio da leitura), me lembraria de uma impressionante história do rock, assim como
- “Atravessar o fogo - 310 letras de Lou Reed” (Companhia das Letras, 792 páginas): uma edição com as letras do líder do Velvet Underground (no original e traduzidas para o português), algumas das quais citei no meu livro “Rua Paraíba”, ainda não publicado. Antes que me perguntem, não existe um livro semelhante com as letras do Morrissey aqui no Brasil;
- “En una noche escura - poesía completa y selección de prosa”, de San Juan de la Cruz (Penguin Clásicos, 560 páginas), que ainda não li, mas que serviria para eu treinar meu espanhol - além do que a poesia do santo carmelita é maravilhosa;
- “Alcorão Sagrado”: conheço outras versões do livro sagrado dos muçulmanos, mas nenhuma tão linda como a tradução de Samir El Hayek, publicada na coleção “Livros que mudaram o mundo”, da Folha de São Paulo. Além disso, a edição, com 700 páginas, tem mais de 2500 notas;
- “Bíblia Sagrada”, da NVI (Nova Versão Internacional – Editora Vida, 1640 páginas), com letra grande e linguagem bem mais acessível do que a maioria das que se encontram por aí;
- “Légendes de Catherine M.” (Denoël, 240 páginas), em que o marido de Catherine Millet – crítica de arte e autora do escandaloso e autobiográfico “A vida sexual de Catherine M.” – posta fotos da esposa, nua, e as comenta;
- “Machado de Assis – Obra Completa – Volume 1 – Romances” (Companhia Nova Aguilar, 1216 páginas): o bacana do mais importante escritor brasileiro é que ele faz comentários geniais em cada página - o que acaba incentivando bastante a releitura. Reler é útil num exílio, o que fez me lembrar também de
- “La Chartreuse de Parme”, de Stendhal (Éditions du milieu du monde, 676 páginas), provavelmente o único romance que li quatro vezes;
- “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood (Rocco, 368 páginas): preciso confessar que gostei mais da série “Handmaid’s Tale” do que do romance que lhe deu origem. Mas o mundo que a escritora canadense criou é assombroso e distópico – e são livros que eu teria que levar e não séries para TV, não é?
- “Oeuvres”, de Diderot (Bibliothèque de la Pléiade, 1448 páginas), edição que amo tanto que até já fiz um texto sobre ela no meu blog;
- “Poemas”, de Friederich Hölderlin (Companhia das Letras, 216 páginas): vou querer levar comigo o meu poema preferido, “Aos jovens poetas”:
“Irmãos! Talvez a nossa arte logo amadureça
Porque, como o jovem, de há muito fermenta para
Chegar logo à tranquila beleza;
Sede só piedosos, como o grego era!
Amai os deuses, pensai nos mortais com afeto!
Ebriez e frieza, lição e descrição: odiai-as
Todas e, se o mestre vos der medo,
Pedi conselho à grande Natureza.”
- “O verão de 54 (novelas)”, de Fabricio Muller (Appris, 222 páginas): ah, que se dane.
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