A primeira série francesa da Netflix, “Marseille”, teve críticas em sua maioria desfavoráveis e por isso não será renovada para uma terceira temporada. Uma queixa comum diz respeito a uma suposta falta de originalidade - Patrícia Kogut, de “O Globo”, por exemplo, comentou a respeito de suas semelhanças incômodas com séries como “The killing”, “The affair” e “House of Cards”. Bem, eu não assisti a nenhuma das três citadas, e será que isso me ajudou a gostar de “Marseille”? Sei lá.
As duas temporadas de série têm oito episódios de cerca de 50 minutos cada uma, e tratam principalmente dos jogos de poder entre o prefeito de Marselha, Robert Taro (Gérard Dépardieu) e seu desafeto e antigo seguidor Lucas Barrès, vivido por Benoît Magimel. No meio das disputas políticas, dramas familiares, relação com traficantes, a ascensão da extrema-direita, e muito sexo.
Gostei muito das muitas tramas que “Marseille” apresenta e a interpretação de Gérard Dépardieu é um negócio de outro mundo: vi poucas atuações deste nível - se é que já vi alguma.
Em “A Desgraça de Zeno” uma mulher trafica drogas pela primeira vez e se dá muito mal. “Amor, Amor, Abra as Asas” é uma declaração sem-vergonha de amor de um homem para sua amada. “O Recibo” conta um estupro. “Na Virada da Noite” conta a vida de um homem devastado pelas drogas. “Violetas e Pavões” é, também, uma safada declaração de amor – mas do ponto de vista feminino. Em “Não Sou o Buba” o protagonista tenta explicar que foi preso por engano. Em “Misericórdia” uma senhora doente é internada na ala dos idosos, “anexa à dos psicóticos”. “Tenha Uma Boa Noite!” conta um tenso atravessar de uma região perigosa. Em “Ele” um pai estupra a própria filha. “Lábios Vermelhos de Mulher” conta as fantasias sexuais de uma mulher casada. “Elas Cantam Só Para Mim” é sobre as desventuras de um fotógrafo. Em “Uma Senhora” uma mãe é abandonada pelos três filhos.
Em “Violetas e Pavões” (Record, 128 páginas), publicado em 2009, Dalton Trevisan conta mais histórias sórdidas, violentas, eróticas, como tem feito há tantos anos já.
O jogo é na Islândia, no Reykjavík Rapid de 2004. As
partidas já começaram, os jogadores já estão cada um de um lado de suas mesas,
mas um enxadrista ainda não chegou. Seu adversário está lá, andando de um lado
para outro, com a expressão perdida. Ele toma um refrigerante, o que combina
com sua própria idade: o jogador que já chegou tem apenas treze anos, mas sua aparência
é de ainda menos idade: é um pré-adolescente, quase criança. Mais tarde o
garoto diria que não queria ganhar o jogo pela ausência de seu adversário, já que
ele queria mesmo jogar aquela partida.
O adversário finalmente chega na sala, esbaforido. Ele se
senta de seu lado da mesa, cumprimenta a criança, que está jogando com as
brancas e faz o primeiro lance. O adversário – um senhor de quarenta anos, com
cabelos muito curtos e já grisalhos – põe as mãos na cabeça, parece preocupado,
pensa um pouco e logo faz seu primeiro lance.
O jogo termina empatado: o garoto, que estava melhor na
partida mas que teve problemas com o tempo, acabou fazendo um lance ruim no
final do jogo, que permitiu que o senhor mais velho acabasse conseguindo um
empate.
Os melhores momentos deste jogo são apresentados num vídeo com
mais de cinco milhões de visualizações, apresentado no YouTube neste link, e a partida
é dissecada com a habitual competência por Rafael Leite no seu Xadrez Brasil, neste link. O garoto do
vídeo se chama Magnus Carlsen, o jogador que alcançaria o maior rating ELO[1]
da história (2882, em 2014) e é campeão mundial desde 2013. Já o senhor se
chama Garry Kasparov, russo campeão mundial[2]
entre 1985 e 2000, considerado por muitos o melhor jogador de xadrez de todos
os tempos.
Em 2004, quando ocorreu o jogo descrito acima, Kasparov
nunca tinha disputado uma partida contra um adversário tão jovem. Suas
expressões de espanto, em muitos momentos da partida, são muito engraçadas: o
gênio russo não parecia se conformar em estar sofrendo contra um garotinho aparentemente
tão inofensivo.
Mas o que é maravilhoso mesmo no vídeo é que ele pode ser
considerado o momento simbólico do final de uma era – a do domínio de Kasparov –
e o início de outra, a de Magnus Carlsen, atual campeão mundial.
[1] O rating Elo é um método estatístico utilizado para se calcular a
força relativa entre jogadores de xadrez, inventado pelo físico americano Arpad
Elo.
[2] A história dos campeonatos mundiais de Kasparov é meio complicada, já que ele brigou com a FIDE em 1993.
Fiquei meio espantado com a frase de Machado de Assis, em
Brás Cubas: “não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das
nuvens, que de um terceiro andar” (já tinha lido a obra, mas não me lembrava em
absoluto desta citação). Explico: ela lembra, de maneira notável, uma frase de
Proust: “é melhor cair das nuvens do que cair dos planos”.
Logo fiquei pensando nos paralelos incríveis entre duas
frases tão semelhantes: será que Proust sabia da obra de Machado, escrita em
1881, quando o francês tinha dez anos? Provavelmente não: se a literatura
brasileira tem pouca penetração no exterior hoje em dia, imagine-se no século
XIX. Então, só me restava comparar as duas sentenças, na maneira incrível como
“planos”, na frase de Proust, se transformava em “terceiro andar”, na
machadiana: nos dois casos a realidade atinge de maneira definitiva e
inexorável o “sonhador”, aquele que “não mantém os pés na terra”, que “vive nas
nuvens”.
Que notável! Dois gênios, separados por um oceano e algumas
décadas de distância, praticamente criando uma transmissão de pensamentos!
Mas é melhor desconfiar, né? Antes de evoluir nos meus
próprios pensamentos, resolvi dar uma olhadinha na internet: a frase do Proust
realmente é citada, mas em sites de autenticidade duvidosa. Mais do que isso,
nas minhas pesquisas em francês não surgiu nada parecido com a sentença
supracitada. A frase, com quase 100% de certeza, não é de Proust, e quase caí
no conto (eu a tinha lido como se fosse dele há muitos anos já).
Enfim, esse assunto tem tudo para cair em outra reflexão:
quem inventou essa coisa? Provavelmente algum brasileiro, que conhecia a frase
de original de Machado de Assis e resolveu dar um lustro afrancesado na coisa.
Pensando nisso, não posso deixar de me divertir ao pensar nesse
suposto brasileiro piadista.
(Crônica baseada no seguinte desafio literário proposto por Robertson Frizero: No capítulo CXIX do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o narrador-protagonista lista uma série de irônicos aforismos de sua autoria. O desafio de hoje é escolher um desses aforismos e escrever um conto, crônica ou poesia de até 500 palavras a partir de sua interpretação da frase. Estes são os aforismos machadianos: (...) Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.)
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