O Piloto
Podcasts
O Piloto
26 de janeiro de 2025 0
Ilo Rodrigues era um piloto amador de avião que desapareceu num voo solitário pouco antes do Natal de 1986, e que nunca mais foi encontrado – nem ele, nem a aeronave que pilotava. Nascido em 1946, ele era o terceiro dos quatro filhos do casal Gecy e Castorino Augusto Rodrigues – este último, um alto funcionário das empresas Votorantim, de propriedade José Ermírio de Moraes, uma das maiores empresas do país. Por motivos de trabalho, Castorino morou com a família no Recife, e acabou se estabelecendo em Curitiba. Por volta de 1980, Ilo passa num concurso público e mais tarde seria nomeado diretor da Delegacia Regional do Ministério da Agricultura, em uma das fronteiras mais complicadas do Brasil: Foz do Iguaçu, de onde é possível ir para o Paraguai e para a Argentina. Como ele era um homem de gastos extravagantes – era proprietário do avião em que desapareceu, era fotógrafo amador e gastava parte expressiva do seu salário com a ex-esposa Wanda, com quem teve dois filhos, Cassiano Luciano – e fontes de renda pouco claras – uma loja de bijuterias e negócios variados que até hoje não se sabe exatamente quais eram -, sempre se desconfiou que o desaparecimento de Ilo estivesse ligado com alguma história de origem escusa. Outro possível motivo do seu sumiço poderia ter sido o sequestro do seu avião por traficantes bolivianos, como aconteceu com várias outras aeronaves brasileiras na época. A história de Ilo Rodrigues e do seu desaparecimento é o tema “O Piloto”, de Ivan Mizanzuk, provavelmente o mais importante criador de podcasts na área de true crime do Brasil – sim, basicamente ele foi o responsável por descobrir a inocência dos principais acusados do rumoroso caso do assassinato do menino Evandro, que tinha ocorrido em 1992 na cidade de Guaratuba, no Paraná. Publicado pela Globoplay em oito episódios, o podcast  “O Piloto” é a sétima temporada do “Projeto Humanos” (“O caso Evandro”, citado acima, foi a quarta e, além do podcast também tem uma série televisiva na Globoplay). Se o desaparecimento – sobre o qual Ivan Mizanzuk cria sua própria teoria – de Ilo Rodrigues é o principal tema da série, o que fica mesmo na audição de “O Piloto” é a impressionante história familiar descortinada ali. O pai de Ilo, Castorino, era um homem extremamente controlador (seus filhos tinham nomes como Ida, Iná e Ivo “para que não tivessem apelidos”) e cruel – era extremamente mesquinho com dinheiro, nunca quis ter filhos e fez sua esposa Glecy fazer diversos abortos. Mas todos os entrevistados no podcast, tanto os descendentes diretos de Castorino – filhos, netos e a bisneta – quanto a primeira e segunda esposas de Ilo – Wanda e Cristina – mostram uma extrema e comovente franqueza sobre todas as qualidades e defeitos dos principais personagens de “O Piloto”: o homem desaparecido e seu pai. É uma história, mesmo, profundamente humana, que faz com que o nome da série “Projeto Humanos” seja extremamente bem colocado.
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Emilia Pérez
Cinema
Emilia Pérez
19 de janeiro de 2025 0
Rita (Zoë Saldaña) é uma advogada brilhante, mas insatisfeita porque é pouco reconhecida por seus superiores. Ela, que mora no México, é sequestrada na rua e os perpetradores estão a serviço de um dos maiores chefes de cartel de droga do país. O que o traficante, Juan “Small Hands” Del Monte, quer de Rita é pouco usual, para dizer o mínimo: não se sentindo à vontade como homem, ele – que é violentíssimo, casado com uma linda mulher chamada Jessi del Monte (Selena Gomez), com quem tem um casal de filhos – quer fazer transição de gênero. Juan quer passar a ser “Emilia Pérez” (Karla Sofía Gascón é a atriz trans que faz os dois papéis). Melhor não contar mais para não dar spoiler. Dirigido pelo francês Jacques Audiard, o musical “Emilia Pérez” (130 minutos, 2024) é um filme franco-mexicano que é um dos grandes favoritos para o Oscar de 2025. Entre vários prêmios já amealhados, ele venceu o do júri de Cannes do ano passado e suas quatro atrizes principais (Zoë Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez e Adriana Paz – que vive Epifania, personagem que aparece na segunda metade do filme) venceram conjuntamente o prêmio de melhor atriz daquele festival. “Emilia Pérez” estreará no Brasil no dia 6 de fevereiro próximo, e já foi lançado pela Netflix nos Estados Unidos. Quando se imagina um musical, normalmente se pensa em alguma coisa com glamour do tipo Broadway, como os filmes “Cantando na Chuva” ou “Chicago”. A primeira coisa que chama a atenção em “Emília Pérez” é que as cenas musicais são “esquisitas” – na falta de uma palavra melhor. Boa parte do filme se passa em lugares pobres e periféricos e, quando os personagens começam a cantar, a tendência é se perguntar: “mas que coisa estranha é essa?” – já que, ao contrário de glamour, as cenas musicais parecem só aprofundar a pobreza e a violência (estamos falando de uma poderosa gangue de traficantes mexicanos, afinal) apresentadas na história. Tudo parece meio fora de lugar em “Emilia Pérez”. A história esquisita de um homem poderoso e violento que quer virar mulher. As cenas musicais diferentes do que se espera. Apesar de a história ser mexicana, o filme é francês e as principais personagens são a espanhola Karla Sofía Gascón e as americanas Zoë Saldaña e Selena Gomez – fatos que causaram polêmica no México. O sotaque desta última, aliás, foi bastante criticado, mas isso aparentemente não incomodou o diretor Jacques Audiard, que não fala espanhol e que declarou que as diferenças entre “as nuances do acento mexicano versus castelhano passaram em branco” por ele e que foram “arrumadas na edição”. Eu diria que esse problema do sotaque de Selena Gomez é só mais uma esquisitice do filme, e por isso este fato não incomodou o diretor, que queria fazer um negócio diferente mesmo. “Emilia Pérez” parece se passar em uma realidade paralela, que se parece e que não se parece com a vida real. Mas é intenso e original o suficiente para merecer todas as críticas favoráveis e os prêmios que têm recebido. (imagem que acompanha o texto, com Karla Sofía Gascón no papel de Emilia Pérez,  obtida no site G1)
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David Lynch (1946-2025)
Cinema
David Lynch (1946-2025)
16 de janeiro de 2025 0
Quando, na adolescência, eu e alguns poucos amigos saímos assustados do cinema depois de uma sessão de “Veludo Azul”. Quando, recém-casados, eu e a Valéria saímos assustados do cinema depois de uma sessão de “Coração Selvagem”, Palma de Ouro em Cannes. Quando, mais de dez anos atrás, dei uma piscadela e acordei assustado com uma cena esquisita de “Império dos Sonhos”, um dos meus filmes preferidos e que não sei bem por que amo tanto – deve ser porque ele se parece com alguns dos meus próprios sonhos. Quando entendi pouquíssimo a história de “Cidade dos sonhos”, filme “explicado” em uma postagem perdida na internet, que eu li e da qual não lembro nada, nem onde foi. Quando, durante a pandemia, assisti à terceira temporada de “Twin Peaks” na Netflix, não gostei, mas que tinha umas imagens impressionantes – algumas parecidas com um clipe do Radiohead, será que só eu reparei? Quando fiquei absolutamente hipnotizado pela delicadeza de “História Real”. Quando resolvi colocar a sua foto no meu álbum “cinema”, do Facebook, apenas para descobrir que ela já estava lá. Quando, também na pandemia, assisti às duas primeiras temporadas de “Twin Peaks”, e descobri que a estética vaporwave tinha sido inventada por ele ainda nos anos 1990. Quando escrevi aqui sobre “Os últimos dias de Laura Palmer” e não cumpri a promessa feita ali de escrever sobre a série “Twin Peaks”. Quando, alguns dias atrás, fiquei chocado comigo mesmo ao perceber que não tinha assistido, numa caixa de DVDs que comprei há muitos anos, “Erasehead” e “O homem elefante”, e me perguntei: será que ele vai fazer mais filmes? Não vai. David Lynch faleceu hoje (16 de janeiro de 2025) e fico me lembrando das muitas vezes – algumas citadas acima – em que suas obras marcaram o meu amor pelo cinema. Descanse em paz, gênio. (foto que acompanha o texto obtida no site do jornal “The Guardian”)
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Charles Dickens, Henry James e um álbum de fotos no Facebook
Literatura
Charles Dickens, Henry James e um álbum de fotos no Facebook
12 de janeiro de 2025 0
Foi num livro (“Drible”, de Sérgio Rodrigues) – que minha mãe insistiu por anos para que eu lesse, que só estou lendo agora (e amando) e que será tema de minha série “Livros que minha mãe amava” -, que li o seguinte trecho: “- Ah, então esse é o nosso Dickens – riu um homem de suspensórios sentado de frente para ele. Meu rosto queimava.” Eu percebi na hora, pelo contexto, que aquele homem de suspensórios era o jornalista e escritor Nelson Rodrigues – afinal, li a biografia dele escrita pelo Ruy Castro muitos anos atras, também recomendada pela minha mãe. Mas o que mais me tocou na memória foi a menção ao escritor britânico Charles Dickens (1812-1870). Não sei de onde que tirei meu preconceito contra Dickens na infância. Minhas fontes impressas principais de cultura eram a Enciclopédia Abril e a Revista Veja. Foi de uma dessas? Sei eu, eu sei que eu tinha a ideia de que Dickens era um romancista meio brega e muito meloso. Bem, isso mudou quando Morrissey recomendou o escritor como sugestão de leitura numa entrevista, ali num momento entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Todos os fãs do ex-vocalista da banda inglesa Smiths sabem que ele é obcecado por Oscar Wilde, e alguns sabem que ele declamou um texto de Marcel Proust num show. Quanto a Dickens, só soube que ele citou este escritor naquela entrevista, e mais nada (por uma coincidência engraçada, uma outra das raras sugestões literárias de Morrissey foi “O livro do desassossego”, de Fernando Pessoa, que minha mãe amava imensamente e que será também tema da série “Livros que minha mãe amava”). Enfim, dica do Morrissey é dica do Morrissey e entrei numa “fase Dickens”, muitos anos atras. Eu me apaixonei. Não tenho bem certeza quais livros dele eu li, mas certamente nesta lista estão incluídos os romances “Grandes esperanças” (que foi o que mais gostei), “As aventuras do sr. Pickwick”, “Um conto de duas cidades”, “David Copperfield”, “Oliver Twist” (e, quem sabe, “A pequena Dorrit”). Ainda nos anos 1990 estava na moda o tal “cânone literário ocidental” do crítico britânico Harold Bloom, sobre o qual o famoso jornalista brasileiro Paulo Francis falava bastante, e que foi compilado numa obra chamada “O cânone ocidental”, na qual o crítico citava e descrevia os – segundo ele – grandes escritores ocidentais. Um dia, numa livraria, dei uma folheada no livro de Bloom, e lá estava escrito algo como “que era consenso entre a crítica especializada que o grande livro de Dickens era ‘A casa soturna’”, sobre a qual eu pouco tinha ouvido falar. Minha “fase Dickens” tinha passado alguns anos antes, mas me vi na obrigação de ler o romance considerado “por grande parte da crítica” o melhor do grande escritor britânico. Foi meio difícil encontrar o longo (824 páginas) romance, que tenho numa edição (Nova Fronteira, tradução de Oscar Mendes) obtida provavelmente na Livraria do Chain, a preferida de Dalton Trevisan. A leitura inicial me revelou um romance excelente, primorosamente escrito, em tom muito sério, muito diferente do que eu estava acostumado com Dickens. Mas tinha personagens demais! Quando eu começava a me sentir familiar com um personagem ou uma história, já entrava outra coisa. E isso aconteceu tantas vezes que eu – que estava numa fase de poucas leituras – com muita dor no coração resolvi abandonar o romance escolhido “por grande parte da crítica” o melhor de Charles Dickens. Entro agora no tema que originou este texto: minhas pequenas maluquices. Gosto de pensar que todas as pessoas têm uma pequena mania que a maioria dos outros pode achar estranha. Assim fica mais fácil conviver com as minhas birutices. Eu, por exemplo, só tenho um TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) que reconheço como tal: nunca comprar pães em número ímpar. Se, em termos de TOC, provavelmente não saio disso, eu tenho uma pequena mania, um negócio que eu levo muito a sério, mas que sei que não tem a menor importância. Este “negócio” são meus álbuns de fotos “cinema”, “literatura”, “músicas”, “esportes” e “tv” no Facebook. Cada um destes álbuns tem retratos daquelas pessoas que eu considero as mais importantes em seus campos. Sobre o álbum “músicas”, por exemplo, escrevi aqui o seguinte: “Eu não sei como explicar direito, mas acho que isso deve acontecer meio com todo o mundo: umas músicas batem diferente das outras. Sei lá, é como se elas tocassem um nervo que as outras não tocam. Normalmente os músicos, ou compositores, ou cantores, ou bandas, que têm músicas que ‘batem’ aqui comigo estão no meu álbum ‘músicas‘ do Facebook. Sempre que vou colocar uma foto lá fico me perguntando se aquele músico compôs (ou interpretou) coisas que realmente tocaram aquele ‘nervo’ metafórico”. Às vezes fico meses (quando penso no assunto, é claro) tentando me decidir se um artista, escritor ou esportista deve ou não entrar em algum álbum de fotos no Facebook. Às vezes – como no caso das bandas Mgła ou do The Brian Jonestown Massacre, citadas recentemente por aqui – a identificação é imediata e logo coloco as fotos correspondentes no álbum (“músicas”, nos dois casos). Enfim, pus um negócio na cabeça: como eu tinha lido Dickens muito antes de o Facebook existir, o escritor britânico só “mereceria” entrar no álbum de fotos “literatura” quando eu acabasse de ler “A casa soturna”. Olha o tamanho da birutice do sujeito (no caso, eu). Como não acabei de ler o romance de Dickens “mais estimado pela crítica”, ele não está no álbum correspondente até hoje. E Henry James (1843-1916), que tem um livro na foto que acompanha o texto, o que tem a ver com essa maluquice? Bem, também li romances deste grande escritor americano décadas atrás, e também resolvi não colocar sua foto no meu álbum do Facebook enquanto não acabasse de ler um romance seu – no caso, “As asas da pomba” (Ediouro, 555 páginas, tradução de Marcos Santarrita): meu texto seria um paralelo entre estes dois gigantes.
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Fernanda Torres escritora
Cinema, Literatura
Fernanda Torres escritora
6 de janeiro de 2025 0
A vencedora do Globo de Ouro de 2025 de melhor atriz de filme (drama) é também uma excelente escritora. Seguem abaixo os dois textos que escrevi sobre os romances de Fernanda Torres. Aproveitando a vitória dela, acabei de comprar seu livro de crônicas, “Sete anos”, sobre o qual logo comento por aqui. *** “O Fim” 27 de julho de 2015 O início de cada um dos capítulo de O Fim, de Fernanda Torres, é um monólogo interior com os últimos momentos da vida de cada um dos cinco personagens principais da história – na continuação, os capítulos são escritos em terceira pessoa, contando as histórias inter-relacionadas de Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro. Os cinco amigos viveram a grande liberdade de sexo e drogas no Rio de Janeiro entre os anos 50 a 70 e terminam a vida – a partir do início dos anos 90 – deprimidos, solitários e, quase sempre, abandonados pelos familiares mais próximos – a quem haviam negligenciado durante toda a vida. Fernanda Torres parece querer mostrar, de forma cínica e amarga, que a grande liberdade de costumes daqueles anos loucos pôde transformar quem os viveu em monstros egoístas, autoindulgentes, capazes de trocar qualquer valor moral por um naco de prazer. Quem conhece aquela atriz meio amalucada de Os Normais e das suas, muitas vezes, destrambelhadas entrevistas, não consegue imaginar que seu primeiro romance seria tão sério e, porque não dizer, profundo – mesmo que muitas vezes bem humorado. Pelo menos, não me surpreendi com a qualidade indiscutível de sua prosa: as colunas mensais que ela escreve na Folha já me mostravam que ali estava alguém com um grande talento literário. Fico na expectativa de seus próximos livros. *** “A glória e seu cortejo de horrores” 22 de abril de 2018 Eu tinha escrito o seguinte sobre o romance anterior de Fernanda Torres, “O Fim”, lançado em 2013: “Quem conhece aquela atriz meio amalucada de Os Normais e das suas, muitas vezes, destrambelhadas entrevistas, não consegue imaginar que seu primeiro romance seria tão sério e, porque não dizer, profundo – mesmo que muitas vezes bem-humorado. Pelo menos, não me surpreendi com a qualidade indiscutível de sua prosa: as colunas mensais que ela escreve na Folha já me mostravam que ali estava alguém com um grande talento literário. Fico na expectativa de seus próximos livros. ” Baseado nisso, quando descobri que Fernanda Torres tinha lançado um segundo romance, “A glória e seu cortejo de horrores” (Companhia das Letras, 215 páginas), comprei-o assim que pude, e o livro é o objeto do presente texto (ela também lançou em 2014 um livro de crônicas, “Sete Anos”, que ainda não li). “A glória e seu cortejo de horrores” conta a história do ator Mario Cardoso, personagem fictício que é uma espécie de exemplar de toda uma geração: ainda jovem, nos anos 60, foi fazer uma espécie de teatro de guerrilha no sertão nordestino; depois, já no Rio de Janeiro, ingressa na produção de “Hair”, exemplar mais famoso do desbunde hipppie; acaba sendo descoberto mais tarde em duas produções de vanguarda, “Tio Vânia”, de Tchekhóv, e “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos. O enorme sucesso destas duas montagens acaba por levá-lo à TV, onde faz novelas e fica rico e famoso no país inteiro. Anos depois, abandona a TV e cria uma montagem totalmente fracassada de “Rei Lear”, de Shakespeare – e é com este fracasso que “A glória e seu cortejo de horrores” se inicia: a vida pregressa de Mario Cardoso é contada por meio de suas reminiscências. Confesso que eu achava irritantes boa parte das entrevistas do extinto programa de entrevistas do Jô Soares com atores, frequentemente se auto elogiando, falando maravilhas de seus próprios trabalhos: a acreditar em boa parte de que eles falavam de si mesmos no programa do Jô, o teatro é uma arte espetacular, os atores são pessoas especiais, participar de peças é sempre recompensador e especial. Em “A glória e seu cortejo de horrores” há muito pouco deste discurso cansativo: é ressaltada, claro, a importância do teatro e da arte, mas o próprio Mario Cardoso não cansa de repetir que a maior característica dele é a vaidade, o amor por si mesmo. É claro que no romance as coisas não são assim tão esquemáticas: afinal de contas, mais do que uma ótima atriz, tenho a impressão de que Fernanda Torres é, mesmo, uma grande escritora, que escreveu mais um grande livro. E grandes livros têm mais de uma leitura possível. *** (Foto que acompanha o texto obtida no Gshow)
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Auschwitz por dentro e por fora
Cinema, História
Auschwitz por dentro e por fora
5 de janeiro de 2025 0
O filme começa em um cenário idílico, numa beira de rio: alguns jovens, crianças e casais se divertem e relaxam numa bela paisagem com um linda vegetação. As pessoas têm uma tonalidade de pele muito clara, uns são loiros, alguns rapazes estão sem camisa. Eles voltam por um bonito caminho no meio do mato. A casa de um casal do grupo citado acima é grande, bonita, com belos jardins perfeitamente cuidados – lembra um pouco a perfeição dos jardins de “Playtime – tempo de diversão”, clássico de Jacques Tati de 1967. As cenas de lugares bonitos com uma linda vegetação também lembram a cidade onde vivem os personagens principais da primeira temporada da série “O conto da aia”, baseada no romance homônimo de Margaret Atwood. O filme em que questão é “Zona de interesse” (direção de Jonathan Glazer, Estados Unidos, Reino Unido e Polônia, 2023, 105 minutos, disponível no Prime Video), e não é nenhuma comédia que debocha da modernidade do final dos anos 1960, como “Playtime”, e nem uma história fictícia que ocorre num futuro distópico, como “O conto da aia”. O casal que mora na linda e bela casa é formado por Rudolf Höss (vivido por Christian Friedel), que foi o comandante do campo de extermínio de Auschwitz e é considerado por muitos o maior assassino em massa da história, e sua esposa Hedwig Höss (vivida por Sandra Hüller). “Zona de interesse” é baseado numa história tragicamente real. O principal acontecimento do filme é a tentativa dos superiores de Höss de tirá-lo do cargo de comandante do campo de extermínio, e o desespero dele e da sua mulher, que lutam para a sua permanência no posto. O horror do lugar é lembrado só de vez em quando, como quando se ouve o grito de alguns prisioneiros, ou quando se percebe que o comportamento das empregadas de  Hedwig Höss é estranhíssimo: elas são judias e basicamente não falam e nem olham para cima. Na maior parte do filme tudo é limpo, organizado, bonito e funcional. É assustador. Não à toa Steven Spielberg acha que “Zona de interesse” é o melhor filme sobre o Holocausto já feito. Se tudo é assustadoramente limpo e organizado em “Zona de interesse”, em “O filho de Saul” (dirigido por László Nemes, Hungria, 2015, 107 minutos) tudo é exatamente o seu contrário: o filme conta a história de Saul Ausländer (Géza Röhrig), um prisioneiro de Auschwitz que trabalha jogando os cadáveres assassinados nas câmaras de gás num crematório, num ritmo de trabalho inumano. Lá pelas tantas Saul acha que um menino que sobreviveu ao gás e foi posteriormente assassinado por um guarda nazista é seu filho, e ele tenta dar um enterro digno e religioso para o garoto. Não vou contar mais para não dar spoiler. A câmera, em close-up, fica grande parte do tempo filmando a frente e as costas de Saul Ausländer, deixando quase todo o resto fora de foco. Isso acaba deixando uma sensação de permanente desconforto no espectador, como se toda a violência que os prisioneiros vivem não fosse o suficiente. Em “O filho de Saul” basicamente não há nenhum momento de trégua, e provavelmente este filme consegue dar uma ideia bastante verossímil do inferno que era ser prisioneiro em Auschwitz – bastante diferente, aliás, da visão paradisíaca que Rudolf Höss e Hedwig Höss tinham da vida a um muro de distância. (Agradeço especialmente ao crítico André Barcinski, por me chamar a atenção num vídeo no YouTube sobre “Zona de interesse”, e a meu grande amigo Antonio Carlos Sandoval Pedro, o Nash, que é especialista em cinema e comentou “O filho de Saul” em uma apresentação com debate na UFPR alguns anos atrás. A imagem que acompanha o texto, de “O filho de Saul”, foi obtida no site “O plano crítico”.)
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Livros lidos recentemente
História, Literatura, Religião
Livros lidos recentemente
28 de dezembro de 2024 0
“Nação tomada pelo medo”, de Thom Yorke & Stanley Donwood (Darkside, tradução de João Paulo Cuenca, 168 páginas, publicado originalmente em 2021): a poesia de Thom Yorke, vocalista da grande banda britânica Radiohead, é claustrofóbica, estranha e de forte crítica social. Os desenhos deste lindo livro em capa dura, a cargo de Stanley Donwood, são tão impressionantes quanto. Foi bom ter tatuado o símbolo da banda no braço, ele aparece em grande parte dos desenhos de “Nação tomada pelo medo”. *** “O livro dos espíritos”, de Alan Kardec (FEB, tradução de Guillon Ribeiro, 367 páginas, publicado originalmente em 1857): o cemitério de Père Lachaise, em Paris, é famoso por ser o descanso final de gente muito famosa, como Oscar Wilde, Marcel Proust e Jim Morrison, vocalista da banda americana The Doors – mas o túmulo mais visitado é o do criador do espiritismo, Alan Kardec, graças aos espíritas brasileiros que vão até lá render homenagens ao fundador desta religião extremamente popular por aqui, mas basicamente esquecida no resto do mundo (obtive boa parte dessas informações num documentário da TV francesa). “O livro dos espíritos” é escrito em forma de perguntas e respostas, e é o primeiro livro que os interessados nesta religião normalmente devem ler. *** “A revolução dos bichos”, de George Orwell (Companhia das Letras, tradução de Heitor Aquino Ferreira e posfácio de Christopher Hitchens, 147 páginas, publicado originalmente em 1945): eu era pré-adolescente quando li esta obra-prima pela primeira vez. Ainda tinha ilusões socialistas, e foi um choque para mim. Além disso, não sabia da relação de “A revolução dos bichos” com Stálin e Trótski. A releitura me confirmou que George Orwell sabia das coisas. *** “Maigret sai em viagem”, de Georges Simenon (L&PM Pocket, tradução de Alessandro Zir, 164 páginas, publicado originalmente em 1958): neste livro o famoso Inspetor Maigret investiga um crime na alta sociedade. Simenon é sempre muito bom, mas não gostei muito da solução do crime neste romance. *** “Mistérios de Curitiba”, de Dalton Trevisan (Record, 141 páginas, publicado originalmente em 1968): “A palavra do Senhor contra a cidade de Curitiba no dia de sua visitação: / Suave foi o jugo de Nabucodonosor, rei de Babilônia, diante de Curitiba escarmentada sob a pata dos anjos do Senhor como laranja azeda que não se pode comer de azeda que é. / Gemerei por Curitiba: sim, apregoarei por toda a Curitiba a nuvem que vem pelo céu, o grito dos infantes a anuncia; porque o Senhor o disse.” E assim por diante. *** “O queijo e os vermes – o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição”, de Carlo Ginzburg (Companhia de Bolso, tradução de Maria Betânia Amoroso, 256 páginas, publicado originalmente em 1976): Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, era um moleiro da região do Friuli, na Itália, e que nasceu em 1532. Ele não só sabia ler e escrever, numa época em que pessoas de sua classe social eram quase sempre analfabetas, como suas leituras o faziam ter ideias sobre a origem do mundo. Segundo Menocchio, a vida e mesmo Deus surgiram de uma massa pastosa inicial, assim como os vermes surgem – conforme a crença da época – do queijo. Sabemos da vida e das ideias de Menocchio porque ele foi longamente interrogado pela Inquisição, com tudo registrado. “O queijo e os vermes” apresenta uma história insólita, tão esquisita e fascinante quanto aquela dos benandanti, descritos em outra obra do mesmo autor, “Os andarilhos do bem”, comentado aqui. *** “Da próxima vez, o fogo”, de James Baldwin (Companhia das Letras, tradução de Nina Rizzi, 128 páginas, publicado originalmente em 1962): composto por dois textos, o curto “Carta a meu sobrinho em ocasião do centenário da abolição”, e “Carta de uma região de minha mente”, este livro é, segundo a contracapa, um “clássico incontornável no debate sobre os direitos civis nos Estados Unidos”. Nesta obra extraordinária, Baldwin não só discute as raízes e as consequências do racismo norte-americano, como se mostra um tanto impiedoso contra seu próprio passado como pregador protestante. *** “Clímax”, de Chuck Palahniuk (LeYa, tradução de Érico Assis, 224 páginas, publicado originalmente em 2014): C. Linus Maxwell (apelidado de (“ClíMax”) é um milionário que cria artefatos eróticos para mulheres, mas não quaisquer artefatos: os produtos da sua indústria deixam as usuárias viciadas como se fossem dependentes de heroína ou fentanil – com todos os problemas graves que vêm junto com o uso desenfreado de drogas pesadas. Os romances de Chuck Palahniuk são sempre esquisitos, mas aqui ele pesou a mão na estranheza. E eu, claro, gostei, como sempre. *** “As pessoas parecem flores finalmente”, de Charles Bukowski (L&PM Editores, tradução de Claudio Willer, 311 páginas, publicado originalmente em 2007): diz a lenda que o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre chamava Bukowski de “o maior poeta da América”, mas parece que isso era uma mentira inventada pelo próprio poeta. Neste, que é o primeiro livro de poesia do autor que já li, os temas são os mesmos de grande parte de sua prosa: bebedeiras, corridas de cavalos, a vida de escritor, sua mulher e sua filha. Mas aqui há uma maior objetividade, e, por que não? – um maior lirismo.
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Is John John a brother of Resistência?
Impressões, Textos em outras línguas
Is John John a brother of Resistência?
21 de dezembro de 2024 0
I consider myself a center-right liberal, as I mentioned in the section called “Energy” of my third book, “Rua Paraíba”. In today’s political political controversy, I can consider myself an “isentão”, an unbiased person, the guy who is hated by both sides of the fight. But the text here is not about politics, rest assured. President Lula’s dog Resistência (resistance in English) was probably born in 2018. According to a post by President Lula on Facebook, “a small black mongrel crossed the crowded Via Rápida in the Santa Cândida neighborhood, one of the highest and coldest in Curitiba. Swerving between cars and frightened by the noise of the horns, the little puppy trembled and cowered when two men who were passing by finally took her in. It was April 2018 and the two were not from there. Marquinho and Cabelo, metalworkers from São Bernardo do Campo, didn’t think twice and, thus, the little dog named Resistência became the first mascot of the then Lula Livre Camp (the camp in front of the Federal Police in Curitiba, where now President Lula was imprisoned).” According to a report in the Brazilian newspaper Folha de São Paulo on January 1, 2023, the current First Lady Janja Lula da Silva adopted her in June 2018, after Resistência fell ill at the Lula Livre Camp. The little dog then ended up climbing the ramp of the Planalto Palace (literally Plateau Palace, the seat of national executive power) during the president’s inauguration. John John, our dog, is so fun that he ended up serving as inspiration for a comic book, “John John’s Paradise”, written by André Duarte Curtarelli and Juliana Frank, for which I wrote the afterword, which can be read here on the website. He was adopted on February 2, 2020, the day before my birthday. According to the afterword, “I didn’t want to have another dog so soon after our poodle Ninon had died. To convince me to keep him, Teresa, my daughter, suggested naming him after my favorite surfer, the American John John Florence.” When he arrived here at home, he had already spent a little over a year in a pet adoption NGO: our dog had been picked up wandering on a street that I don’t know which one it is, and he always took care of a little dog that ended up being adopted before him. He was probably about two years old when I adopted him, so he must have been born in 2018, just like Resistência. Likewise, the president’s dog, according to the Folha de São Paulo report, has “black fur and white spots on the chest and on the tips of her paws — over the years, the tone has become more grayish,” which is a perfect description of John John’s fur. And they look exactly like each other, as we can see in the photo that accompanies the text. John John may not be a brother of the Resistência, but from everything I wrote above, he seems to be, don’t you think?
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