Livros que minha mãe amava: 8. “O Drible”, de Sérgio Rodrigues
Literatura
Livros que minha mãe amava: 8. “O Drible”, de Sérgio Rodrigues
9 de março de 2025 0
Minha mãe insistia para eu ler “O Drible”, de Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras, 220 páginas, lançado em 2013). Insistia e insistia. Mas eu não queria ler. E não queria por um motivo besta: o autor tinha um blog, no site da Revista Veja (acho), no qual, não bastando falar mal de meu livro preferido na época, “2666”, de Roberto Bolaño, ainda dizia que o chatíssimo “Os detetives selvagens”, do mesmo autor, era melhor – porque mais completo, ou mais bem pensado, ou alguma coisa no gênero. O grande escritor chileno fez sua obra-prima sabendo que estava com os dias contados: na ideia de Sérgio Rodrigues, isso fazia com que o livro fosse meio mal-acabado. Cito de memória, mas acho que era isso. Sérgio Rodrigues ainda falou mal de “Verão”, de J.M.Coetzee, uma obra-prima absoluta, e se divertia dizendo que a mulher dele, ou outra pessoa próxima, achava que ele não manjava nada de nada por não gostar do meu livro preferido do grande escritor sul-africano. Bem, enfim, um dia, uns meses atrás, fui procurar aqui em casa “O Drible”, na edição que minha mãe tinha literalmente me empurrado para eu ler – digo que ela insistia. Não achei a edição, e comprei outro exemplar. O romance é contado em primeira pessoa por Neto, um revisor meio fracassado cuja mãe tinha se suicidado quando ele era criança. Ele era filho de Murilo Filho, um grande cronista de futebol meio senil, que no passado tinha sido um conquistador e mulherengo inveterado, um informante da ditadura e um pai basicamente ausente na educação do filho. Eles tinham ficado anos sem se falar, e quando o livro começa Neto estava com o costume de visitar semanalmente o pai na chácara dele. Murilo Filho, nestas ocasiões, basicamente ficava falando sem parar sobre futebol – algumas passagens do livro já são antológicas para fãs do esporte. Além disso, o retrato que Sérgio Rodrigues faz do Rio de Janeiro dos anos 1950 em diante é extremamente interessante. Mas o forte mesmo desta pequena obra-prima é a relação conturbada entre pai e filho. É claro que minha mãe não iria insistir tanto para que eu lesse um livro ruim. *** Importante ressaltar que achei a versão que minha mãe tinha me dado assim que terminei de ler a minha versão do romance! A foto que acompanha o texto mostra as duas edições, a minha e a dela. Quem quiser receber meus textos semanalmente, clique aqui e cadastre seu e-mail.
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XXXTentacion – mais uma das minhas manias musicais recentes
Música
XXXTentacion – mais uma das minhas manias musicais recentes
2 de março de 2025 0
Alguns anos atrás, eu estava numa fase de ouvir muito rap alternativo (Bones, $uicedeboy$, Ashley All Day), e achei natural procurar na época que outros artistas faziam um som parecido, e gostei de muita coisa. Bhad Bhabie, que fez sucesso na internet brigando com a mãe num programa popularesco, tinha raps poderosos como Gucci Flip Flops (pelo que eu lembro, admirada até por gente da velha guarda como Snoop Dogg) e “Get Like Me“, com o também ótimo NLE Choppa. Lil Pump tinha “Gucci Gang”, com uma linda base melancólica, e a pesada “ESSKEETIT”. Juice WRLD lançou a belíssima “Lucid Dreams”, e Lil Xan, o meu preferido da turma, alertou sobre os perigos da droga Xanax (que, aliás, batiza seu próprio nome artístico) na emocionante “Betrayed”, e fez com Diplo um rap hipnótico chamado “Color Blind”. De Lil Peep eu não gostei de muita coisa, achei tudo meio meloso, mas “Spotlight”, com Marshmello, é sensacional. Não sei se foi em 2020 ou 2021 que ouvi um podcast com André Barcinski no qual se comentou sobre o documentário “American Rapstar”, que estava sendo lançado num festival online (era tempo de pandemia, afinal). Resolvi assisti-lo, e percebi que conhecia razoavelmente a maioria dos artistas citados nele. Segundo o site da BBC, o documentário de 2020, dirigido por Justin Staple, “descreve o crescimento de rappers do SoundCloud, jovens artistas que se conectam diretamente com os fãs através da internet e das mídias sociais, estrelado por Lil Peep, XXXTentacion, Smokepurpp, Bhad Bhabie, Lil Xan e Lil Pump”. O painel que “American Rapstar” pintava era assustador. Lil Peep tinha falecido por overdose – esperada até por sua mãe, pelo que eu lembro – em 2017 e XXXTentacion tinha sido assassinado em 2018. Eu acho que o documentário também citava a emocionante “Legends”, de 2018, em que Juice WRLD se queixava de que a nova geração não tinha mais a “maldição dos 27 anos” (que existe devido a vários rockstars que faleceram nesta idade, como Jim Morrison, Jimi Hendrix e Janis Joplin), mas que os seus grandes nomes não passavam dos 21: Lil Peep morreu nesta idade, XXXTentacion com 20. O mais macabro em “Legends” é que o próprio autor da música, Juice WRLD, faleceu de overdose aos 21 anos. “American Rapstar” ainda mostrava um Lil Pump aparentemente drogado o tempo todo, Lil Xan lutando com as drogas, em fases sóbrias e com recaídas (ele declarou recentemente que já está sóbrio há três anos, e realmente sua expressão atual é outra), e Smokepurpp como o grande precursor do chamado, na época, “Soundcloud rap” – que hoje todo o mundo chama de trap mesmo. Bhad Bhabie era a mais inesperada personagem do documentário: falava mal de outros rappers, que perdiam o controle no uso de drogas, e reclamava dos “fãs idiotas” que queriam imitar os novos rappers, fazendo tatuagens no rosto, e que depois não conseguiam emprego por causa da aparência. De todo modo, o rapper que teve os maiores elogios por parte dos demais era XXXTentacion (o “XXX” se pronuncia como a sigla X.X.X. em inglês, e o “Tentacion” se pronuncia como “tentación” em espanhol). Nascido em 23 de janeiro de 1998 com o nome de Jahseh Dwayne Ricardo Onfroy, o rapper teve uma vida cercada de violência e polêmicas. Segundo a Wikipédia em inglês, XXXTentacion, “era geralmente considerado uma figura controversa dentro da indústria do hip-hop devido a brigas públicas com outros artistas, questões legais e escândalos gerais nas redes sociais. A Spin rotulou Onfroy como ‘o homem mais controverso do rap’ e a XXL o desscreveu como o ‘rapper iniciante mais controverso de todos os tempos’”. Ele estava no auge quando foi assassinado num assalto (três dos quatro perpetradores pegaram prisão perpétua sem direito a condicional): seu álbum recém-lançado na época, chamado simplesmente “?”, tinha atingido o número um da Billboard 200, e XXXTentacion tinha assinado um contrato com a Empire por dez milhões de dólares por um novo álbum. Mesmo não negando sua vida violenta, o documentário “American Rapstar” mostrou como seus discursos nos shows só transmitiam mensagens positivas – e emocionantes – para seu público. Uma figura controversa, no mínimo. Quanto a mim, nunca tinha gostado muito das músicas do XXXTentacion, provavelmente porque elas não pareciam com as dos rappers citados aqui. Até que comecei a ouvir, uns dois meses atrás, a coletânea do Spotify “This is XXXTentacion”, fiquei absolutamente maravilhado e não paro de ouvi-la. Sua interpretação é profunda, dolorida, emocionante, e as melodias e batidas grudam na cabeça. E, realmente, ele era um rapper diferente: também segundo a Wikipédia em inglês, “a música de XXXTentacion explorou uma grande variedade de gêneros, incluindo emo, trap, lo-fi, indie rock, punk rock, nu metal, e hip hop. (…) Ao falar de suas influências, ele disse: ‘eu realmente gosto de coisas multigênero que não são baseadas apenas no rap em si. Sou mais inspirado por artistas de outros gêneros além do rap.’” Era essa multiplicidade de estilos que me afastou, na época, da música de XXXTentacion, e é ela que me aproxima dele, provavelmente, hoje em dia. Afinal, recentemente contei aqui que tive fases viciado em Elvis Presley, que dispensa apresentações, na banda indie The Brian Jonestown Massacre, no álbum de música clássica “Johann Sebastian Bach”, com o pianista islandês Víkingur Ólafsson, e na banda de black metal polonesa Mgła. Não é que eu seja eclético: eu amo e odeio músicas em muitos estilos. (Quem estiver interessado em receber meus textos semanalmente, clique aqui e cadastre seu e-mail. Imagem que acompanha o texto obtida no site da revista The New Yorker.)
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Meus livros: passado e futuro
Literatura, Obra Literária
Meus livros: passado e futuro
23 de fevereiro de 2025 0
Eu tenho três livros inéditos, que pretendo publicar pela Amazon ainda neste ano. *** O primeiro é “3040”, um romance de mais de 400 páginas contado em primeira pessoa por uma personagem feminina, chamada Silvia. O livro foi baseado num sonho da minha filha Teresa, no qual ela fez uma viagem no tempo: saindo de uma espécie de submarino, ela viu que estava em 5040; a paisagem era estranhíssima, com prédios gigantescos e brilhantes. A partir do sonho dela, imaginei que em 5040 a humanidade resolveria se fechar, se isolando em prédios gigantescos, e que ninguém mais viveria ao ar livre. Isso porque os seres humanos resolveram sair da natureza, que estava sofrendo com nossa participação no aquecimento global. Grande parte da energia deste futuro enclausurado era obtida em painéis solares gigantescos, situados nas paredes externas de arranha-céus enormes. Estes painéis deixavam os edifícios brilhantes – conforme o sonho da minha filha. Comecei a escrever “5040” no início de 2019, antes ainda da pandemia de COVID! Lá pelas tantas entrei numa “sinuca de bico” literária, sem saber para que lado deveria levar a história. Quando, em 2020, a pandemia chegou e efetivamente tivemos que ficar enclausurados, consegui entrar em contato com a grande escritora Juliana Frank (autora, entre outros, de “Meu coração de pedra-pomes”, publicada pela Companhia das Letras, e “Cabeça de Pimpinela”, pela 7 letras) para me ajudar. Ela logo mudou “5040” para “3040”, e na história a humanidade foi para prédios gigantes não mais por causa do aquecimento global, mas devido a pandemias. Muitas pandemias. No fim, com muito esforço de parte a parte (meu e da Juliana), 3040 ficou pronto, e agora está na hora de lançá-lo! *** Junto com o “3040” escrevi um livro de contos, também com mentoria da grande Juliana Frank. Tem histórias fantásticas, histórias eróticas, histórias assustadoras, e muitas que misturam tudo isso. Ainda não tem nome, mas acho que vai se chamar “Contos” mesmo. *** Finalmente, tenho um livro de poemas, dividido em duas partes: “Sempre”, com poemas curtos, e “deus um delírio”, uma espécie de viagem ao inconsciente, escrito sem nenhuma pontuação e sem nenhuma letra maiúscula. Acho que o livro vai se chamar “Poesia” mesmo. *** Isto, para o futuro. No passado, publiquei os livros abaixo: *** “Um amor como nenhum outro”, lançado em 2017 pela Editora Schoba. Novela sobre um nadador fracassado. Segundo Jonatan Silva, meu grande amigo e também escritor, um dos donos do ótimo canal Curitibando, “quem foi adolescente na década perdida, ou nos anos seguintes, pode cair na tentação de se identificar e, com certeza, vai se encontrar como peça no jogo criado por Fabricio Muller, um ardiloso experimento sobre os pequenos fracassos que nos fazem mais fortes”. Meu livro de estreia está fora de catálogo, mas quem quiser uma cópia em pdf pode pedir no e-mail fabriciomuller60@gmail.com “O verão de 54 (novelas)”, lançado em 2019 pela Editora Appris, “é composto por quatro histórias bastante diferentes uma da outra. O Verão de 54 é uma história de amor proibido. Conversão trata de família e religião, Morrissey é um policial sobre um assassino serial com “uma missão” e Sorry é uma novela para adolescentes. O Verão de 54 é uma história em metalinguagem. Conversão utiliza um narrador onisciente, Morrissey é em formato de diálogo e Sorry é um diário. Como se vê, o leitor pode iniciar a leitura deste livro por qualquer uma das quatro novelas cujo tema lhe pareça mais interessante.”  Pode ser obtido, impresso ou para Kindle, neste link. “Rua Paraíba”, lançado em 2020 pela Café do Escritor. “Formado por três livros (“Rua Paraíba”, “Memórias” e “Energia”) escritos entre 2016 e 2019, “Rua Paraíba” conta histórias pessoais, histórias profissionais e comentários do autor a respeito de assuntos como religião, economia, política e música pop.” Pode ser obtido em versão em Kindle aqui. Tenho algumas cópias impressas comigo, se alguém se interessar. Além dos três livros acima, a versão inicial da novela “Conversão”, que está na coletânea “O verão de 54 (novelas)”, foi lançada na Amazon, e pode ser obtida em Kindle e impressa, neste link. Publiquei também um conto da coletânea “Ser: Antologia em contos”, da Editora EntreCapas, de 2019, coordenada pelo meu grande amigo e grande escritor Robertson Frizero, que pode ser obtida em versão impressa aqui. Fiz também um vídeo de divulgação do conto, que pode ser assistido neste link. Mais informações sobre minha obra literária podem sobre obtidas no meu no meu site. (Na foto que acompanha o texto, eu e a grande escritora Juliana Frank. quem tiver interesse em receber meus textos semanalmente, clique aqui e cadastre seu e-mail )
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“Comme ils disent”, de Charles Aznavour
Música
“Comme ils disent”, de Charles Aznavour
16 de fevereiro de 2025 0
Ele mora sozinho com a mãe, num velho apartamento na Rua Sarasate. Sua companhia é uma tartaruga, dois canários e uma gata. Para deixar sua mãe descansar, ele frequentemente faz compras e a cozinha. Ele arruma, lava e seca. Ele não tem medo do trabalho: é um pouco decorador e estilista! Mas seu trabalho verdadeiro é à noite, que ele exerce travestido de mulher, ele é artista! Ele tem um número muito especial, em que termina completamente nu, depois do strip-tease. Nestes momentos os machos não acreditam no que veem: “nossa, ele é um homem!”, como eles dizem. Aí pelas três da manhã ele vai lanchar com os amigos de todos os sexos! E em um bar qualquer, ele e sua turma se divertem de verdade, e sem complexos! Eles falam verdades ácidas sobre as pessoas do lugar, mas fazem isso com humor. Nas madrugadas alguns retardados tentam imitar seus amigos e ele, para tentar fazer sucesso em suas mesas, mas só se cobrem de ridículo. As piadas e as provocações deixam-no frio, porque “ele é um homem”, como eles dizem. Quando o dia amanhece, ele volta para seu lugar de solidão, como um pobre palhaço infeliz e esgotado. Ele se deita, mas não dorme, pensa nos seus amores insignificantes e sem alegria. Ele pensa naquele garoto belo como um deus, que sem fazer nada colocou fogo na sua memória. A sua boca jamais ousará lhe revelar seu doce segredo, seu drama delicado: afinal de contas, o objeto de todos os seus tormentos passa a maior parte do tempo em camas de mulheres. Na verdade, ninguém tem direito de julgá-lo, de culpá-lo, e ele deixa isso bem claro: porque a natureza é a única responsável se “ele é um homem”, como eles dizem! *** Se trocar a terceira pela primeira pessoa no texto acima (por exemplo: no início, ler “eu moro sozinho com a minha mãe”), tem-se quase uma tradução de “Comme ils disent” (como eles dizem), canção do grande cantor francês Charles Aznavour. ´ A música foi lançada em 1972. Depois de pronta, o chansonnier – heterossexual e que na época tinha cinco filhos de três casamentos – foi testá-la diante de amigos homossexuais. Segundo o próprio cantor, a canção foi recebida com um frio generalizado na pequena plateia. Perguntaram-lhe: “quem vai cantar esta música?”. “Eu mesmo”, respondeu Aznavour. Novo silêncio no grupo. Os assessores do cantor na época lhe aconselharam a não gravá-la, para não correr o risco de prejudicar sua imagem. Mas ele decidiu correr o risco porque essa questão era muito importante para ele, e merecia uma posição. Na época, o jornal “Le Monde” criticou a canção. A crítica Claude Sassaute comentou acidamente: “esta evocação do homossexual que substitui a mãe na cozinha, na lavanderia, na máquina de lavar, que esconde seu desespero, seu ‘doce segredo’, sua paixão ridícula por um conquistador heterossexual, e é uma pequena trabalhadora apaixonada pelo chefe, (…) é boa para os (inofensivos) Frères Jacques (quarteto vocal tradicional francês).” Mas o sucesso de “Comme ils disent” foi praticamente imediato, não só entre o público em geral como no meio homossexual – e vários números de travestis usavam esta canção de fundo. Até hoje raramente é lançada uma coletânea das melhores canções de Aznavour sem ela. Quanto a mim, desde a primeira vez que a ouvi fiquei impressionado com a belíssima melodia, a incrível expressividade do chansonnier, com a delicadeza da letra e com a maneira como ele tratava sem ironias o mundo homossexual – foi a primeira canção francesa de sucesso, aliás, a tratar a homossexualidade com seriedade. Assim que Aznavour faleceu, em 2018, o canal France Info entrevistou um senhor homossexual chamado David, com 48 anos na época, que declarou que “Comme ils disent” o ajudou, durante toda a sua vida, a aceitar-se como era – porque, afinal de contas, ser homossexual não era culpa sua. “Ninguém, até o início dos anos 1970, tinha ousado dizer uma coisa dessas”, complementou. (fonte da foto: Wikipédia em francês. Se você quiser receber meus textos semanalmente, clique aqui e cadastre seu e-mail)
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“A vegetariana”, de Han Kang
Literatura
“A vegetariana”, de Han Kang
9 de fevereiro de 2025 0
Quando fiquei sabendo, em algum noticiário, que o livro mais conhecido da escritora coreana Han Kang (1970- ), vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2024, chamado “A vegetariana” (Todavia, 171 páginas, tradução de Jae Hyung Woo, lançado originalmente em 2007), falava sobre uma mulher que, um belo dia, resolveu parar de comer carne, causando revolta na família, logo pensei que era alguma espécie de libelo pró-vegetarianismo. Ledo engano. O grande escritor inglês Ian McEwan chamou “A vegetariana” de “um pequeno romance sobre sexualidade e loucura que merece seu grande sucesso”. É interessante perceber que, como o livro é dividido em três partes, a primeira e terceira tratam de “loucura”, e a segunda, de “sexualidade”. A mulher que resolve parar de comer carne, por causa de “sonhos”, é Yeonghye, uma discreta e calada dona-de-casa coreana, vivendo em Seul, mulher de um alto executivo. Conforme comentado acima, a família entra em polvorosa com a sua decisão, mas não é porque ela simplesmente virou vegetariana – o que até seria aceitável -, mas é porque estava perdendo peso numa escala e numa velocidade preocupantes. Isso é contado principalmente na primeira parte do livro, escrito em primeira pessoa pelo marido de Yeonghye. A segunda parte, narrada em terceira pessoa, é contada sob o ponto de vista do cunhado da personagem principal do romance, um artista visual casado com a irmã da “vegetariana”. Já a terceira, também narrada em terceira pessoa, mostra os acontecimentos sob o olhar da irmã de Yeonghye. Por mais que eu pense a respeito, não consigo contar mais do livro para não dar spoiler, tantos são os acontecimentos surpreendentes no romance. Mas o que dá para contar é que “A vegetariana” é realmente uma obra-prima, uma história extremamente perturbadora narrada com uma prosa límpida. (Se você quiser receber meus textos semanalmente, clique aqui e inscreva seu e-mail.)
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Bones: “SoftwareUpdate2.0”
Música
Bones: “SoftwareUpdate2.0”
2 de fevereiro de 2025 0
Já nos primeiros acordes de “TwentyThirteen” percebemos que, dezenas de álbuns depois de seu início em 2010 ainda como Th@ Kid, Bones continua relevante. A faixa, que começa imodesta e absolutamente verdadeira (“tenho estado na estrada desde 2013 / eles têm me chamado de o Melhor de Todos os Tempos (G.O.A.T.) desde 2013”) gruda na cabeça como só as melhores do rapper, e não se pode dizer que, necessariamente, seja a melhor do álbum “SoftwareUpdate2.0”, lançada no meio de dezembro último (“SoftwareUpdate1.0” tinha sido lançado em 2016, com o destaque “SleepMode”). O álbum ainda não tem nenhum clipe, mas é possível que seja lançado algum nos próximos meses: o terceiro vídeo do ótimo disco anterior, “CADAVER” (de outubro de 2024), chamado “MPEG-4”, foi lançado já em 2025 – depois de “SoftwareUpdate2.0”, portanto. “AccesDenied” é uma faixa típica de Bones, que continua fazendo faixas parecidas e sempre interessantes. “ElmoAndTheAmazingTechnicolorDreamcoat” é uma de suas lindas baladas, na qual ele se queixa de não pode fazer a chuva parar. “CCTV” é hipnotizante, e “CPU” cria um clima perfeito para uma letra que comenta que “você não pode cair se estiver no modo SESH” (entre outros significados, “sesh” pode ser uma sessão fazendo alguma atividade agradável, e é um termo que é uma espécie de marca de Bones e sua turma). “DropTopFilledWithRain” é daquelas músicas em que o rapper mostra seu lado afetivo, não só nos vocais e na melodia, como também na letra: “pensando em você, só espero que não mude comigo / não duvidaria, se você colocasse a culpa em mim”. “ColdConversationsOnBurnerPhones” tem uma levada vaporwave, na qual ele diz que rappers estão sempre caindo, mas “SESH nunca vai desconectar”. Sorte nossa. (se você quiser receber meus textos semanalmente, clique aqui e cadastre seu e-mail)
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O Piloto
Podcasts
O Piloto
26 de janeiro de 2025 0
Ilo Rodrigues era um piloto amador de avião que desapareceu num voo solitário pouco antes do Natal de 1986, e que nunca mais foi encontrado – nem ele, nem a aeronave que pilotava. Nascido em 1946, ele era o terceiro dos quatro filhos do casal Gecy e Castorino Augusto Rodrigues – este último, um alto funcionário das empresas Votorantim, de propriedade José Ermírio de Moraes, uma das maiores empresas do país. Por motivos de trabalho, Castorino morou com a família no Recife, e acabou se estabelecendo em Curitiba. Por volta de 1980, Ilo passa num concurso público e mais tarde seria nomeado diretor da Delegacia Regional do Ministério da Agricultura, em uma das fronteiras mais complicadas do Brasil: Foz do Iguaçu, de onde é possível ir para o Paraguai e para a Argentina. Como ele era um homem de gastos extravagantes – era proprietário do avião em que desapareceu, era fotógrafo amador e gastava parte expressiva do seu salário com a ex-esposa Wanda, com quem teve dois filhos, Cassiano Luciano – e fontes de renda pouco claras – uma loja de bijuterias e negócios variados que até hoje não se sabe exatamente quais eram -, sempre se desconfiou que o desaparecimento de Ilo estivesse ligado com alguma história de origem escusa. Outro possível motivo do seu sumiço poderia ter sido o sequestro do seu avião por traficantes bolivianos, como aconteceu com várias outras aeronaves brasileiras na época. A história de Ilo Rodrigues e do seu desaparecimento é o tema “O Piloto”, de Ivan Mizanzuk, provavelmente o mais importante criador de podcasts na área de true crime do Brasil – sim, basicamente ele foi o responsável por descobrir a inocência dos principais acusados do rumoroso caso do assassinato do menino Evandro, que tinha ocorrido em 1992 na cidade de Guaratuba, no Paraná. Publicado pela Globoplay em oito episódios, o podcast  “O Piloto” é a sétima temporada do “Projeto Humanos” (“O caso Evandro”, citado acima, foi a quarta e, além do podcast também tem uma série televisiva na Globoplay). Se o desaparecimento – sobre o qual Ivan Mizanzuk cria sua própria teoria – de Ilo Rodrigues é o principal tema da série, o que fica mesmo na audição de “O Piloto” é a impressionante história familiar descortinada ali. O pai de Ilo, Castorino, era um homem extremamente controlador (seus filhos tinham nomes como Ida, Iná e Ivo “para que não tivessem apelidos”) e cruel – era extremamente mesquinho com dinheiro, nunca quis ter filhos e fez sua esposa Glecy fazer diversos abortos. Mas todos os entrevistados no podcast, tanto os descendentes diretos de Castorino – filhos, netos e a bisneta – quanto a primeira e segunda esposas de Ilo – Wanda e Cristina – mostram uma extrema e comovente franqueza sobre todas as qualidades e defeitos dos principais personagens de “O Piloto”: o homem desaparecido e seu pai. É uma história, mesmo, profundamente humana, que faz com que o nome da série “Projeto Humanos” seja extremamente bem colocado.
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Emilia Pérez
Cinema
Emilia Pérez
19 de janeiro de 2025 0
Rita (Zoë Saldaña) é uma advogada brilhante, mas insatisfeita porque é pouco reconhecida por seus superiores. Ela, que mora no México, é sequestrada na rua e os perpetradores estão a serviço de um dos maiores chefes de cartel de droga do país. O que o traficante, Juan “Small Hands” Del Monte, quer de Rita é pouco usual, para dizer o mínimo: não se sentindo à vontade como homem, ele – que é violentíssimo, casado com uma linda mulher chamada Jessi del Monte (Selena Gomez), com quem tem um casal de filhos – quer fazer transição de gênero. Juan quer passar a ser “Emilia Pérez” (Karla Sofía Gascón é a atriz trans que faz os dois papéis). Melhor não contar mais para não dar spoiler. Dirigido pelo francês Jacques Audiard, o musical “Emilia Pérez” (130 minutos, 2024) é um filme franco-mexicano que é um dos grandes favoritos para o Oscar de 2025. Entre vários prêmios já amealhados, ele venceu o do júri de Cannes do ano passado e suas quatro atrizes principais (Zoë Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez e Adriana Paz – que vive Epifania, personagem que aparece na segunda metade do filme) venceram conjuntamente o prêmio de melhor atriz daquele festival. “Emilia Pérez” estreará no Brasil no dia 6 de fevereiro próximo, e já foi lançado pela Netflix nos Estados Unidos. Quando se imagina um musical, normalmente se pensa em alguma coisa com glamour do tipo Broadway, como os filmes “Cantando na Chuva” ou “Chicago”. A primeira coisa que chama a atenção em “Emília Pérez” é que as cenas musicais são “esquisitas” – na falta de uma palavra melhor. Boa parte do filme se passa em lugares pobres e periféricos e, quando os personagens começam a cantar, a tendência é se perguntar: “mas que coisa estranha é essa?” – já que, ao contrário de glamour, as cenas musicais parecem só aprofundar a pobreza e a violência (estamos falando de uma poderosa gangue de traficantes mexicanos, afinal) apresentadas na história. Tudo parece meio fora de lugar em “Emilia Pérez”. A história esquisita de um homem poderoso e violento que quer virar mulher. As cenas musicais diferentes do que se espera. Apesar de a história ser mexicana, o filme é francês e as principais personagens são a espanhola Karla Sofía Gascón e as americanas Zoë Saldaña e Selena Gomez – fatos que causaram polêmica no México. O sotaque desta última, aliás, foi bastante criticado, mas isso aparentemente não incomodou o diretor Jacques Audiard, que não fala espanhol e que declarou que as diferenças entre “as nuances do acento mexicano versus castelhano passaram em branco” por ele e que foram “arrumadas na edição”. Eu diria que esse problema do sotaque de Selena Gomez é só mais uma esquisitice do filme, e por isso este fato não incomodou o diretor, que queria fazer um negócio diferente mesmo. “Emilia Pérez” parece se passar em uma realidade paralela, que se parece e que não se parece com a vida real. Mas é intenso e original o suficiente para merecer todas as críticas favoráveis e os prêmios que têm recebido. (imagem que acompanha o texto, com Karla Sofía Gascón no papel de Emilia Pérez,  obtida no site G1)
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