Helena Morley e George Orwell – Dois livros de memórias muito diferentes
Literatura

Helena Morley e George Orwell – Dois livros de memórias muito diferentes

4 de maio de 2025 0

Helena Morley era uma menina de treze anos, vivendo em Diamantina (MG) e que, estimulada pelo pai, começou a escrever seu diário em 1893. Em 1962 ele foi publicado com o nome de “Minha vida de menina” (Companhia de Bolso, 325 páginas).

O inglês George Orwell, o grande escritor de “1984” e “A revolução dos bichos”, viveu como subempregado e até como mendigo (não está muito claro para mim se por alguma experiência literária ou por pura necessidade) e contou suas experiências em “Na pior em Paris e em Londres” (TriCaju, 224 páginas, tradução de Débora Isidoro, publicado originalmente em 1933).

Dois livros de memórias escritos com cerca de trinta anos de diferença, mas quanta diferença! “Minha vida de menina” é doce, alegre, engraçado, e “Na pior em Paris e Londres” é chocante e pesado, a começar pelo título.

Em 1893, quando começa o diário de Helena Morley, a escravidão tinha sido abolida no Brasil apenas quatro anos antes, e a República, proclamada há três. Vivendo em Diamantina, a menina descreve uma vida muito próxima daquela do Império: é fascinante, para o leitor de hoje, saber detalhes de como os moradores iam de um lugar para outro, o que comiam, quais eram as suas diversões, como era intensa a sua vida social. Filha de um inglês com uma brasileira, é evidente para o leitor que Helena Morley não tinha racismo nenhum, já que tratava os negros como tratava os brancos; por outro lado, nota-se facilmente a condescendência com que os negros eram tratados pelos brancos, e como o ex-escravizados, frequentemente sem condições de vida melhor, continuavam morando nas propriedades dos antigos donos para os quais trabalhavam.

Mas “Minha vida de menina” é mais do que um importante documento histórico: os comentários da adolescente são divertidos, vívidos, e as considerações sobre as muitas pessoas com as quais convivia são sempre agudos e inteligentes. Não à toa, grandes escritores como George Bernanos, Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa e Elisabeth Bishop (que chegou a traduzir o livro para o inglês) eram fãs do livro.

George Orwell trabalhou como assistente de cozinha em Paris, e descreve com grande detalhe como era intenso e desumano o ritmo de trabalho, e como o salário mal dava para viver. Ele tem uma proposta de um amigo para trabalhar em Londres, mas, quando chega lá, descobre que a vaga seria aberta apenas alguns meses depois de sua chegada. Logo em seguida ele é assaltado, fica sem reserva financeira nenhuma e vive como mendigo: conhece albergues e restaurantes para desabrigados (em alguns dos quais ele deve, para seu grande desgosto, rezar na capela para receber o alimento) e tem que – junto com outros mendigos – se deslocar incessantemente pela cidade para não ser preso por vadiagem. É chocante sua descrição do que sentia quando estava com fome e não tinha condições de conseguir comida.

Sou fã de George Orwell. Não só “A Revolução dos Bichos” e “1984” são obras-primas fascinantes, mas seus ensaios literários são sempre brilhantes, com estilo preciso e límpido (já comentei aqui sobre alguns livros do autor). Impressionante e perturbador, “Na pior em Paris e Londres” só me fez aumentar a admiração que tenho pelo autor.

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