Tudo começou quando a Teresa e o André trouxeram um lindo cachorrinho, de uma feira de adoção, aqui para casa. Eu não queria saber de outro cachorro logo depois que a nossa poodle Ninon tinha morrido. Para me convencer a ficar com ele, Teresa, minha filha, sugeriu batizá-lo com o nome do meu surfista favorito, o americano John John Florence. John John logo fez amizade com a Lana, uma mistura de boiadeiro australiana com vira-lata muito agressiva com estranhos, que haviamos adotado quatro anos antes. Extremamente carinhoso, faminto e aventureiro, John John Florence logo deixou todos apaixonados. Eu acho que até a Rebeca, a cachorra da minha mãe, gostou um pouco dele. Minha mulher, a Valéria, achou que ele parecia um malandro da Zona Norte carioca, e o apelidou de "gafieira" e "fuleiragem", e assim fomos criando um personagem. Logo, o André, namorado da Teresa, começou a fazer histórias com o John John, criando uma voz para ele. Ficamos tão empolgados que decidimos transformar o John John no astro de uma história em quadrinhos. E chamamos o Rafa Campos Rocha, de quem sou fã incondicional, e a querida Juliana Frank para a empreitada. Deu tudo certo, e agora você está com o produto dessas mentes brilhantes - menos a minha, claro - nas mãos. Fabricio MullerPosfácio que escrevi para "O Paraíso de John John", história em quadrinhos publicada recentemente pela editora Oh! outra história, com roteiro de André Curtarelli e Juliana Frank e desenhos de Rafael Campos Rocha. À venda no site da editora, em https://veneta.com.br/produto/o-paraiso-de-john-john/.
Paulinho era um surfista extraordinário. Suas rasgadas, seus floaters, seu flow, sua direita absolutamente fantástica assustavam os adversários. Não era o melhor tube rider que o mundo já tinha visto, mas estava entre os melhores. Já no primeiro campeonato do CT, da WSL, ficou em segundo lugar, perdendo apenas em Pipeline, e na final, para o eterno campeão Kelly Slater. Já no ano seguinte não teve para ninguém, e ele já era matematicamente campeão já na etapa de Peniche, em Portugal. Paulinho, então com apenas 17 anos, seria o novo Kelly Slater? Ultrapassaria a quantidade de onze campeonatos mundiais do maior surfista de todos os tempos? Eram esses os maiores questionamentos da imprensa especializada a respeito de Paulinho, depois de seu primeiro – que seria o último – campeonato mundial pela WSL.
Sim, último. Logo no ano seguinte à sua vitória no CT, um novo surfista chegou para assombrar o mundo do esporte: Gabriel Medina – brasileiro como Paulinho e que, assim como ele, foi matematicamente campeão da WSL já na etapa portuguesa. No ano seguinte o havaiano John John Florence ganhou o “caneco” mundial, e meio que foi se revezando com o brasileiro Medina em vitórias nos campeonatos da WSL nas duas décadas e meia seguintes – as quais ainda contaram com vitórias solitárias do sul-africano Jordy Smith e do brasileiro Ítalo Ferreira.
E o Paulinho? Continuou disputando o CT sempre com bravura, mas nunca mais passou do quinto lugar. A princípio, poderia parecer que a reversão completa das expectativas em relação àquela promessa do surf mundial foi devida a algum motivo psicológico, ou mesmo físico – mas não: Paulinho continuou surfando como sempre surfara, mas não conseguiu, jamais, fazer as manobras inovadoras e progressivas que eram a característica principal da nova geração (Medina, John John, Filipe Toledo, Ítalo Ferreira, Jordy Smith, e por aí vai), a qual Paulinho pertencia apenas em termos cronológicos: seu surf era ultrapassado desde o início – o que ninguém, por incrível que pareça, tinha percebido a tempo.
E não que ele não tentasse dar os aéreos que deliciavam os amantes do esporte, e que tanto deviam à influência do skate – John John Florence, é sempre bom lembrar, era um excelente skatista. Mas Paulinho não conseguiu, nunca, acertar um aéreo que fosse.
Cinco anos depois que Paulinho tinha vencido seu único campeonato da WSL (anos nos quais ele treinou sem sucesso fazer manobras inovadoras e progressivas), ele teve uma espécie de luz: percebeu que jamais seria um John John Florence, que jamais seria um surfista realmente grande – ao contrário da expectativa geral anterior, inclusive dele.
No dia em que ele finalmente teve consciência disso, chamou seu grande amigo Gabriel Medina no canto e desabafou: “irmão, nunca mais vou ser campeão mundial, nunca vou conseguir dar uma manobra inovadora”. O então campeão mundial olhou bem nos olhos de Paulinho e respondeu: “Jesus tem um propósito maior pra você, bro, não se preocupe com isso”.
Paulinho, que nunca acreditara em Deus, hoje frequenta cultos evangélicos – quase sempre ao lado de seu amigo Medina – em Boiçucanga, na Igreja Bola de Neve.
(O texto acima, uma ficção com personagens reais, é uma resposta ao seguinte desafio literário proposto por Robertson Frizero: "escreva, em 500 palavras, um conto cujo tema seja a mediocridade. O protagonista deve ser um artista - não importa qual a sua expressão artística - e a cena mostrada deve retratar o momento em que a personagem dá-se conta do quanto está iludida quanto ao seu 'talento'. O que a personagem fará depois dessa constatação deve ser o desfecho do conto.")
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