João Gilberto em Curitiba (2/3/2002)
Música, Shows e Espetáculos

João Gilberto em Curitiba (2/3/2002)

23 de outubro de 2015 3

Bem, não foi como o show do Morrissey, né? Grande coisa, qual show seria?

Acontece que um baú de recordações se abriu na minha cabeça quando eu vi (onde foi mesmo?) que o João Gilberto viria fazer um show em Curitiba. Ele mesmo, o criador da bossa-nova, o sujeito que ouvi durante muitas e muitas e muitas horas durante alguns anos. Por mais que nos anos mais recentes eu tenha ouvido o camarada menos tempo, não deixei de comprar seus cds e nem deixei de mandar uma carta reclamando para o jornalista Alvaro Pereira Jr. quando ele incluiu o grande João Gilberto numa lista (de resto genial) de “50 coisas mais chatas do mundo”.

Quem é João Gilberto, qual o segredo dele? É verdade que ele criou um estilo extremamente popular, a bossa nova. Acorde dissonantes de jazz em sambas brasileiros. Mas João Gilberto não lotaria o Teatro Guaíra em 2 de março de 2002, por mais que os ingressos fossem muito caros (de 50 a 70 reais), apenas por ter criado um estilo. Na verdade, além dele ter criado a bossa nova, ele é sempre único. Esta originalidade dele é tão incontestável que mesmo críticos conservadores como José Ramos Tinhorão reconhecem o seu valor. Os raros que reclamam (como o supracitado Alvaro e o Carlos Heitor Cony) nem chegam a ser levados a sério. O seu ritmo e as suas inflexões de voz nas canções mais alegres, a profundidade de sua voz naquelas mais tristes, o seu violão simplesmente indescritível o fazem, com justiça, o grande cantor brasileiro de todos os tempos segundo a crítica (segundo o público ninguém tira este trono do Roberto Carlos – e o meu coração se divide entre os dois).

No dia do show, a tensão de todos os presentes no Teatro Guaíra era grande. Todos com medo que algum engraçadinho resolvesse cantar junto com João Gilberto (o que ele odeia), ou que tocasse algum celular desavisado, ou que algum outro engraçadinho pedisse alguma música, ou que o cantor não gostasse da acústica ou do ar condicionado. Ou se João Gilberto tocaria mesmo.

Eu cheguei quase uma hora antes no teatro – João Gilberto nunca tinha vindo aqui, sabe-se lá se ele vai voltar um dia, né? Pouco depois da hora do início, nove da noite, esperamos um pouco, as luzes se apagaram e uma voz anunciou o show… aí começamos a temer pelo pior: quase meia hora esperando com as luzes apagadas. Depois de um início de revolta por parte do público, chega o cantor, e os aplausos foram intensos, mais intensos ainda que eu esperava. João Gilberto fala “boa noite” senta-se e começa a cantar “Canta Brasil” e eu fiquei arrepiado. Pouco depois veio minha música preferida dele, Insensatez, com um andamento um pouco diferente mas lindo.

E o show foi se desenrolando, com muita tensão e prazer por parte dos ouvintes. A voz dele parecia ainda melhor que nas gravações recentes, um pouco mais alta. Quanto ao violão, o andamento para um lado e a voz para o outro, o banquinho e o violão sem nenhum acompanhamento me faziam lembrar o grande bluesman Robert Johnson, de quem também sou grande fã: outro estilo, outro tipo de canção, outra língua mas com algumas outras coisas em comum além da genialidade incontestável.

Aquele clima pesado, onde só se ouviam da platéia algumas tosses esparsas e os aplausos intensos no final de cada canção só começou a se desanuviar quando, no intervalo entre duas canções o cantor falou que leu “no jornalzinho daqui” (a Gazeta do Povo do dia do show assustou a todos, dizendo o quão exigente João Gilberto era) que ele era chato, que era exigente, que era isto, que era aquilo, mas que não era nada disto. Entretanto, continuou ele, o ar condicionado estava endurecendo as cordas. No próximo intervalo João Gilberto brincou que iria fazer uma canção em homenagem ao ar condicionado, cantarolou esta canção um pouco e ainda citou que seria uma paródia como aquela do Falcão, I`m not dog no. Ele ainda se queixou do cheiro de cigarros, que, segundo ele, vinha das coxias…

Mas estas ironias contra o ar condicionado e contra os cigarros pareciam mais coisa de alguém que não quer perder a fama de mau. Na verdade, João Gilberto estava com um enorme bom humor. Logo em seguida, ele lamentou não ter levado a carta que uma criança tinha levado para ele no hotel, pedindo uma música. A música era Trevo de Quatro Folhas, e, depois de executada, o cantor ainda pediu desculpas pois não a cantava há muitos anos. Depois desta música, João Gilberto tocou outra, e o Teatro Guaíra ouve a voz de uma criança, um menino, que diz obrigado. João Gilberto arregala os olhos, para tudo e pergunta: quem falou?. O menino repetiu: Obrigado. O cantor diz obrigado e canta Trevo de Quatro Folhas de novo, e ainda agradece a platéia (que tinha adorado a nova execução) por ter tido paciência com ele. João Gilberto realmente não parece tão mau quanto se diz!

E assim o show foi indo, mais tranquilo. Durante Chega de Saudade ainda se ouviu um cantarolar mais forte da platéia (eu não abri a boca, claro). Quando terminou, já estavam todos felizes. Mas o melhor ainda estava por vir.

O show tinha, até ali, durado mais ou menos uma hora e meia. O bis durou cerca de 25 minutos, e foi uma descontraído que ninguém esperava. O menino, a segunda estrela da noite, pediu Samba de Uma Nota Só e Lobo Bobo (na verdade, ele pediu lobo mau, e diversas pessoas na platéia corrigiram para Lobo Bobo; João Gilberto, que parece entender de crianças, não corrigiu o menino, falou: Lobo Mau e tocou Lobo Bobo…) Diversas pessoas pediram músicas e foram atendidas, e normalmente músicas que não eram grandes sucessos de João Gilberto, o que demonstrou que a platéia era realmente composta, em sua maioria, por pessoas que conheciam profundamente a obra do grande cantor. Por sorte Sampa, pedida, não foi executada!

[esta página é dedicada à minha filha que, apesar de não ter ido, exigiu que eu fosse ao show de terno e gravata (creio que eu era o único lá vestido assim, fora o João Gilberto)]

(texto escrito em 11 de março de 2002)

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There are 3 comments

  • Solange Soares disse:

    Uma emoção encontrar o seu texto 17 anos depois de escrito. Sempre contei essa história com muita gratidão por ter testemunhado um João generoso com a plateia que fomos. Obrigada por abrir esse baú de recordações!

  • Claudia Belfort disse:

    Esse menino é meu filho Daniel Belfort Malkes.

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