Quando pensei em escrever o texto sobre a edição da Companhia das Letras de “Os ensaios” de Montaigne (uma seleção com cerca de 600 páginas, composta por um terço da obra total), a primeira coisa que me veio à cabeça foi o título: “Michel de Montaigne, o primeiro blogueiro”. Ideia genial, pensei. Até que fui procurar no Google para ver se alguém tinha tido essa mesma ideia genial. E muitos a tiveram. Muitos mesmo. Em várias línguas.
Tudo bem. Não foi tão genial assim.
De todo modo, por que Michel de Montaigne (1533-1592) é considerado o primeiro blogueiro? Conforme a excelente introdução, escrita por Erich Auerbach, o escritor tinha duas características (negativas) que chamam a atenção: “a falta de especialização e de método científico”. Ainda segundo a introdução,
“Montaigne permanece leigo mesmo onde parece compreender alguma coisa – em pedagogia, por exemplo. É difícil acreditar que ele quisesse aprofundar-se seriamente numa das matérias de que trata casualmente. E, seja como for, suas realizações não dizem respeito a nenhuma delas. Ainda hoje é difícil definir em que consistem, e é quase incompreensível que tenham alcançado repercussão em sua época.”
Em outras palavras: como bom blogueiro, sua especialidade era ser palpiteiro.
Era muito rico, e lá pelas tantas se recolheu para pensar sobre a vida: conforme a contracapa da edição,
“herdeiro de uma fortuna deixada pelo avô, um comerciante de peixes abastado, Montaigne foi alfabetizado em latim e também prefeito de Bordeaux. A certa altura, retirou-se para ler, meditar e escrever sobre praticamente tudo.”
Em seu livro, os assuntos vão se sucedendo meio que de maneira aleatória, e frequentemente em um mesmo ensaio há algumas mudanças de tema sem um objetivo aparente: tantos são os assuntos que é difícil fazer um “resumo” da obra como um todo. Outra característica importante de “Os ensaios” é a maneira pela qual o autor mistura comentários de interesse geral com aspectos de sua vida íntima: em “Sobre três versos de Virgílio”, por exemplo, Montaigne não só discorre corajosamente sobre sua vida sexual, como – de maneira um tanto inesperada para alguém do século XVI – sugere que as mulheres devem ter a mesma liberdade que os homens neste aspecto. Em alguns ensaios o autor comenta sobre a sua escolha religiosa: em tempos de Reforma Protestante, o escritor decidiu-se firmemente pelo catolicismo. Por outro lado, na maioria dos ensaios – de caráter laico – a mentalidade religiosa parece totalmente ausente: por exemplo, seus ensaios sobre a morte (em que a possibilidade da continuidade da vida post mortem praticamente não é aventada) e o arrependimento (em que ele comenta que apenas a consciência, e não a religião, deve definir se ele deve ou não se arrepender de alguma atitude que tomou), não parecem escritos por um crente. Em alguns textos, sobressai a modernidade do pensamento de Montaigne em relação à sua época: por exemplo, ele não acreditava na medicina – o que é perfeitamente compreensível para alguém de nosso século, dados os procedimentos médicos descritos por ele; do mesmo modo, ele critica as terríveis torturas a que os prisioneiros eram submetidos e as decisões da Justiça baseados em argumentos sobrenaturais, como bruxaria ou mau-olhado. Muito interessante para o leitor brasileiro é o refinado ensaio sobre seu encontro com índios brasileiros em Rouen.
De maneira um tanto pretensiosa, a contracapa da edição da Companhia das Letras apresenta o seguinte trecho: “esta seleção de ensaios oferece ao leitor brasileiro um panorama abrangente do pensamento (…) de Montaigne, sem que se precise recorrer aos três volumes de sua obra completa”. Realmente, com a edição resumida é tem-se uma noção bastante “abrangente” da maneira de pensar de Montaigne. Por outro lado, não tenho dúvida de que a edição de “Os ensaios” da Companhia das Letras deixou muita, mas muita coisa legal de lado. Afinal de contas, ler Montaigne é sempre delicioso.
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