Fabricio Muller

Exercícios Literários
O cão
12 de setembro de 2019 at 18:22 0
fonte da imagem: Jenkem Magazine

Eu gostava muito do meu dono. Frequentemente nos encontrávamos com amigos dele, que também tinham outros cães como eu, e era uma festa. Meu dono e os amigos tomavam bebidas com um cheiro forte, cantavam, tocavam seus banjos – às vezes saía uma briga ou outra, e eu tinha que defender meu dono. Frequentemente dormíamos em calçadas, ou só eu e meu dono, ou nós dois com alguns amigos dele - também com seus cães. Para nos alimentar, meu dono revirava lixos, e sempre sobrava comida para mim. Às vezes alguma pessoa desconhecida me dava ração, e meu dono a agradecia. Às vezes algum desconhecido xingava meu dono, mas ele me dizia que só não o xingavam mais porque eu, com meu tamanhão, colocava medo nas pessoas “normais” – ele sempre falava “normais” com um tom meio debochado.

Eu gostava muito de nossos passeios de trem. Entrávamos em vagões de carga, nos cobríamos do jeito que dava e ficávamos olhando as paisagens. Chegávamos a lugares lindos, cheios de cheiros diferentes. Lá nos encontrávamos com outros amigos do meu dono, e sempre havia cantoria, alegria e algumas brigas. Aquelas bebidas com cheiro forte eram presentes também.

Meu dono sempre me dizia que nunca iria me abandonar. Que ele me amava tanto que jamais iria me deixar sozinho. Infelizmente, não foi o que aconteceu. Ele começou a ficar estranho quando começou a colocar no braço umas coisas esquisitas e pontudas. Depois de se machucar com aquilo, ele ficava num torpor estranho, não parecia mais a mesma pessoa. Dormia muito mais que antes, ou ficava acordado como se estivesse dormindo. Um dia, depois de se machucar com aquela coisa pontuda, ele entrou num torpor do qual não saiu mais. Demorei para perceber que ele tinha me deixado para sempre.

Hoje estou com um amigo dele, e continuo tendo o mesmo dia-a-dia que tinha quando estava com meu antigo dono. O meu novo proprietário me trata tão bem quanto o antigo, e também sempre me promete que nunca vai me deixar. Infelizmente, não consigo acreditar nele.

(Texto escrito para responder ao seguinte desafio literário proposto pelo Robertson Frizero: Personagem é qualquer ser atuante de uma história ou obra de arte. Normalmente é uma pessoa, mas pode ser um animal, um ser fictício, um objeto, desde que tenha características humanas. O desafio do dia é escrever uma história cujo protagonista seja uma personagem não-humana. A história deve ter no máximo 500 palavras e ter como tema central a mentira.)

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Literatura, Religião
Os livros que eu levaria para o exílio
8 de setembro de 2019 at 17:58 1
foto do autor

Se a polícia política chegasse aqui e eu fosse obrigado a me exilar, levando apenas doze livros de casa, eu acho que eu levaria esses:

- “Heavier than heaven – Mais pesado que o céu: Uma biografia de Kurt Cobain”, de Charles R. Cross (Globo Livros, 456 páginas): a biografia do líder do Nirvana (estou no meio da leitura), me lembraria de uma impressionante história do rock, assim como

- “Atravessar o fogo - 310 letras de Lou Reed” (Companhia das Letras, 792 páginas): uma edição com as letras do líder do Velvet Underground (no original e traduzidas para o português), algumas das quais citei no meu livro “Rua Paraíba”, ainda não publicado. Antes que me perguntem, não existe um livro semelhante com as letras do Morrissey aqui no Brasil;

- “En una noche escura - poesía completa y selección de prosa”, de San Juan de la Cruz (Penguin Clásicos, 560 páginas), que ainda não li, mas que serviria para eu treinar meu espanhol - além do que a poesia do santo carmelita é maravilhosa;

- “Alcorão Sagrado”: conheço outras versões do livro sagrado dos muçulmanos, mas nenhuma tão linda como a tradução de Samir El Hayek, publicada na coleção “Livros que mudaram o mundo”, da Folha de São Paulo. Além disso, a edição, com 700 páginas, tem mais de 2500 notas;

- “Bíblia Sagrada”, da NVI (Nova Versão Internacional – Editora Vida, 1640 páginas), com letra grande e linguagem bem mais acessível do que a maioria das que se encontram por aí;

- “Légendes de Catherine M.” (Denoël, 240 páginas), em que o marido de Catherine Millet – crítica de arte e autora do escandaloso e autobiográfico “A vida sexual de Catherine M.” – posta fotos da esposa, nua, e as comenta;

- “Machado de Assis – Obra Completa – Volume 1 – Romances” (Companhia Nova Aguilar, 1216 páginas): o bacana do mais importante escritor brasileiro é que ele faz comentários geniais em cada página - o que acaba incentivando bastante a releitura. Reler é útil num exílio, o que fez me lembrar também de

- “La Chartreuse de Parme”, de Stendhal (Éditions du milieu du monde, 676 páginas), provavelmente o único romance que li quatro vezes;

- “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood (Rocco, 368 páginas): preciso confessar que gostei mais da série “Handmaid’s Tale” do que do romance que lhe deu origem. Mas o mundo que a escritora canadense criou é assombroso e distópico – e são livros que eu teria que levar e não séries para TV, não é?

- “Oeuvres”, de Diderot (Bibliothèque de la Pléiade, 1448 páginas), edição que amo tanto que até já fiz um texto sobre ela no meu blog;

- “Poemas”, de Friederich Hölderlin (Companhia das Letras, 216 páginas): vou querer levar comigo o meu poema preferido, “Aos jovens poetas”:

“Irmãos! Talvez a nossa arte logo amadureça

Porque, como o jovem, de há muito fermenta para

Chegar logo à tranquila beleza;

Sede só piedosos, como o grego era!

Amai os deuses, pensai nos mortais com afeto!

Ebriez e frieza, lição e descrição: odiai-as

Todas e, se o mestre vos der medo,

Pedi conselho à grande Natureza.”

- “O verão de 54 (novelas)”, de Fabricio Muller (Appris, 222 páginas): ah, que se dane.

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Exercícios Literários
Carta a uma suicida
5 de setembro de 2019 at 15:37 0

Maria,

Pare de bobagem, vai. Eu sabia que você estava com problemas, nunca quis me meter, porque sempre achei que você era bem crescidinha para me pedir ajuda se precisasse. Sou psicóloga! Quantas vezes eu não te disse que depressão era uma doença séria, que não tinha nada a ver com frescura, nem com nada parecido. Aliás, intuindo sobre seu estado, eu colocava sempre esse assunto nas nossas conversas, eu achava que você iria se mancar e se abrir para mim – mas nada, né?

Agora que eu sei que você está a salvo, e que aquela quantidade de remédios que você tomou acabou não dando mais do que uma diarreia daquelas (graças a Deus!), está na hora de você tomar uma providência na sua vida e procurar ajuda.

É claro que eu queria que você viesse desabafar sobre seu estado comigo, que SEI que sou sua melhor amiga. Mesmo assim, sei lá, você não desabafou comigo.

Por que seria? Será que é porque você sempre foi a intelectual de nós duas, a mais rica, a mais bonita – e, como se ainda fosse possível, a mais humilde?

Cara, isso não faz sentido. Sempre te amei como a irmã que eu não tive, e sei que sempre foi recíproco. O que é isso? Vergonha? Vergonha DE MIM?

Ora, Laura, tome tenência, por favor, como dizia meu falecido pai.

Procure ajuda, me procure. Eu te amo muito mais do que você pode imaginar, não consigo nem imaginar a tragédia que seria para mim se aqueles remédios tivessem feito efeito.

Por favor,

Marta

(Texto escrito a partir do seguinte exercício literário proposto pelo Robertson Frizero: Em prol do setembro amarelo. 💛 Escreva, em até 500 palavras uma carta pela vida: imagine que essa carta foi escrita por uma personagem [masculina ou feminina] para um amigo ou amiga que pode estar planejando tirar a própria vida, tentando dissipar tal ideia. A carta não deve trazer as vozes dos autores, nem ser direcionada a alguém a eles relacionado.)

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Séries
Duas minisséries
29 de agosto de 2019 at 18:39 0
The Alienist (Uol Entretenimento)

Minisséries são como filmes longos – sabemos que a história termina ali, por mais que alguns filmes (e minisséries) tenham continuação. Uma das melhores séries a que já assisti, “Dark objects”, sobre a qual já comentei aqui, na verdade é uma minissérie, formato dos ótimos “O bosque” e “The alienist”, objetos do presente texto.

Produzido pela TNT e distribuído pela Netflix por aqui, “The Alienist” tem dez episódios de cerca de 50 minutos cada. A minissérie se passa em Nova Iorque no final do sec. XIX (a reconstituição de época é primorosa), e conta história do estranho alienista (nome antigo dado aos psiquiatras) Laszlo Kreizler, vivido por Daniel Brühl, envolvido na investigação de crimes perpetrados por um assassino serial. O enredo é bem estruturado e as atuações, muito boas, mas a história é contada com mão pesada, fazendo com que acompanhar a história seja um pouco cansativo. De todo modo, já está prevista uma continuação para a minissérie, chamada “The Angel of Darkness”.

Gostei bem mais de “O bosque”, série francesa da Netflix com seis episódios de cerca de 50 minutos cada um. Numa cidade do interior francesa, duas adolescentes desaparecem – e a minissérie conta a história da procura por elas, que acaba desnudando segredos da cidadezinha. “O bosque” tem paisagens belíssimas, ótimas atuações e mantém a tensão em todos os episódios. Não precisa mais.

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Literatura
“Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury
18 de agosto de 2019 at 20:45 0
Fonte da imagem: Saga Literária

Num futuro não especificado, foram descobertos materiais de construção, com os quais todas as construções passaram a ser construídas, que não pegavam fogo de jeito nenhum. Os bombeiros passaram a não trabalhar contra os incêndios – que não existiam mais -, mas para colocar fogo em um tipo de material extremamente perigoso, os livros.

Este é o mote principal do clássico distópico “Fahrenheit 451” (Coleção Folha – Grandes Nomes da Literatura, 168 páginas), publicado em 1953 pelo americano Ray Bradbury, e que inspirou o clássico cinematográfico de mesmo nome dirigido em 1966 por François Truffaut. O livro conta a história de um bombeiro, Montag, que começa a ter consciência pesada por colocar fogo em todos os livros que as pessoas guardam, e as aventuras daí decorrentes.

“Fahrenheit 451” (temperatura em graus Fahrenheit da queima do papel, equivalente a 233 graus Celsius) é um excelente romance, que merece o sucesso e status de clássico que obteve no decorrer dos anos. Mas o assustador é o motivo pelo qual a humanidade resolveu proibir os livros: tudo decorreu de um lento processo de imbecilização entre as pessoas, no qual as complexidades dos grandes clássicos passaram a não ter mais espaço em uma sociedade cada vez mais simplista, cada vez mais receptiva a histórias fáceis, cada vez mais preocupada com as minorias.

Qualquer semelhança com o mundo de hoje, infelizmente, parece não ser mera coincidência.

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Literatura
“Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley
8 de agosto de 2019 at 21:23 0

No ano 2540 o mundo será bastante diferente do que é hoje. As pessoas não dizem mais “Meu Deus”, mas “Nosso Ford”, em homenagem Henry Ford. A crença em Deus não existe mais. É altamente respeitável, para mulheres e homens, ter vários parceiros sexuais – quanto mais, melhor, aliás. Por outro lado, ter filhos ou fazer parte de uma família é algo decididamente obsceno, já que os seres humanos e, 2540 nascem por um processo industrial que une espermatozoides e óvulos. Este processo permite que pessoas nasçam, de maneira deliberada, com diferentes capacidades, fazendo parte de cinco diferentes castas - dos Alfa (os mais evoluídos entre todos) até os Ípsilon (inferiores aos demais). O objetivo do governo geral é a harmonia e a felicidade entre todas as pessoas, e para isso um alucinógeno chamado Soma é amplamente distribuído. Também visando este objetivo, a leitura de clássicos como Shakespeare, por ser perturbadora, é proibida.

De todo modo, nem toda a população mundial vive conforme descrito no parágrafo anterior: alguns povos ainda vivem em ilhas, de maneira “primitiva”: casando, formando famílias, tendo filhos, acreditando em forças espirituais e em Deus.

Este é o mundo descrito no clássico “Admirável Mundo Novo”, do inglês Aldous Huxley (Biblioteca Azul, 312 páginas), publicado originalmente em 1932. No romance, a tensão entre o mundo “oficial” e o “primitivo” ocorre quando os personagens Bernard Marx e Helmholtz Watson (ambos Alfas) resolvem visitar uma ilha “primitiva” e trazem de lá um “selvagem”, chamado John, leitor de Shakespeare.

Os conflitos apresentados e os personagens são rasos, mas “Admirável Mundo Novo” é espetacular ao descrever um mundo totalitário, onde a utopia se mistura com a distopia.

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Literatura
“Carrie, a estranha”, de Stephen King
21 de julho de 2019 at 17:49 0

Sempre que alguém comenta "que os livros são sempre melhores do que os filmes baseados neles” eu lembro que “Laranja Mecânica”, o filme de Stanley Kubrick (1971), me pareceu muito melhor do que o livro correspondente de Anthony Burgess, publicado em 1962. Já com “Carrie, a estranha” (Objetiva, 200 páginas), a disputa filme x livro é bem acirrada.

Assisti ao filme de 1976 (há outras duas versões, uma de 2002 e outra de 2013), de Brian De Palma, com Sissy Spacek no papel principal, há muitos anos já. Carrie é uma garota que tem poderes de telecinese (basicamente, mover objetos com o poder da mente) e sofre bullying na escola em que estuda. Tentando aliviar a barra da moça, um garoto, convencido pela namorada, convida Carrie para o baile de formatura – e chega de contar a história. 

O livro - que li recentemente e que foi o primeiro publicado por Stephen King, em 1974 -, à maneira de H.P. Lovecraft, descreve com linguajar científico e detalhado a história da pobre garota e dos seus poderes mentais, o que acaba fazendo com que assistir ao filme - muito mais direto - seja muito mais assustador do que ler o livro. De todo modo, o sofrimento de Carrie, personagem baseada em duas meninas que o autor realmente conheceu, é mostrado em cores bem mais fortes no romance - o que faz com que o jogo termine praticamente empatado, no final das contas.

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Literatura, Obra Literária
“O verão de 54 (novelas)”
16 de julho de 2019 at 02:03 0

“O verão de 54 (novelas)” , de Fabricio Muller (Editora Appris), é composto por quatro histórias bastante diferentes uma da outra.

O Verão de 54 é uma história de amor proibido. Conversão trata de família e religião, Morrissey é um policial sobre um assassino serial com “uma missão” e Sorry é uma novela para adolescentes. O Verão de 54 é uma história em metalinguagem. Conversão utiliza um narrador onisciente, Morrissey é em formato de diálogo e Sorry é um diário.

Como se vê, o leitor pode iniciar a leitura deste livro por qualquer uma das quatro novelas cujo tema lhe pareça mais interessante.

Informações:

  • Comprar na Amazon, impresso ou para Kindle: aqui
  • Live de lançamento no YouTube, em de agosto de 2019 no Encontro Café do Escritor: aqui
  • Entrevista na CBN: aqui
  • Prefácio, por Robertson Frizero: aqui
  • Anúncio do lançamento na semana literária do Sesc, em 23 de setembro de 2019: aqui
  • Resenha da Regina Pimentel: aqui
  • Foto do lançamento do livro no CIP, em 4 de agosto de 2019: aqui
  • Trecho inicial da novela Morrissey: aqui
  • Trecho inicial da novela Sorry: aqui

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