Não lembro o personagem e nem em qual livro de J. M. G. Le Clézio essa história apareceu. Mas era uma das muitas andarilhas/fugitivas dos livros dele, que acabou se hospedando na casa de um rapaz muçulmano. Ele não era religioso nem nada: tinha uma vida, digamos, “alternativa”. Mesmo assim ele dizia que não havia livro árabe como com a qualidade do Alcorão Sagrado – que, como todos sabem, é o livro revelado por Deus ao Profeta Muhammad (segundo a crença muçulmana).
Indo no mesmo caminho, o Alcorão Sagrado é publicado pela Penguin Classics, a mais importante editora de livros clássicos do mundo. A Introdução da edição da Penguin começa assim: “O Alcorão é a primeira e a melhor obra de prosa clássica árabe”.
A verdade é que o Alcorão tem uma qualidade literária assombrosa. Abrindo meio por acaso o versículo 267 da Segunda Surata:
“Ó crentes, contribuí com o que de melhor tiverdes adquirido, assim como o que vos temos feito brotar da terra, e não escolhais o pior para fazerdes caridade, sendo o que vós não o aceitaríeis para vós mesmos, a não ser com os olhos fechados. Sabei que Allah é, por Si, Opulento, Laudabilíssimo.”
Continuando o próximo versículo:
“Satanás vos ameaça com a miséria e vos induz à obscenidade; por outro lado, Allah vos promete a Sua indulgência e as Suas graças, porque é Munificente, Sapientíssimo.”
E o versículo 268:
“Ele concede sabedoria a quem Lhe apraz, e todo aquele que for agraciado com ela, sem dúvida terá logrado um imenso bem; porém, salvo os sensatos, ninguém o compreende.”
Dá vontade de ler em voz alta – e é o que os muçulmanos têm feito há muitos séculos.
Cada Surata (que poderíamos chamar de capítulo) do Alcorão pode tratar de diversos temas: o paraíso, o inferno, a maldade, a fé, recomendações para um bom comportamento. E também pode contar a história da maneira que Deus tem atuado na História: por exemplo, segundo o Alcorão Sagrado, o Livro (a Bíblia), também foi enviado por Deus. Deste modo, os grandes personagens bíblicos (Moisés, Jonas, Abraão, Isaac, entre outros) também são profetas para o Islã, em pé de igualdade com o Profeta Muhammad – e, assim, suas histórias também são contadas no Alcorão Sagrado (com algumas diferenças em relação às histórias contadas na Bíblia; para o Alcorão, aliás, Jesus é profeta, nasceu de uma virgem e subiu aos céus – mas não foi crucificado).
A técnica utilizada no livro é assombrosa: os assuntos (exortações e histórias dos profetas, por exemplo) se sucedem em uma mesma Surata de maneira aparentemente aleatória. Muitas histórias e conselhos são repetidos diversas vezes – com pequenas diferenças entre uma vez e outra – ao longo do livro. O assombroso, no caso, é que o estilo literário é tão maravilhoso que nunca cansa o leitor.
É um livro que repete, mas que nunca é repetitivo.
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