"era comunista, e isso a gente podia aceitar; ele tinha um caso com uma mulher, e isso dava para aceitar; mas nunca acreditou em Deus, e isso não dava para aceitar".(trecho de Energia, terceira parte do meu livro "Rua Paraíba", publicado recentemente - mais detalhes aqui; fonte da foto: Estadão)
O título do presente texto é “Zonas húmidas”, e não isto é um erro de digitação. A edição que li deste romance da alemã Charlotte Roche é de Portugal (CADERNO, 222 páginas, tradução de João Bouza da Costa), e lá “úmido” se escreve com “h” mesmo. Como o livro é permeado de gírias, é ao mesmo tempo engraçado e angustiante para um brasileiro ler vários termos um tanto difíceis de compreender.
Publicado originalmente em 2008, o livro - muito bem escrito, aliás - conta a história de Helen, uma adolescente que está no hospital por causa de uma crise de hemorróidas. Enquanto está lá, sofrendo com dores, ela descreve e analisa seu dia-a-dia no hospital e comenta sua vida até então.
Helen é obcecada por secreções corporais e por sexo, e critica a “mania de higiene” de outras mulheres - ela mesma não se preocupa, nem um pouco, com limpeza corporal.
Segundo o site da Amazon, “os jornais relataram desmaios de ouvintes em leituras públicas” de “Zonas húmidas” - e até dá para entender um pouco isso, já que frequentemente o livro é nojento mesmo.
Mas o maior impacto do romance nem está na escatologia, mas na história da própria Helen - e é esse aspecto, que não posso contar para não estragar a surpresa, uma das coisas que fazem de “Zonas húmidas” um ótimo romance.
Janina Dusheiko era uma engenheira especialista em projetos de pontes que, por motivo de graves dores não bem diagnosticadas, resolve largar tudo e morar num pequeno povoado na Silésia, Polônia - quase junto à fronteira com a República Tcheca. Lá ela cuida das casas das pessoas que têm casas de veraneio, das quais saem nos meses frios, e dá algumas aulas de inglês para crianças. Janina é a narradora e a personagem principal de “Sobre os ossos dos mortos” (Todavia, 256 páginas, lançado originalmente em 2009), romance da polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de 2018.
No pequeno povoado Janina Dusheiko causa problemas para os caçadores e para a polícia – para quem manda enormes cartas se queixando das atividades ilegais daqueles. Vegetariana e astróloga amadora, ela odeia todos os que fazem mal para os animais e tenta achar uma razão para os acontecimentos e para as personalidades das pessoas nos astros. À medida que o romance transcorre, algumas pessoas que ela odeia – caçadores, policiais, pessoas envolvidas em atividades ilegais – morrem de forma misteriosa. A explicação dela é tão estranha quanto ela própria: a assassina é a própria Natureza se vingando dos homens maus por meio de animais se unindo e partindo para a ação. Outra característica de Janina Dusheiko é chamar todas as pessoas mentalmente por apelidos que ela mesma inventa.
Olga Tokarczuk conta magistralmente esta história ao mesmo tempo farsesca e sombria, e é brilhante nas suas descrições: a cada vez que lembro do livro me vem a imagem de neve por todos os lugares, com casas sofrendo com as intempéries – e um pouco de sangue aqui e ali.
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