É estranha a minha relação com a escritora polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de 2018. O primeiro livro dela que li, “Sobre os ossos dos mortos”, sobre o qual escrevi
aqui, foi crescendo em qualidade na memória: enquanto estava lendo-o ele me cansou diversas vezes, mas quando fui escrever sobre o romance não consegui encontrar nenhum defeito nele. Hoje posso dizer que foi um dos livros mais marcantes da minha vida, tão vívidas e fortes suas descrições.
Já com este excelente “Correntes” (Todavia, 400 páginas, tradução de Olga Bagińska-Shinzato, publicado originalmente em 2007) a estranheza vem de outro lugar. A obra é dividida em 116 capítulos, a maior parte deles muito curtos e aparentemente autobiográficos, e sem relação com os demais. Alguns trechos me lembraram meu próprio “Memórias”, segundo livro de
“Rua Paraíba”, obra mais recente que publiquei. Para dar uma ideia da coisa, vou transcrever um capítulo completo de “Correntes” aqui:
“Um sujeito na lanchonete de um certo museu me disse que nada lhe dava mais satisfação do que conviver com um original. Também insistiu que quanto mais cópias houver no mundo, maior será o poder do original — que às vezes se aproxima do poder de uma relíquia sagrada. Pois o que é singular é significativo, com a ameaça de destruição que paira sobre ele. A confirmação dessas palavras veio na forma de um grupo de turistas que celebrava com concentração devotada uma pintura de Leonardo da Vinci. Apenas ocasionalmente, quando algum deles já não aguentava mais, ouvia-se o clique de uma máquina fotográfica, que soava como um amém falado numa nova língua digital.”
Já no meu “Memórias” eu tenho um capítulo assim:
“Escrevi um conto batido a máquina. Cabia numa folha A4, no modo paisagem. Era escrito em três colunas: lendo a primeira coluna, o conto tinha um sentido. Se se juntassem as linhas da primeira e da segunda colunas, o sentido se modificava. Juntando a primeira, a segunda e a terceira colunas, outro sentido ainda aparecia. Eu não devia ter mais que onze anos, e mostrei o conto para um colega do curso de francês. Ele, então, mostrou para o pai dele, que veio com a sentença: ‘esse menino vai ser um grande escritor’. Eu ri e ele respondeu, sério: ‘meu pai nunca se engana.’”
Duas lembranças de episódios longínquos no tempo, duas opiniões originais (esquisitas?) de desconhecidos: um gosta de pessoas originais, outro achava que eu iria ser um grande escritor.
Mas “Correntes” tem muito mais do que pequenas lembranças: o livro fala sobre suas obsessões por viagens e por “gabinetes de curiosidades onde se coleciona e expõe objetos raros, únicos, bizarros e disformes”, como órgãos disformes de seres humanos conservados em formol (duas obsessões que, é interessante comentar, eu não tenho). Além disso, algumas histórias – não sei se ficcionais ou não – são contadas de maneira completa, como a de uma mãe e um filho que aparentemente desaparecem numa ilha turística, e a de uma nobre no século XVIII que pede desesperadamente, por cartas, para que Francisco, o Imperador da Áustria, dê um enterro digno para o seu pai.
“Correntes” é um livro fascinante, aliás muito melhor que o meu “Memórias”.
(foto que acompanha o texto obtido no
site da Revista Veja)
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