Texto de 2003 sobre o cd de estreia de Maria Rita
Música
Texto de 2003 sobre o cd de estreia de Maria Rita
16 de maio de 2021 0
Foi lendo uma resenha no Estadão que ouvi falar em Maria Rita pela primeira vez. Ela estava acompanhando o show de um violonista – mas quase todo o mundo, pelo visto, estava lá apenas e tão somente para ver a cantora. O tom do resenhista era de um completo deslumbramento – e, claro, havia comentários sobre a mãe de Maria Rita, Elis Regina, considerada por muita, mas muita gente mesmo (não por mim, diga-se de passagem) a maior cantora brasileira de todos os tempos. Bem, é impossível falar em Maria Rita sem compará-la com a sua mãe. Conforme se percebe em seu CD homônimo, recém-lançado pela Warner, o seu timbre é, em muitos momentos, impressionantemente parecido com o de Elis. O que deixa muitos fãs da mãe emocionados – às lágrimas – nos shows de Maria Rita. Mas há diferenças: a voz da filha é um pouco mais anasalada que a da mãe. Mais do que isto, Maria Rita é muito mais tranqüila. Elis tinha – na minha modesta e solitária opinião – tal intensidade dramática nas suas interpretações (um engraçadinho poderia falar em agitação), que freqüentemente chegava a irritar. No quesito tranqüilidade, portanto, ponto para a filha. Vamos ao disco. Por mais que Maria Rita tenha declarado – com sabedoria – que jamais regravará uma música da mãe, o estilo das suas músicas é demasiadamente parecido. Tem um bolero (“Dos Gardênias”), um samba divertido (“Cara Valente”), as músicas de Milton Nascimento (“A Festa” e “Encontros e Despedidas”), as da Rita Lee (“Agora Só Falta Você” e “Pagu”) e as confessionais sob o ponto de vista feminino (“Não Vale A Pena”). Além disso, duas regravações são discutíveis: tanto a versão de Milton Nascimento para “Encontros e Despedidas” quanto a do Los Hermanos para “Veja Bem Meu Bem” são bem superiores às de Maria Rita. E tem as músicas de Rita Lee, claro – péssimas, péssimas. De todo o modo, é preciso que se diga que Maria Rita está longe de ser um mau disco. “A Festa”, a “música de trabalho”, é deliciosa, assim como a supracitada “Dos Gardênias”. As inéditas do hermano Marcelo Camelo (“Cara Valente” e “Santa Chuva”) também não fazem feio. “Menina da Lua” (de Renato Mota) é emocionante, para dizer o mínimo. Também muito boa é “Lavadeira do Rio” (de Lenine e B. Tavares), com uma levada de ritmos regionais do Nordeste. O mais espantoso, porém, é que as duas melhores “faixas”, a emocionante “Vero” (de Natan Marques e Murilo Antunes) e a pungente “Estrela, Estrela” (de Vitor Ramil), somente podem ser obtidas quando baixadas da internet em um site secreto – que só pode ser acessado por quem comprar o CD original. Um verdadeiro tesouro secreto… (Texto publicado no Mondo Bacana em 2003)
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“Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer”, de David Lynch
Cinema
“Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer”, de David Lynch
9 de maio de 2021 0
Ainda vou comentar sobre a série cult Twin Peaks por aqui, mas este texto é específico sobre o filme “Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer” (“Twin Peaks: Fire Walk with Me” no original em inglês). Ao terminar a segunda temporada de Twin Peaks em 1991, o diretor da série, David Lynch, aproveitou a deixa para lançar o filme já em 1992. “Twin Peaks: Os últimos dias de Laura Palmer” é uma espécie de prequel, já que conta o que aconteceu antes da morte da personagem (e aqui não tem nenhum spoiler, já que o assassinato de Laura Palmer é uma das primeiras coisas que aparecem na série), mas também é uma sequel, já que conta quem a matou – o que só acontece no meio da segunda temporada de Twin Peaks. Eu lembro que amava a série quando passou na Globo no início dos anos 90, e que ela foi mutilada (como se fosse um filme de Erich von Stroheim da década de 1920), já que a audiência desabou porque a Folha de São Paulo deu o maior spoiler das últimas décadas na imprensa brasileira, contando quem matou Laura Palmer. Eu mesmo, na época, não queria saber o nome do assassino, mas me contaram na faculdade sem eu perguntar. Enfim. Frustrado com o que fizeram com a série que eu estava gostando tanto, acabei me recusando a assistir “Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer”, por mais que a fita VHS estivesse dando sopa lá na locadora onde eu ia. Sei lá o que eu achei na época, mas provavelmente eu pensava que tinha que assistir à série inteira – o que não pude fazer, conforme contei acima, porque a Globo resolveu fazer um resumão dela – antes de ver o filme. O fato de a crítica ter detonado o filme – que aparentemente chegou a ter sido vaiado no Festival de Cannes em 1992 – também não ajudou muito. Enfim, foi bom eu ter visto o filme só agora, depois de finalmente ter assistido às duas primeiras temporadas da série. Se Twin Peaks tem humor e fala dos hábitos desregrados de Laura Palmer de forma relativamente leve – estamos falando de uma série de televisão, afinal –, o filme “Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer” é um soco no estômago, contando de maneira explícita a espiral de sexo e drogas em que a personagem vivia antes de ser assassinada. É um filme sombrio, violento, sem uma gota de humor. E, apesar de ter sido criado pelo mesmo David Lynch da série, parece ter sido feito por outro diretor, tão diferente é a abordagem nos dois casos – coisa de gênio, eu diria. Não por acaso parte da crítica mudou de opinião, e hoje em dia o filme tem sido mais bem avaliado do que tinha sido quando do seu lançamento.
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“A morte de Bunny Munro”, de Nick Cave
Literatura
“A morte de Bunny Munro”, de Nick Cave
9 de maio de 2021 0
Logo no início de A morte de Bunny Munro (Editora Record, 352 páginas), segundo romance do cantor australiano Nick Cave (o primeiro se chama And the ass saw the angel) o protagonista recebe um telefonema de sua mulher, em profunda crise depressiva, enquanto uma prostituta lhe faz sexo oral num hotel – perto de sua casa, onde está Liby, sua mulher, aliás. Bunny Munro não sai correndo para tentar ajudar a mulher, que toma remédios fortíssimos para aplacar seus problemas mentais, mas fica no hotel até o dia seguinte. Liby se suicida na mesma noite. Quando volta para casa, Munro – que é um daqueles vendedores de porta em porta de produtos de beleza femininos – vê sua casa de pernas para o ar, a mulher enforcada e seu filho, sem assistência nenhuma, assustado. Os problemas de Bunny Junior, o filho do protagonista, de nove anos, estão apenas começando. Seu pai não tem a menor ideia de como criar o filho. Tenta empurrá-lo para a mãe de Liby, mas esta, numa crueldade injustificável, diz que não pode ficar com o garoto já que este lhe lembra o genro, que ela odeia com todas as suas forças. Então começa o sofrimento do menino – A morte de Bunny Munro se lê com angústia. A única coisa que realmente importa para o vendedor de produtos de beleza é o órgão sexual feminino. Homem atraente e sedutor, ele tenta fazer sexo com grande parte das mulheres que passam pela sua frente – e muitos de seus pensamentos são utilizados em fantasias sexuais com mulheres famosas: ele tem desejos tão explícitos com Kylie Minogue e Avril Lavigne que Nick Cave chega a pedir desculpas para elas no final do livro. Além disso, ele é praticamente alcoólatra, bebendo sem parar. Um homem tão bêbado e obcecado por sexo realmente não está preparado para cuidar de um garoto de nove anos. Bunny Junior tem um problema sério na vista, mas não consegue fazer seu pai ouvi-lo pedir o colírio que pode impedi-lo de ficar cego. Sem ter com quem deixar o garoto, o pai sai pela cidade atrás de clientes e de sexo. O menino, nestas aventuras, fica esquecido dentro do carro. O seu pai fica cada vez mais maluco, e acaba morrendo – como promete o título do livro, aliás (tenho de confessar, com certa vergonha, que às vezes ficava torcendo para o personagem morrer de uma vez, para acabar o sofrimento). O final do livro utiliza o sobrenatural para dar um fio de esperança para o leitor – e Nick Cave faz isso com maestria, o que nem sempre é fácil. A morte de Bunny Munro me lembra dois clássicos da literatura, por dois motivos diferentes. O primeiro é Pelos olhos de Maisie, de Henry James (Companhia das Letras/Penguin), pelo sofrimento atroz que aqueles que deveriam cuidar dos filhos às vezes inflingem nestes. O segundo é O Complexo de Portnoy, de Philip Roth (Companhia das Letras). Tanto o livro do grande escritor judeu americano quanto A morte de Bunny Munro revelam “pensamentos calhordas que os machos têm em relação às fêmeas, mas dificilmente saem falando por aí”, no dizer de Thales de Menezes na crítica do livro de Nick Cave (Folha de São Paulo, 28 de agosto de 2010). (texto anteriormente publicado no Mondo Bacana)
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“Os andarilhos do bem”, de Carlo Ginzburg
História
“Os andarilhos do bem”, de Carlo Ginzburg
2 de maio de 2021 0
Nas quintas-feiras do Quatro Tempos (segundo a Wikipédia, “a semana de santa Lúcia em dezembro, Quarta-Feira de Cinzas, domingo de Pentecostes e no domingo de Exaltação da Santa Cruz em setembro”) os benandanti (ou seja, “andarilhos do bem”) são convocados para a batalha noturna contra as bruxas. Caso aqueles sejam vencedores das lutas, a colheita terá sucesso; em caso contrário, ela será um fracasso e a fome grassará no Friul, região no nordeste da Itália. Os benandanti são os “empelicados”, ou seja, aqueles que nasceram sem o rompimento do “pelico” – ou bolsa amniótica -, que muitas vezes o carregam consigo pelo restante da vida. Os “andarilhos do bem” batalham apenas em espírito, ou seja, ficam deitados na cama, imóveis, enquanto suas almas vão lutar contra as bruxas pelo bem da colheita e, em última análise, da comunidade – importante ressaltar que eles não podem ser acordados ou mexidos nessas ocasiões porque a alma corre o risco de não voltar para o corpo. A Inquisição acaba sabendo da existência sobre desses estranhos benandanti e vários processos são instalados com o intuito de descobrir o quanto o procedimento deles é contrário às leis da Igreja. Apesar de um ou outro benandanti ser condenado à fogueira, na grande maioria dos casos os inquisidores, muito mais preocupados contra heresias protestantes, acabam deixando os bruxos do bem em paz. O que foi descrito acima aconteceu entre o final do século XVI e o início do século XVII, e é descrito com detalhes em “Os andarilhos do bem”, do historiador italiano Carlo Ginzburg (Companhia das Letras, 283 páginas, tradução de Jônatas Batista Neto, publicado pela primeira vez em 1966). E o livro é tão fascinante quanto parece.
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“Como fazíamos sem” e coleção “Baú de Histórias”
História
“Como fazíamos sem” e coleção “Baú de Histórias”
2 de maio de 2021 0
Existem alguns assuntos de conversa que são melhores que outros. Diferenças lingüísticas, por exemplo. Experimente, numa roda de amigos, dizer que o chinês é uma língua tonal, o que significa que uma palavra muda totalmente o sentido se você a pronunciar como um pergunta, como uma afirmação ou como uma ordem, que você vai ver a reação fascinada da maioria das pessoas. Outras dicas: diga, por exemplo, que o japonês tem três alfabetos, um deles copiado do chinês, o que faz com que uma pessoa japonesa consiga entender por alto um texto escrito em chinês, por mais as duas línguas sejam totalmente diferentes. Que o vietnamita é uma língua tonal como o chinês, mas que o governo comunista de lá resolveu mudar do alfabeto antigo para o alfabeto latino (o nosso). Resultado: para dar conta dos diversos tons utilizando as nossas letras, o vietnamita é escrito com mais de dez acentos, que se situam acima, no meio e abaixo das letras! Isto até pode ser “cultura inútil”, que não vai fazer aumentar nossos salários, mas que diverte e fascina. Outro assunto de conversa interessantíssimo é a chamada “história da vida privada”, a história, não das grandes personalidades e líderes, mas do dia-a-dia da intimidade das pessoas. Entre os assuntos que este tipo de “história íntima” analisa está o “como vivíamos sem” um ou outro novo produto ou aparelho. A tecnologia tem mudado radicalmente a vida dos seres humanos: muitas pessoas de mais de quarenta anos mal conseguem acreditar como viviam sem celulares na juventude (por mais que ninguém sentisse falta do aparelhinho na época!). Um dos grandes fascínios da recente série Roma¸ da HBO, por exemplo, é o cuidado dos produtores em mostrar a vida na República Romana (pouco antes do início do Império) exatamente como ela era: as pessoas comiam com as mãos, usavam tochas para iluminação (não havia luz elétrica) e até uma trepanação – cirurgia que consistia em fazer buracos no crânio usando uma pedra para libertar os espíritos ruins que tinham se alojado no corpo do doente – é mostrada no seriado. Comer com as mãos, tochas para iluminação e trepanação são alguns dos exemplos citados no delicioso “Como fazíamos sem”, da jornalista mineira Bárbara Soalheiro (Panda Books, 144 páginas). O livro é bem-humorado – na medida certa, ou seja, nada “engraçadinho” – e muito bem ilustrado. Em seus capítulos curtos, mostra o que as pessoas faziam quando não havia anestesia, geladeira, armário, dinheiro… Alguns exemplos apresentados no livro são particularmente interessantes. Antes da invenção do vaso sanitário, “o matinho era a privada de nossos antepassados. Lá pelo século XVIII, quando as cidades começaram a crescer e já não havia tanto mato por perto, a solução foi usar baldes. E é por isso que os maiores beneficiados com a invenção de privadas não foram os que estavam com vontade de usar o toalete (afinal, cá para nós, quando a vontade é grande mesmo o lugar pouco importa), mas os transeuntes das grandes capitais. Depois que acabavam de fazer suas necessidades, as pessoas despejavam o conteúdo dos baldes nas ruas. Em Paris, para alertar quem passava, gritavam ‘Água vá!’ antes de jogar fezes e urina pela janela. No Rio de Janeiro ou em Salvador, nem isso eles faziam.” Sem avião, sem automóveis e sem boas estradas, a viagem de “Ouro Preto ao Rio de Janeiro – as duas principais cidades brasileiras no século XVII – levava pelo menos 12 dias. Hoje, é assunto resolvido com apenas 50 minutos dentro de um avião. E se você é daqueles que reclamam depois de algumas horas dentro do carro e acha que o maior problema naquele tempo era ter paciência para agüentar quase duas semanas de viagem, é porque não tem idéia do quanto elas eram desconfortáveis. Quem fazia a viagem com mais freqüência eram os tropeiros, encarregados do comércio de animais – em geral, bois. Eles iam a cavalo, parando em fazendas para pernoitar. Um dos problemas que enfrentavam – além dos percalços da estrada como lama, mosquitos e bandidos – era levar alimentos que não perecessem em uma viagem tão longa. Foi dessas dificuldades que nasceram alguns pratos que comemos até hoje. Um dia, por exemplo, alguém que gostava muito de feijão teve a idéia de misturá-lo com farinha. Assim ficava mais fácil transportar – e o feijão se mantinha conservado por mais tempo. Resultado: nasceu o feijão tropeiro, um clássico da comida nacional.” “Como fazíamos sem” ainda tem muitas outras curiosidades sobre como era a vida de nossos antepassados, como o motivo pelo qual os ingleses são pontuais e os brasileiros não. Mas, para saber mais, o negócio é comprar os livro. Se você for fã de cultura inútil ou de um bom papo, não vai se arrepender. _____________________________________________________________ Segundo a sua coordenadora de publicação, Mary del Priore, a coleção Baú de histórias, da José Olympio Editora, apresenta raridades bibliográficas, inéditas até hoje e marcadas pela indiferença e o esquecimento, que têm interesse literário, histórico e etnográfico, “raros testemunhos de um universo e um tempo que perdemos”. Dois exemplares desta coleção tratam da escravidão durante o período do Império Brasileiro: Cinqüenta dias a bordo de um navio negreiro, do pastor anglicano Pascoe Grenfell Hill (123 páginas) e Entrevistas com escravos africanos na Bahia oitocentista, do estudioso francês Francis de Castelnau. O mais interessante entre eles é Cinqüenta dias… Em 1842 os brasileiros e portugueses ainda não tinham abolido o tráfico de escravos da África para o Brasil, e os navios negreiros eram considerados fora-da-lei pela legislação internacional. O livro do pastor Grenfell Hill conta uma história real: uma apreensão de um navio transportando escravos por uma barcaça inglesa. O que poderia ser uma história de final feliz com a libertação dos cativos, infelizmente, resultou em uma tragédia. Os ingleses não podiam, simplesmente, mandar os escravos para um local próximo na costa africana porque eles seriam escravizados de novo (eram próprios negros africanos que vendiam seus semelhantes). A solução era liberá-los em um lugar distante, mas os
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“Greed”, de Erich von Stroheim
Cinema
“Greed”, de Erich von Stroheim
25 de abril de 2021 0
Poucos filmes têm uma história tão mítica e trágica quanto “Greed” (“Ouro e Maldição” no Brasil), lançado em 1924. O seu diretor, Erich von Stroheim, o considerava a sua melhor obra e dizia que os cortes que o estúdio promoveu no filme o feriram tanto profissional quanto pessoalmente. “Greed”, baseado no romance naturalista publicado em 1899 “McTeague”, do escritor americano Frank Norris, conta a história de John McTeague (Gibson Gowland), um trabalhador de minas que, após aprender o ofício, acaba trabalhando como dentista. Ele se casa com Tina Sieppe (ZaSu Pitts), prima de seu melhor amigo, Marcus Schouler (Jean Hersholt), e é a vitória dela numa loteria que acaba colocando a vida de todos de cabeça para baixo: Tina fica obcecada com o dinheiro, não gasta um centavo dele, e também não deixa o marido – um bom homem, mas limitado intelectualmente – gastá-lo (não à toa, o título do filme, “Greed”, é “avareza” em português). Acho que não precisa contar mais nada do enredo, para não estragar a surpresa. Stroheim apresentou a sua versão inicial de “Greed”, de oito horas de duração, para um grupo pequeno de jornalistas e conhecidos. Boa parte dos presentes saiu da sala de projeção dizendo que este era o “melhor filme de todos os tempos”. Depois disso começou o drama do pré-lançamento. A Goldwyn Company (antecessora da Metro-Goldwyn-Mayer), produtora do filme, obviamente não gostou da ideia de lançar um filme tão longo e pediu para Stroheim deixá-lo num tamanho aceitável. Ele fez os cortes que quis e diminuiu o filme para quatro horas, mas mesmo assim a produtora não gostou e pediu para o editor Joseph W. Farnham diminuí-lo ainda mais – e o filme acabou com as quase duas horas e meia atuais. Stroheim ficou furioso com o resultado final e disse que “Greed” “foi cortado por editor que não tinha nada na cabeça fora o chapéu”. Entre os trechos cortados de “Greed”, por exemplo, as histórias paralelas de dois casais vizinhos – um casal bom, outro mau – dos McTeague foram eliminadas inteiramente! A versão de “Greed” original de oito horas de duração tornou-se uma espécie de Santo Graal do cinema, com diversos comentários ao longo do tempo dizendo que a versão completa do filme tinha sido vista aqui e ali – Stroheim chegou a dizer que o ditador italiano Benito Mussolini tinha uma cópia -, mas não se encontrou nenhuma prova de que essa versão realmente exista em algum lugar. A Turner fez uma versão de quatro horas, juntando o roteiro original de Stroheim com trechos e fotos não aproveitados na versão comercial. Em sua espetacular biografia “Stroheim”, Arthur Lenning comenta que promoveu a reconstrução de outro filme de Stroheim também dilapidado, “Foolish Wives”, aumentando significativamente o tamanho da versão da produtora; na estreia da sua versão da película, “um dos grandes amantes de filmes silenciosos” chegou para Lenning e lhe disse: “grande trabalho, mas fico feliz que você não tenha encontrado ainda mais” trechos não aproveitados do filme. Realmente, a sensibilidade moderna tende a rejeitar filmes silenciosos, por mais geniais que eles sejam. Quanto a mim, já assisti ao filme três vezes (duas das quais descrevi aqui) e pretendo revê-lo algumas vezes ainda. A história contada por Stroheim é sórdida e fascinante em proporções iguais, e merece toda a fama que tem; só lamento que a versão a que assisti no YouTube não tem a parte final, filmada no Vale da Morte na Califórnia, tingida de amarelo como aquela do próprio Stroheim – de todo modo, trechos dessa versão amarelada podem ser vistos aqui. Mas eu concordo com Arthur Lenning quando ele diz que é um erro considerar – como por muito tempo foi a opinião geral da crítica – que Stroheim foi o diretor de somente um filme importante, “Greed”. Na verdade, o restante dos seus filmes tem o mesmo nível artístico – e ainda não tenho ideia de qual é o meu preferido entre eles.
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“Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico”, de Guilherme Fiuza
História
“Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico”, de Guilherme Fiuza
25 de abril de 2021 0
Todo o mundo já deve ter ouvido aquela teoria de que os “verdadeiros” grandes traficantes do Rio de Janeiro moram confortavelmente em apartamentos na Zona Sul carioca, não nos morros. Quando se lê o subtítulo de Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico, de Guilherme Fiuza (Editora Record, 336 páginas), pode-se pensar que estamos diante de um caso destes – ou seja, o de um traficante realmente grande com educação burguesa. Sinto decepcionar os partidários desta teoria da conspiração, mas a história contada neste excelente livro é um pouco diferente. Meu Nome Não é Johnny conta a história de João Guilherme Estrella, rapaz bem nascido que gosta de tocar músicas em seu violão e que cedo começou a se envolver no meio artístico. A partir da convivência com a “turma” vêm as primeiras experiências com drogas. Primeiro a maconha, depois o LSD e então a cocaína – que acaba viciando-o. Como necessita de cada vez maiores quantidades para consumo próprio, ele começa a vender pó (ainda em pequena escala) para arranjar dinheiro. Isto o faz entrar em contato com alguns traficantes e a coisa vai aumentando. Estrella arruma esquemas para traficar quantidades cada vez maiores diretamente da Bolívia: a cocaína que ele conseguia lá – apelidada de “Nelore Puro” – era a mais pura do mercado de drogas no Rio da época (final dos anos 80/início dos 90). Juntando o grande conhecimento da sociedade carioca que tem João Guilherme Estrella (ele sempre fora um sujeito extremamente sociável e simpático) com a qualidade insuperável de seu pó, é óbvio que o resultado só pode ser um. O rapaz da Zona Sul transforma-se em um grande atacadista de drogas, chegando a fazer viagens para Amsterdam para fazer grandes vendas do “Nelore Puro” na Europa). E, claro, neste tempo todo ele continua ingerindo quantidades fenomenais de cocaína. Mas se Estrella já passa a ser um grande traficante em termos de quantidade, em termos de violência ele não pode ser comparado aos chefões do morro. Impulsivo, pouco se importando com as conseqüências de seus atos, não só ele não tem segurança pessoal como sequer anda armado. Logo a Lei está atrás dele. Na primeira vez consegue se safar da polícia através de suborno. Na outra isto não é mais possível. É preso, recebendo uma condenação leve, em um grande momento da juíza que o condenou – pois ela, acertadamente, acreditava no caráter de João Guilherme Estrella. Mas nem por isto o sofrimento que o protagonista passa, tanto na cadeia quanto no manicômio judiciário, são pequenos. Todos estes maus momentos acabam ajudando o rapaz da Zona Sul a se redimir. Atualmente, ele trabalha como produtor musical, não trafica mais e está recuperado do vício da cocaína. Meu Nome Não é Johnny (o título é baseado na notícia do Jornal do Brasil; quando da prisão do traficante, o diário carioca escreveu que seu apelido era Johnny – o que nunca fora verdade) é uma obra extremamente bem escrita, em uma linguagem simples, direta e envolvente. É o tipo do livro difícil de parar de ler. Outra qualidade é que, em nenhum momento, o autor Guilherme Fiuza parece querer dar uma lição de moral aos leitores. Fiuza nem precisa disto, na verdade. A história fala por si. (Publicado no Mondo Bacana em 2008) (foto obtida no Posfácio)
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“O fim”, de Karl Ove Knausgård
História, Literatura
“O fim”, de Karl Ove Knausgård
18 de abril de 2021 0
Reconheço aqui que eu acessava o site da Companhia das Letras algumas vezes por mês para ver se finalmente tinha sido publicado em português o sexto e último volume da série de autoficção “Minha luta”, do norueguês Karl Ove Knausgård. Depois de uma longa espera, finalmente saiu “O fim” – título em português do livro tão aguardado, com tradução de Guilherme da Silva Braga –, e aí entendi por que o negócio demorou tanto (o anterior, chamado por aqui de “A descoberta da escrita”, tinha sido lançado por aqui em 2017): o sexto volume da série que catapultou Knausgård para o sucesso mundial tem 1054 páginas. Eu nem sei o tamanho da letra da edição impressa, já que eu li o livro no Kindle, mas tenho impressão, a partir de rápida folheada numa livraria, de que ela é pequena. Um romance realmente muito longo. Em “O fim” Knausgård dá muitos detalhes do medo que ele sentiu por ter apresentado fatos íntimos sobre diversas pessoas conhecidas nos romances anteriores da série, como a depressão da esposa e o processo que um tio ameaçou mover contra ele. Outro tema recorrente é a sua rotina como pai de três crianças, duas meninas e um menino, e a dificuldade da esposa em lidar com seu papel de mãe. Tudo isso com o estilo fascinante e ultradetalhado de Knausgård, que pode usar mais de cem páginas para descrever um jantar sem nunca parecer chato ou repetitivo. Mas “O fim” tem também um número enorme de páginas de teor ensaístico, de excelente qualidade aliás, nas quais se destacam dois temas: a análise de um pequeno poema do romeno, radicado na França, Emil Cioran, e a análise do livro “Minha luta” original, de Adolf Hitler, e do nazismo como um todo. Enfim, a leitura do ciclo “Minha luta” de Knausgård acabou. E eu tenho mais um livro dele aqui em casa, de nome “Winter”, mais recente e de outro ciclo chamado, na tradução em inglês, de “Seasons Quartet”. Será que eu o leio em inglês mesmo, arriscando a perder alguma coisa do sentido, ou fico entrando de novo no site da Companhia das Letras para ver se eles o publicam por aqui em português?
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