História

“Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico”, de Guilherme Fiuza
História
“Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico”, de Guilherme Fiuza
25 de abril de 2021 at 13:52 0
Todo o mundo já deve ter ouvido aquela teoria de que os “verdadeiros” grandes traficantes do Rio de Janeiro moram confortavelmente em apartamentos na Zona Sul carioca, não nos morros. Quando se lê o subtítulo de Meu Nome Não é Johnny – A Viagem Real de um Filho da Burguesia à Elite do Tráfico, de Guilherme Fiuza (Editora Record, 336 páginas), pode-se pensar que estamos diante de um caso destes – ou seja, o de um traficante realmente grande com educação burguesa. Sinto decepcionar os partidários desta teoria da conspiração, mas a história contada neste excelente livro é um pouco diferente. Meu Nome Não é Johnny conta a história de João Guilherme Estrella, rapaz bem nascido que gosta de tocar músicas em seu violão e que cedo começou a se envolver no meio artístico. A partir da convivência com a “turma” vêm as primeiras experiências com drogas. Primeiro a maconha, depois o LSD e então a cocaína – que acaba viciando-o. Como necessita de cada vez maiores quantidades para consumo próprio, ele começa a vender pó (ainda em pequena escala) para arranjar dinheiro. Isto o faz entrar em contato com alguns traficantes e a coisa vai aumentando. Estrella arruma esquemas para traficar quantidades cada vez maiores diretamente da Bolívia: a cocaína que ele conseguia lá – apelidada de “Nelore Puro” – era a mais pura do mercado de drogas no Rio da época (final dos anos 80/início dos 90). Juntando o grande conhecimento da sociedade carioca que tem João Guilherme Estrella (ele sempre fora um sujeito extremamente sociável e simpático) com a qualidade insuperável de seu pó, é óbvio que o resultado só pode ser um. O rapaz da Zona Sul transforma-se em um grande atacadista de drogas, chegando a fazer viagens para Amsterdam para fazer grandes vendas do “Nelore Puro” na Europa). E, claro, neste tempo todo ele continua ingerindo quantidades fenomenais de cocaína. Mas se Estrella já passa a ser um grande traficante em termos de quantidade, em termos de violência ele não pode ser comparado aos chefões do morro. Impulsivo, pouco se importando com as conseqüências de seus atos, não só ele não tem segurança pessoal como sequer anda armado. Logo a Lei está atrás dele. Na primeira vez consegue se safar da polícia através de suborno. Na outra isto não é mais possível. É preso, recebendo uma condenação leve, em um grande momento da juíza que o condenou – pois ela, acertadamente, acreditava no caráter de João Guilherme Estrella. Mas nem por isto o sofrimento que o protagonista passa, tanto na cadeia quanto no manicômio judiciário, são pequenos. Todos estes maus momentos acabam ajudando o rapaz da Zona Sul a se redimir. Atualmente, ele trabalha como produtor musical, não trafica mais e está recuperado do vício da cocaína. Meu Nome Não é Johnny (o título é baseado na notícia do Jornal do Brasil; quando da prisão do traficante, o diário carioca escreveu que seu apelido era Johnny – o que nunca fora verdade) é uma obra extremamente bem escrita, em uma linguagem simples, direta e envolvente. É o tipo do livro difícil de parar de ler. Outra qualidade é que, em nenhum momento, o autor Guilherme Fiuza parece querer dar uma lição de moral aos leitores. Fiuza nem precisa disto, na verdade. A história fala por si. (Publicado no Mondo Bacana em 2008) (foto obtida no Posfácio)
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“O fim”, de Karl Ove Knausgård
História, Literatura
“O fim”, de Karl Ove Knausgård
18 de abril de 2021 at 13:37 0
Reconheço aqui que eu acessava o site da Companhia das Letras algumas vezes por mês para ver se finalmente tinha sido publicado em português o sexto e último volume da série de autoficção “Minha luta”, do norueguês Karl Ove Knausgård. Depois de uma longa espera, finalmente saiu “O fim” – título em português do livro tão aguardado, com tradução de Guilherme da Silva Braga –, e aí entendi por que o negócio demorou tanto (o anterior, chamado por aqui de “A descoberta da escrita”, tinha sido lançado por aqui em 2017): o sexto volume da série que catapultou Knausgård para o sucesso mundial tem 1054 páginas. Eu nem sei o tamanho da letra da edição impressa, já que eu li o livro no Kindle, mas tenho impressão, a partir de rápida folheada numa livraria, de que ela é pequena. Um romance realmente muito longo. Em “O fim” Knausgård dá muitos detalhes do medo que ele sentiu por ter apresentado fatos íntimos sobre diversas pessoas conhecidas nos romances anteriores da série, como a depressão da esposa e o processo que um tio ameaçou mover contra ele. Outro tema recorrente é a sua rotina como pai de três crianças, duas meninas e um menino, e a dificuldade da esposa em lidar com seu papel de mãe. Tudo isso com o estilo fascinante e ultradetalhado de Knausgård, que pode usar mais de cem páginas para descrever um jantar sem nunca parecer chato ou repetitivo. Mas “O fim” tem também um número enorme de páginas de teor ensaístico, de excelente qualidade aliás, nas quais se destacam dois temas: a análise de um pequeno poema do romeno, radicado na França, Emil Cioran, e a análise do livro “Minha luta” original, de Adolf Hitler, e do nazismo como um todo. Enfim, a leitura do ciclo “Minha luta” de Knausgård acabou. E eu tenho mais um livro dele aqui em casa, de nome “Winter”, mais recente e de outro ciclo chamado, na tradução em inglês, de “Seasons Quartet”. Será que eu o leio em inglês mesmo, arriscando a perder alguma coisa do sentido, ou fico entrando de novo no site da Companhia das Letras para ver se eles o publicam por aqui em português?
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Pikillacta
História, Viagem
Pikillacta
21 de fevereiro de 2021 at 19:52 0
A região de Cusco, no Peru, é impressionante. Grande parte das pessoas já ouviu falar Macchu Picchu, a cidade inca construída na parte superior de uma montanha nos Andes. Quando eu e minha família fomos para lá, entre o final de 2018 e início de 2019, passamos um dia inteiro fazendo o trajeto Cusco-Macchu Picchu, com meios de transporte que incluíam uma van, um trem e um ônibus tanto na ida quanto na volta. Lá em cima, na antiga cidade inca, eu tive uma crise de pânico por causa da altura da coisa, mas graças a Deus este texto não é sobre isso. Nos dias a seguir à malfadada – para mim – viagem, saímos com um guia, o querido Irvin Alex Choqque Vargas e fomos conhecer as atrações turísticas da região de Cusco. Uma igreja espetacular num pequeno povoado. Uma barragem inca. Uma outra atração inca em que eu não fui porque não queria saber de lugares altos tão cedo. Uma loja de produtos típicos. Mas nada disso tinha me preparado para o que eu encontraria em Pikillacta, um antigo centro urbano da civilização Wari. Fiquei impressionado com as ruínas desta enorme cidade, tão grande ou maior que Macchu Picchu, criada por uma civilização da qual eu nunca tinha ouvido falar. Os  Wari foram um povo pré-Inca que viveu entre os anos 500 e 1100 d.C., numa região que se estendia entre Catamarca, ao norte, e Cusco, ao sul. Uma discussão importante entre os pesquisadores atuais do Império Wari é se este povo era o tipo de conquistador ao estilo dos romanos e mongóis - imperialistas stricto sensu - ou se era simplesmente uma civilização de negociantes, cuja influência nos estilos de cerâmica se dava mais pelo comércio do que outra coisa. A arquitetura de Pikillacta é toda ortogonal, conforme mostra esta foto aérea obtida do livro de Gordon McEwan, “The Wari Empire in Cuzco”[1]: O esquema típico das construções era mais ou menos assim, ainda segundo o livro de McEwan: O mesmo livro apresenta o desenho de um desenho mais amplo de como deveria aparentar um setor a cidade de Pikillacta quando era habitada no ano 700 d.C.: E uma planta de três setores da cidade: O estado atual de Pikillacta pode ser visto em algumas fotos que eu tirei no local, a seguir - em algumas delas se pode ver as escavações e pesquisas que estavam sendo feitas. Próximo à entrada de Pikillacta foi construído um pequeno museu, no qual se pode ver dois fósseis gigantes - bem anteriores ao império Wari - e alguns objetos de cerâmica, conforme mostrado nas fotos a seguir: A grande atração do pequeno museu, porém, é a armadura - feita em prata - do Señor Huari de Vilcabamba, provavelmente um dirigente Wari, encontrada em 2011 numa região da selva peruana chamada Espíritu Pampa, no distrito de Vilcabamba da província de La Convención, Cuzco. Abaixo segue a foto da armadura do Señor Huari de Vilcabamba, que também encabeça este texto. Foi uma pena que começou a relampejar feio quando estávamos em Pikillacta, e nossa visita foi curta. Por mim, teria ficado o dia inteiro lá. *** Fiquei tão impressionado com Pikillacta que comecei a pesquisar sobre a Civilização Wari, mas acho que comentar sobre essas pesquisas foge um pouco do objetivo deste texto – o que dá para adiantar, de todo modo, é que não se sabe direito para que servia a cidade. Gordon McEwan defende, entre outras coisas, que cerimônias religiosas importantes eram feitas no local. Eu amo este desenho retirado de seu livro, e fico imaginando como seria uma cerimônia religiosa entre as paredes de Pikillacta:     [1] McEwan, Gordon F. (2009). Pikillacta:. The Wari Empire in Cuzco (em inglês). [S.l.]: University of Iowa Press, p. 20. ISBN 9781587295966
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Os livros que mais gostei de ter lido em 2020
História, Literatura
Os livros que mais gostei de ter lido em 2020
31 de dezembro de 2020 at 15:16 0
  1. “Gengis Khan e a formação do mundo moderno”, de Jack Weatherford: provavelmente você não sabia que o grande imperador mongol (1158 – 1227) tinha uma mentalidade tão à frente do seu tempo.
  2. “Não me abandone jamais”, de Kazuo Ishiguro: poucos livros me perturbaram tanto.
  3. “O império de Hitler”, de Mark Mazower: sempre tive curiosidade de saber como os nazistas se comportavam como colonizadores, coisa que este livro monumental explica.
  4. “A destruição dos judeus europeus”, de Raul Hilberg: outro livro monumental, sobre o Holocausto neste caso.
  5. “O mapa e o território”, de Michel Houellebecq: fico mais feliz lendo uns autores do que outros, e Michel Houellebecq é um dos que me dão mais alegria na leitura.
  6. “Os testamentos”, de Margaret Atwood: continuação de “O conto da Aia”, não preciso explicar mais.
  7. “As luas de Júpiter”, de Alice Munro: tem gente que reclama do Prêmio Nobel de Literatura por causa disso e daquilo, mas eu provavelmente não conheceria autoras como esta canadense se não fosse a Academia Sueca.
  8. “A época da inocência”, de Edith Wharton: um amor mal resolvido e os preconceitos e costumes dos ricos americanos do final do século XIX e início do século XX numa obra-prima.
  9. “O dom”, de Vladimir Nabokov: Nabokov é Nabokov, e pronto.
  10. Deus, essa gostosa, de Rafael Campos Rocha: uma história em quadrinhos que comprova que God is a woman, como diz a Ariana Grande, uma favorita aqui da casa.
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“Gengis Khan e a formação do mundo moderno”, de Jack Weatherford
História
“Gengis Khan e a formação do mundo moderno”, de Jack Weatherford
25 de dezembro de 2020 at 22:11 2
O imperador mongol Gengis Khan (1158 – 1227) é comumente visto como um assassino violento e estuprador em série. A visão dada por “Gengis Khan e a formação do mundo moderno” (Bertrand Brasil, 460 páginas, tradução de Jorge Ritter, publicado originalmente em 2006), do historiador americano Jack Weatherford, não chega a negar essas suas características, mas mostra uma pessoa bastante diferente da ideia comum que se tem dele. O grande imperador, nascido com o nome de Temujin, teve uma infância difícil nas estepes mongóis - tendo sido inclusive rejeitado pelo próprio clã - e o caminho para se tornar o maior líder de seu povo foi árduo e marcado por muita violência. Tendo obtido o poder ele passou a comandar guerras de conquista – os mongóis, ainda no tempo da vida de Gengis Khan, passaram a dominar um território maior que o do Império Romano, indo da China a territórios eslavos. Quando os mongóis chegavam num território para conquistá-lo, muitas vezes davam a opção para os moradores locais para que se submetessem sem violência, caso em que teriam que lhes pagar alguns impostos, mas teriam a liberdade para viver como quisessem. Outro interesse dos mongóis era o comércio, e eles abriram rotas comerciais por todo o Oriente. Mas o mais fascinante – e inesperado, para quem só conhecia a má fama do imperador mongol - em suas conquistas eram os conceitos, praticamente inéditos na época, que Gengis Khan implantou no seu império: liberdade religiosa total, primado das leis sobre as pessoas – mesmo o próprio imperador -, e busca da eficiência: para este último objetivo, aliás, Gengis Khan buscava os melhores técnicos e especialistas entre todos os povos, não importando a origem étnica, para trabalhar em seu império. Depois da morte de Gengis Khan, seus sucessores começaram disputas pelo trono, mas o impacto de suas conquistas e de suas ideias permaneceu por séculos: não à toa, Jack Weatherford chama o grande imperador mongol de “o formador do mundo moderno”.
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“A destruição dos judeus europeus”, de Raul Hilberg
História
“A destruição dos judeus europeus”, de Raul Hilberg
13 de dezembro de 2020 at 16:10 0
Provavelmente a obra mais importante sobre o Holocausto, “A destruição dos judeus europeus”, do austríaco-americano Raul Hilberg, é um calhamaço cuja edição brasileira, da Amarilys Editora, tem 1664 páginas e cinco tradutores (Carolina Barcellos, Laura Folgueira, Luís Protasio, Mauricio Tamboni, Sonia Augusto). A primeira edição da obra é de 1961, mas ela teve várias atualizações até o início dos anos 2000 (o autor faleceu em 2007); o livro, que serviu inclusive como base para o monumental filme “Shoah”, de Claude Lanzmann (ver, inclusive, o comentário do cineasta na capa da edição da Amarilys Editora, que é a imagem que acompanha este texto), foi o trabalho de uma vida. Como o próprio Hilberg comenta na obra, quando da sua primeira edição, em 1961, o Holocausto era um assunto quase esquecido: no meio da Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética tinham outas preocupações mais imediatas e pouca vontade de melindrar a memória de suas aliadas, respectivamente as Alemanhas Ocidental e Oriental. O autor, inclusive, descreve como sua pesquisa sobre a destruição dos judeus europeus era vista com ceticismo quando da elaboração da obra. Enfim, os ventos mudaram e o Holocausto - também por causa deste monumental “A destruição dos judeus europeus” – é atualmente objeto de gigantesco interesse, tanto por parte dos pesquisadores quanto do público em geral. O livro, realmente, merece a fama que tem. Praticamente todo escrito com enfoque sobre os perpetradores alemães, “A destruição dos judeus europeus” mostra com um grande número de documentos como os nazistas foram destruindo suas vítimas aos poucos: a partir de leis racistas que lhe tiravam paulatinamente os seus direitos, os judeus iam se sentindo mais e mais oprimidos e humilhados e acabavam tendo pouca ou nenhuma força de reação. Este processo de destruição era sistemático e organizado. Nem todos os países ocupados ou aliados da Alemanha, por outro lado, tiveram o mesmo comportamento quanto à destruição de sua população judia, e o livro mostra com detalhes a atuação de cada uma dessas nações a este respeito. Mas, claro, o livro tem muito mais: descrição dos campos de extermínio, das Marchas da Morte, dos Einsatzgruppen (esquadrões móveis que assassinavam populações judias em países como a União Soviética e a Ucrânia), da burocracia envolvida no processo da destruição da população judia, da reação pífia e às vezes até revoltante dos países aliados contra o Holocausto durante a guerra. Enfim, o livro é de leitura dolorosa, mas fundamental para quem quer entender mais sobre a destruição dos judeus europeus durante a Segunda Guerra.
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Roberto Campos em “Energia”, terceira parte de “Rua Paraíba”
História, Literatura
Roberto Campos em “Energia”, terceira parte de “Rua Paraíba”
15 de novembro de 2020 at 19:07 0
A primeira vez que lembro de ter ouvido falar de Roberto Campos foi numa entrevista na Veja em que ele, então senador pelo Mato Grosso, vituperava contra a lei de reserva de mercado da informática. Era uma coisa estranha: uma espécie de Dom Quixote, do próprio partido do governo (de quem era a responsabilidade pela a malfadada lei), numa luta solitária e infrutífera contra tudo e contra todos: nesse ponto específico, o governo e a oposição de esquerda estavam do mesmo lado, contra Roberto Campos. Era uma lei que hoje parece uma coisa do século XV: as grandes empresas estrangeiras de informática eram proibidas de investir no Brasil – nos dias de hoje, é como se ninguém pudesse mais comprar um iPhone ou um laptop da Lenovo. É claro que estavam todos errados, e só Roberto Campos estava certo. (...) Il va sans dire que Roberto Campos tinha uma forte rejeição por parte da esquerda. O Luís Fernando Veríssimo, inclusive, criou uma piada que dizia que Delfim Netto era o Roberto Campos brasileiro – o senador mato-grossense, afinal, era chamado de Bobby Fields. Para a esquerda ele era um entreguista. Queria vender o país para os Estados Unidos a preço vil (a esquerda adora essa expressão). Era um lobista que defendia apenas os interesses estadunidenses (aqui no Brasil, quando alguém fala “estadunidense”, pode saber que é de esquerda). Durante um bom tempo, o que Roberto Campos escrevia era lei para mim. Eu ficava esperando - não lembro exatamente quantas vezes por semana - para ler suas colunas no jornal, ficava acordado esperando suas entrevistas na TV, defendia o cara contra tudo e contra todos. O ápice da minha ligação com ele foi a leitura do monumental “Lanterna na Popa”, autobiografia de mais de mil páginas. Eu reconhecia que certos comentários dele eram grosseiros, mas que vida a do Roberto Campos! Ministro da Fazenda de Castello Branco, embaixador na Inglaterra no governo Médici, senador por Mato Grosso no governo Figueiredo. Fica evidente, no livro, a frustração que ele teve ao perder o poder que teve no início do regime militar e que nunca mais iria recuperar. Ele deixava claro sua opinião segundo a qual o milagre econômico do governo Médici dependeu de maneira fundamental das reformas que ele implantara, ainda no governo Castello Branco. Para Roberto Campos, o governo Médici era excessivamente repressor contra a oposição. Para quem, como eu, cresceu num lar em que a mãe, esquerdista, tinha um peso fundamental na ideologia da casa, ser um admirador tão incondicional de um burocrata importante do governo militar não deixava de ser meio incômodo. O fato de ele efetivamente não ter participado da repressão e tê-la até criticado um pouco não deixava de ser um alívio. Pequeno, mas um alívio. De todo modo, ele estava numa fase áurea em termos de influência intelectual – até a esquerda o estava respeitando - Roberto Campos subitamente parou de escrever no jornal, por estar doente. Eu senti o baque, fiquei meio perdido, mas achava, claro, que logo ele se recuperaria e eu teria de novo meu economista de bolso para poder copiar as opiniões. Mas isso não ocorreu. Roberto Campos faleceu depois de uns dois anos doente. Nesse meio tempo era possível ler algumas notícias sobre a sua vida de recluso. Uma delas é que ele se obrigava a rezar a Ave-Maria – mesmo sem acreditar direito em Deus - em algumas línguas, para não perder a memória. Não adiantou, acabou perdendo a vida. Desculpem essa piada sem-graça: é uma homenagem às piadas sem graça de Roberto Campos. Na época em que os telefones celulares eram melhores e mais caros quanto mais pequenos, ele escreveu que eles eram uma espécie de homenagem à impotência, já que viviam dobrados e paravam de funcionar quando entravam em túneis. Chamava o whisky de néctar. Ex-seminarista, no início de seu livro de memórias ele conta a história de um colega de seminário que virou padre, mas que acabou sendo afastado. Segundo o que um colega em comum acabou contando para Roberto Campos, o padre afastado
"era comunista, e isso a gente podia aceitar; ele tinha um caso com uma mulher, e isso dava para aceitar; mas nunca acreditou em Deus, e isso não dava para aceitar".
(trecho de Energia, terceira parte do meu livro "Rua Paraíba", publicado recentemente - mais detalhes aqui; fonte da foto: Estadão)
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História
Livros sobre o nazismo
3 de maio de 2020 at 14:38 0
fonte: Amazon

O regime nazista, comandado por Adolf Hitler na Alemanha, foi um dos mais brutais de todos os tempos, senão o mais brutal: não só provocou a Segunda Guerra Mundial como assassinou friamente, fora dos campos de batalha, cerca de seis milhões de judeus, quinhentos mil ciganos e cinco milhões de pessoas de outras etnias. Toda esta barbárie ainda chama muito a atenção dos historiadores e do público em geral, e novos lançamentos de história e de ficção abordam diferentes aspectos do regime nacional-socialista.

Falecido recentemente, o historiador alemão Joachim Fest escreveu aquela que é considerada por grande parte dos especialistas como a melhor de todas as biografias de Adolf Hitler. O segundo volume desta obra foi relançado em 2006 (o primeiro tinha saído em 2005): Hitler - vol. 2  (Nova Fronteira, 528 páginas).

O primeiro tomo cobria a vida de Hitler desde o seu nascimento até a posse como Chanceler (cargo equivalente ao Primeiro-Ministro de um país parlamentarista) alemão, em 30 de janeiro de 1933. Hitler - vol. 2 inicia-se nesta data e termina com a morte do Führer no seu bunker em Berlim, quando da derrota da Alemanha em 1945.

Os dois volumes desta biografia são extremamente detalhados, precisos e bem escritos, fruto de um trabalho sério e obsessivo do historiador. Merecem totalmente o imenso prestígio que obtiveram ao longo dos anos, desde a sua publicação na Alemanha em 1973.

Para o leitor leigo, uma boa introdução ao modo nazista de pensar e de governar encontra-se em Itália Nazista e Alemanha Nazista (Madras, 180 páginas), escrita pelo catedrático de História Europeia Moderna da Universidade Estadual da Carolina do Norte Alexander J. De Grand. A obra faz uma comparação entre os regimes fascista da Itália e nazista da Alemanha em relação a assuntos como a marcha para o poder, os sistemas econômicos, as comunidades, a cultura, os militares, a expansão e a guerra.

Dificilmente alguém que não tenha ficado chocado com a barbárie nazista não tenha algum dia se perguntado como estaria hoje o mundo se o Eixo - aliança entre a Alemanha, a Itália e o Japão - tivesse vencido a Segunda Guerra Mundial. Uma fantasia - tétrica, como não poderia deixar de ser - neste sentido foi criada pelo escritor de ficção científica Philip K. Dick no romance O homem do castelo alto, publicado originalmente em 1962 e apenas agora lançado no Brasil (Aleph, 304 páginas).

O livro mostra como seria o início dos anos sessenta após a derrota dos Aliados. Neste assustador mundo fictício, os japoneses governam a Costa Oeste dos Estados Unidos e a Alemanha, a Costa Leste. Hitler está tão doente que já não tem mais condições de governar, e o ditador do Reich agora é o antigo fiel escudeiro do ex-Führer, Martin Bormann. Os dirigentes nazistas (como sempre ocorrera, aliás), travam ferozes lutas internas por nacos de poder: com Heinrich Himmler já falecido, os mais importantes mandatários alemães são o ministro da aeronáutica e ex-vice premiê Hermann Göring, o ministro da propaganda Joseph Goebbels, o ex-dirigente da juventude nazista, o moderado Baldur Von Schirach, e os cruéis Arthur Seyss-Inquart e Reinhard Heydrich – que, na ficção de Philip K. Dick, não tinha sido morto em decorrência de um atentado em Praga perpetrado por terroristas tchecos, conforme realmente ocorreu no ano de 1942. Na África, os nazistas promoveram um monstruoso genocídio contra a população negra e, em todo o mundo, dão total publicidade ao assassinato em massa de judeus nas câmaras de gás - que continua, claro, com todo o fôlego. Os eslavos que não são escravizados ou assassinados são mandados para regiões distantes da Sibéria. Não satisfeitos em colonizar a Terra, os alemães mandam os primeiros seres humanos para Marte. Ainda na parte tecnológica, os nazistas criam foguetes de linhas comerciais que fazem o trajeto Estados Unidos-Europa em menos de uma hora.

O homem do castelo alto se passa na Costa Oeste dos Estados Unidos, na região de San Francisco. No romance, os americanos são cidadãos de segunda classe, totalmente subjugados ao poder japonês, que é bem menos agressivo que o correspondente nazista: o governo imperial permite alguma liberdade de imprensa e jamais perseguiu judeus. Os japoneses, além disso, admiram a cultura americana, apreciando o jazz e o blues, e colecionam objetos fabricados nos Estados Unidos no período anterior à Segunda Guerra Mundial.

O livro conta a história de alguns personagens - quase todos aficionados pelo milenar livro chinês de adivinhação, o I Ching - vivendo nesta Costa Oeste fictícia. O espião alemão que quer, com grande risco de vida, passar informações extremamente importantes para o governo japonês. O artesão judeu que fez operações plásticas e mudou seus documentos para esconder sua origem. A mulher problemática que namora um rapaz pretensamente italiano que ela acaba descobrindo ser um espião alemão preparado para assassinar o escritor de um romance que contava a história de um mundo em que o Eixo perdeu a guerra. O comerciante americano de objetos antigos que está sempre querendo agradar os superiores japoneses. O burocrata japonês que sofre com as políticas nazistas e com as guerras de espionagem.

O homem do castelo alto é um livro sombrio e melancólico, e que gruda na memória do leitor.

Se a obra de Philip K. Dick angustia quando trata de um tempo presente que poderia ter acontecido com a vitória alemã na Segunda Guerra Mundial, Diário de um skinhead - um infiltrado no movimento neonazista, do jornalista espanhol Antonio Salas (Planeta, 280 páginas) assusta ao falar do nazismo "de verdade" nos dias atuais.  O autor, que utilizou um pseudônimo para assinar o livro por motivos óbvios, passou mais de um ano como infiltrado entre violentos skinheads espanhóis, sempre filmando tudo com uma câmera escondida. O risco que ele correu nesta empreitada foi, obviamente, enorme, e o jornalista brasileiro Tim Lopes, brutalmente assassinado por traficantes cariocas ao fazer uma reportagem semelhante em 2002, é citado no livro do espanhol para dar uma idéia do perigo da situação.

Para infiltrar-se na extrema-direita espanhola, Salas começou pelo maior meio de comunicação dos skinheads na atualidade: a internet. Ele demorou cerca de três meses – por segurança, sempre em lan houses - navegando por chats e sites nazistas, entrando em contato com pessoas do movimento, aprendendo sua gíria especializada e seus códigos de conduta, antes de pegar coragem e conhecer pessoalmente alguns de seus objetos de estudo. Como era de se esperar, para ser um infiltrado convincente ele rapou o cabelo, passou a se vestir como um skinhead e a defender (somente em público, claro) ideias nazistas. As muitas aventuras perigosas pelas quais Salas passou e os sentimentos – muitas vezes contraditórios e surpreendentes – que ele teve neste empreitada perigosa são narrados com grande detalhe, resultando numa leitura de grande impacto na maior parte do tempo. Entre os resultados mais importantes da investigação do jornalista estão a descoberta das íntimas ligações dos skinheads com os partidos legais de extrema-direita (que sempre negaram este contato) e com muitas torcidas organizadas do futebol espanhol – o que ajuda a explicar o recente aumento do racismo observado em arquibancadas europeias.

(textos publicados em 2006 na Revista Dominical do jornal O Estado do Paraná)

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