Gertrud, de Carl T. Dreyer
Cinema
Gertrud, de Carl T. Dreyer
29 de maio de 2022 0
Quando se fala no grande diretor dinamarquês Carl T. Dreyer (1889-1968), os dois primeiros filmes que vêm à cabeça são “Ordet” (A palavra) – uma história profunda e perturbadoramente religiosa – de 1955, e “A paixão de Joana D’Arc”, filme mudo que conta o martírio da santa com closes espetaculares e exasperantes. Os dois filmes foram escolhidos pelo Vaticano em 1995 como estando entre os cinco melhores de todos os tempos no quesito “religião”. Último filme lançado por Dreyer, “Gertrud” conta a história de uma mulher – a própria Gertrud – que deixa do amante, Gabriel Lidman, poeta célebre, para se casar com um político e advogado eminente, Gustav. Quando o filme começa ela já está casada com este último e se apaixona por um pianista e compositor talentoso e novato, Erland Jansson. Gertrud leva a paixão pelo amor verdadeiro às suas últimas consequências, e o filme, lançado em 1964, pode ser considerado, com alguma boa vontade, um libelo feminista. Quando lançado no festival de Cannes ele chegou a ser vaiado, e a crítica da época ficou dividida em relação ao filme – hoje considerado uma obra-prima por grande parte dos especialistas. “Gertrud” tem o mesmo estilo de filmagem de “Ordet”: cenas longuíssimas com a câmera parada, com os atores olhando a maior parte do tempo para a frente, conversando sem olhar uns para os outros. A sensação é estranhíssima – e, mais estranho ainda, revi dia desses “Gertrud” e fiquei fascinado: não sei o segredo de Dreyer para fazer filmes tão esquisitos e tão espetaculares ao mesmo tempo.
Leia mais +
The highlights, The Weeknd
Música
The highlights, The Weeknd
22 de maio de 2022 0
Eu gosto de comprar CDs. Acho bacana como uma lembrança, ou coisa assim, dos artistas que admiro.  Para mim, que tenho seis gatos em casa, os CDs têm uma vantagem sobre os LPs: não são uma tentação para os felinos brincarem com um prato girando com uma agulha em cima. Além disso, os antigos discos de vinil também ocupam muito espaço: me desfiz de todos os que eu tinha há mais de quinze anos e nunca me arrependi. E ainda há mais uma vantagem dos CDs sobre os LPs, sob meu ponto de vista: é possível conseguir lançamentos de disquinhos prateados por um preço razoável, ao contrário do que acontece com os vinis. Sim, gosto de CDs mas não de gastar muito dinheiro com isso: como não costumo comprar discos usados, acabo conseguindo por preços módicos lançamentos nacionais de artistas populares como Elvis Presley, The Weeknd, Ariana Grande e Selena Gomez, mas não de outros artistas que também gosto, como Amenra, Wiegedood, Radiohead ou Massive Attack. Isso sem contar Bones e $uicideboy$, né, que não lançam CDs. Morrissey é um caso especial: comprei “Low in high school”, o penúltimo que ele lançou, mas não o mais recente “Dog in a chain”, que não teve versão nacional. E foi numa dessas que acabei comprando “The highlights”, do Weeknd. Coisa de maníaco mesmo: as melhores músicas de um artista que não só eu conheço bem, como tenho em CDs toda a sua obra recente. Mas ficou legal no Instagram, e é a foto que acompanha este texto. Até que comecei a ouvir, e acabei ficando mais e mais surpreso: todos os clássicos dele juntos me deram a impressão de estar ouvindo algo raro, um verdadeiro álbum atemporal. A voz, as melodias, os arranjos… é um equivalente musical de um volume de obras essenciais de algum grande escritor na coleção Penguin-Companhia. E olha que o CD nem tem minha música preferida do Weeknd, “Reminder”, sobre a qual já falei aqui.
Leia mais +
“La Paroi”, de Pierre Moustiers
Literatura
“La Paroi”, de Pierre Moustiers
8 de maio de 2022 0
O francês Pierre Moustiers (1924-2016), aparentemente, é um autor esquecido: sua página na Wikipédia em francês dá pouquíssimos detalhes sobre sua vida e obra e, quando se procura por ele no Google Notícias, não se encontra basicamente nenhuma informação recente.  Eu mesmo não lembro direito como recebi o livro “La paroi” (“o muro” em tradução livre, Bibliothèque do Temps Présent, 256 páginas), seu mais importante romance, vencedor do Grande Prêmio da Academia Francesa em 1969: pela data que eu coloquei na contracapa da minha bela edição em capa dura, eu ganhei o livro no dia 6 de novembro de 1989. Não lembro direito, mas acho que o pessoal da Aliança Francesa resolveu distribuir uns livros para os seus alunos, sabe Deus por quê. Eu me recordo vagamente de tê-lo escolhido, e é isso. Eu o li pouco tempo depois de tê-lo recebido: é uma história de alpinismo, meu medo de altura me fez ter calafrios durante a leitura, e é isso que ficou na minha memória. Acabei relendo “La paroi” recentemente: é uma história de uma relação complicada entre dois alpinistas, Philippe, professor da escola secundária numa pequena cidade do interior, e Anthime, empresário de sucesso. A história começa numa sexta-feira, quando Philippe resolve subir sozinho uma montanha e Anthime, sabendo que o clima não estava favorável para esse tipo de aventura, resolveu seguir o professor na escalada para que ele não tivesse problemas. Philippe despreza o empresário, e a relação entre os dois na subida da montanha é tensa, para dizer o mínimo. A verdade é que “La paroi” é um grande livro, e desenvolve com excelência não só a descrição dos personagens, como a complexa relação entre os dois. Mereceu, sim, o Grande Prêmio da Academia Francesa, e é pena que aparentemente ninguém mais se lembre dele. Pelo menos a Amazon tem mais alguns livros em papel do autor para vender.
Leia mais +
“La ronde de nuit”, de Patrick Modiano
Literatura
“La ronde de nuit”, de Patrick Modiano
1 de maio de 2022 0
Sou fã de Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura de 2014. O francês cria histórias que contam, em boa parte de seus romances sempre curtos, histórias baseadas em reminiscências não muito precisas de pessoas, ou de seus descendentes, que se aliaram aos nazistas durante a ocupação alemã na França na Segunda Guerra Mundial. O segundo romance publicado pelo autor, “La ronde de nuit” (a ronda da madrugada, em tradução livre – Folio, 154 páginas, publicado originalmente em 1969) não foge à regra: o personagem-narrador se alia a um grupo que presta serviços à Gestapo Francesa, promove extorsão de pessoas ligadas à Resistência e rouba casas de quem fugiu de Paris devido à ocupação alemã. O narrador também serve de agente duplo e se infiltra num grupo que se opõe aos nazistas. De todos os livros de Patrick Modiano que eu li (ver aqui), “La ronde de nuit” foi o que menos me agradou: a narrativa parece travada mais do que o necessário, a história parece meio inverossímil às vezes, o narrador é menos empático do que o normal nos livros de Modiano.  Ou quem sabe não tenha sido nada disso: um grande problema com a edição da Folio de “La ronde de nuit” é que na sua curta introdução um spoiler decisivo é apresentado logo de cara: possivelmente eu saber como acabaria o livro diminuiu um pouco meu interesse durante a leitura.
Leia mais +
“How to Survive in Ancient Rome”, de L J Trafford
História
“How to Survive in Ancient Rome”, de L J Trafford
25 de abril de 2022 0
“How to Survive in Ancient Rome” (como sobreviver na antiga Roma), de L J Trafford (Pen and Sword History, 176 páginas, lançado originalmente em 2020), é uma espécie de guia turístico para alguém que esteja visitando Roma no ano de 95 d.C., época do imperador Domiciano. O livro traz diversas curiosidades sobre aquela época: como os anos eram contados? Como era o dinheiro? Como as mulheres deveriam se comportar? Como eram os nomes e sobrenomes das pessoas? Como eram as roupas? Como eram a medicina, o direito, a religião e a política da época? Como eram as casas dos ricos e as dos pobres? Os “guias” de “How to Survive in Ancient Rome” são dois personagens, não sei bem se reais ou fictícios, da alta nobreza romana: Titus Flavius Ajax, ex-escravo que acabou obtendo o cargo de secretário especial de Domiciano, e Hortensia, que, “como membro da alta elite romana, pode responder tudo o que você queria saber sobre os ultrarricos da época, mas tem medo de perguntar”. O livro é extremamente divertido e informativo, delicioso para pessoas como eu, que amam a história do Império Romano. E eu não poderia deixar de citar, neste texto, a única vez que o cristianismo é citado no livro: segundo a “guia” Hortensia,  “O atual imperador é muito exigente quanto à manutenção de ritos religiosos e recomendamos que você não demonstre qualquer inclinação para crenças estrangeiras. O imperador baniu sua própria sobrinha, Domitilla, por se converter a esse estranho culto cristão. Ele não hesitaria em fazer o mesmo com você, ou pior.” É um assunto que me fascina: o que será que os antigos romanos, com seus deuses imponentes e grandiosos, achavam de um pessoal – muitos compatriotas entre eles, inclusive – que achava que Deus era um pobre judeu que teve a morte mais humilhante possível, na cruz? Deviam achar estranho, no mínimo. Eu acho que também acharia.
Leia mais +
“Rastejando até Belém”, de Joan Didion
Literatura
“Rastejando até Belém”, de Joan Didion
19 de março de 2022 0
Logo no início de “Rastejando até Belém”, de Joan Didion (Todavia, 240 páginas, tradução de Maria Cecilia Brandi, lançado originalmente em 1968) se lê que “o Vale de San Bernardino fica a apenas uma hora de Los Angeles, na direção leste, pela rodovia San Bernardino, mas em certos sentidos é um lugar atípico: não a Califórnia costeira dos crepúsculos subtropicais e dos suaves ventos do oeste vindos do Pacífico, mas uma Califórnia mais severa, assombrada pelo Mojave do outro lado das montanhas, devastada pelo calor e pela secura do vento de Santa Ana, que desce pelas encostas a 160 quilômetros por hora, ruge pelos quebra-ventos de eucalipto e dá nos nervos. Outubro é o pior mês de ventania, o mês em que é difícil respirar e as colinas ardem espontaneamente. Não chove desde abril. Toda voz parece um grito. É a estação do suicídio, do divórcio e do pavor arrepiante, onde quer que o vento sopre.” É um trecho impressionante e que faz parte do primeiro ensaio do livro, “Sonhadores de um sonho dourado”, sobre algumas famílias que foram criar uma comunidade no Vale de San Bernardino. E assim os ensaios vão transcorrendo, sempre descrevendo aspectos da vida americana. Uma escola fundada pela cantora Joan Baez. Um jantar com John Wayne no final da vida, quando estava com câncer e estava trabalhando em seu último filme. Um comunista, o camarada Laski. E algumas histórias pessoais, em que a autora fala de seu marido, sua filha, suas manias. O melhor ensaio do livro é o longo “Rastejando Até Belém”, que dá o título ao livro. É uma história de hippies: a autora vai até São Francisco na Califórnia no ápice da power flower, e o que ela mostra não tem nada a ver com paz e amor, mas sim com pessoas perdidas, sem rumo e drogadas o dia inteiro – sua descrição é fria e, às vezes, cruel. Na verdade, essa visão um tanto fria e amarga transpassa o livro inteiro que, por isso, acaba sendo meio cansativo – ao menos para mim. Mas que é escrito com maestria, não há dúvidas a respeito. (fonte da foto: Jornal Rascunho)
Leia mais +
“As rãs”, de Mo Yan
Literatura
“As rãs”, de Mo Yan
20 de fevereiro de 2022 0
Uma região do globo em que as pessoas tinham nomes como Chen Orelha, Chen Nariz e Wang Vesícula, numa época em que as mulheres não podiam ter mais de um filho e se desesperavam por isso. Um tempo em que a fome era tão grande que as crianças chegavam a comer carvão. Uma aldeia do interior em que as fofocas grassavam. Estes são os pontos que, para um leitor do Ocidente nos tempos atuais, mais chamam a atenção em inicialmente em “As rãs”, de Mo Yan (Companhia das Letras, 496 páginas, tradução de Amilton Reis, publicado originalmente em 2009), escritor chinês vencedor do Prêmio Nobel de 2012 por, segundo a Academia Sueca, escreve de maneira “que com realismo alucinatório funde contos populares, história e contemporaneidade”. A história se passa numa região remota da China e se desenrola por algumas décadas, desde a fome no período de Mao Tsé-Tung até os tempos modernos – passando, claro, pelo período de controle rígido da natalidade iniciado na década dos anos 1970, que fazia algumas mulheres se desesperarem. A história principal é a da tia do narrador, Wan Perna, apelidado de Corre Corre por ser muito veloz em provas de atletismo. Ela é a melhor parteira da região, e é empregada pelo governo para controlar – com métodos às vezes violentos – a natalidade local. A tia é uma personalidade tão impressionante que um japonês acaba entrando em contato com Corre Corre para que este faça uma peça de teatro sobre ela. “As rãs” é um documento notável sobre uma época, bem-humorado e escrito com brilho e intensidade – parece que temos facilidade de “enxergar” tudo o que Mo Yan descreve. Um ótimo livro, que me lembrou as grandes histórias de Charles Dickens, famoso por criar personagens “maiores que a vida”: a tia do narrador de “As rãs”, neste caso.
Leia mais +
“Pós-F” (Guairinha, Curitiba, 6/2/2022)
Shows e Espetáculos
“Pós-F” (Guairinha, Curitiba, 6/2/2022)
6 de fevereiro de 2022 0
Fernanda Young (1970-2019) foi uma escritora e roteirista conhecida, entre outros trabalhos, pelos roteiros dos excelentes seriados “Os Aspones” (2004) e “Os Normais” (2001-2003), escritos em conjunto com seu marido Alexandre Machado. Escreveu diversos romances, e minha crítica sobre “Aritmética”, de 2004, está aqui. “Pós-F”, publicado em 2018, foi a primeira obra de não-ficção de Fernanda Young – e o “F” do título se refere ao feminismo. A atriz Maria Ribeiro gostou tanto do livro que resolveu encená-lo: pediu ajuda para a escritora, que lhe disse que seria bom, porque ela (Maria Ribeiro) “também é maluca”. É isso que a própria atriz comenta na apresentação de “Pós-F” agora há pouco, numa excelente apresentação realizada no Guairinha, aqui em Curitiba. O texto de Fernanda Young fala de sua vida, sexualidade, morte, amor e, claro, feminismo, de maneira direta e clara. A peça é de curta duração, e não perde o interesse em nenhum instante – o silêncio absoluto da plateia durante a apresentação mostrou como todos pareciam extremamente atentos. O maior destaque é interpretação de Maria Ribeiro: a sua atuação no monólogo é impressionante, e o tom utilizado é tranquilo e discreto – num texto que poderia, com outra atriz, descambar para um discurso agressivo e gritado. Nada disso. Maria Ribeiro achou o tom certo e nós, da plateia, só tivemos a agradecer por isso. [a foto que acompanha o texto foi obtida no Instagram da peça]
Leia mais +