Literatura

“O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós
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“O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós
15 de setembro de 2024 at 12:41 0
Raramente fico frustrado com o tamanho dos meus textos aqui. Minha ideia sempre é dar uma pequena ideia do assunto a ser tratado, um tanto para fixar na memória, um tanto para destacar os pontos mais importantes. Mas com "O crime do Padre Amaro", o primeiro romance do grande escritor português Eça de Queirós (1845-1900), é inevitável eu me sentir um tanto descontente por não fazer um texto detalhado sobre ele. São tantos os personagens interessantíssimos, tantas críticas ao mesmo tempo ácidas e bem-humoradas, tanta genialidade, que eu acho que deveria, se tivesse mais tempo e menos preguiça, fazer um verdadeiro ensaio sobre o livro. Quem sabe um dia! Mas enfim, vamos aos pontos principais desta obra espetacular. "O crime do Padre Amaro", lançado originalmente em 1875, conta a história do amor tempestuoso entre um padre - o Amaro do título - e uma jovem solteira chamada Amélia. A contracapa da edição que acompanha este texto (da ótima coleção "Grandes Nomes da Literatura", da Folha de São Paulo, com 470 páginas), escrita pelo grande João Pereira Coutinho, faz um bom resumo de parte importante desta obra-prima:
"O crime do padre Amaro (...) não é apenas 'uma intriga de clérigos e de beatas tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé', como o próprio autor escreveu. Mas também não será, como certa crítica defende, uma mera condenação moral e espiritual do clero e da hipocrisia abjecta das mulheres devotas, que rezam aos santos certos e se entregam a luxúrias com os homens errados. Este romance sobrevive na memória do tempo pela extraordinária força dos seus personagens em especial de Amaro, o jovem que seguiu o sacerdócio sem real vocação e que sucumbe ao mais prosaico dos sentimentos quando se apaixona por Amélia. Acompanhar os seus atos e pensamentos - a angústia da transgressão; o ressentimento pela liberdade amorosa de terceiros; mas também a fragilidade típica do amante; os seus ciúmes reais ou imaginários; e a dilacerante ambiguidade com que ele contempla o horrendo crime - é conhecer por dentro a tragédia de um homem em carne viva que o leitor irá reconhecer como um de nós."
É claro que o tema principal do romance - a relação tórrida entre Amaro e Amélia - é apresentado primorosamente, mas o que mais me chamou a atenção foi a maneira corrosiva e divertida com que Eça de Queirós descreve a hipocrisia, a falta de escrúpulos e o corporativismo de quase todos os membros da Igreja Católica apresentados no livro (com exceção do abade Ferrão, o único, aparentemente, que realmente aplicava o Evangelho em sua vida privada) e das mulheres devotas que os seguem. E Eça de Queirós, à maneira de Molière, parece ter um carinho bem-humorado por tanta gente sem caráter. Enfim, eu gostaria de fazer um texto maior para descrever tantos personagens divertidos e fascinantes. Mas não quero terminar este curto texto sem apresentar a explicação esdrúxula, absurda e vil que o personagem cônego Dias faz da famosa frase de Cristo "dos pobres é o reino do céu". Eça de Queirós era gênio. Deixemos a palavra, enfim, com o tal cônego Dias:
"-Pra Deus não há pobre nem rico – suspirou a S. Joaneira. – Antes pobre, que dos pobres é o reino do céu! – Não, antes rico – acudiu o cônego, estendendo a mão para deter aquela falsa interpretação da lei divina. – Que o céu também é para os ricos. A senhora não compreende o preceito. Beati pauperes, benditos os pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena de não serem benditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que prega que os trabalhadores e as classes baixas devem viver melhor do que vivem vai de encontro à expressa vontade da Igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão chicote, como excomungados que são! Ouf!"
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Livros lidos recentemente
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Livros lidos recentemente
7 de julho de 2024 at 17:28 0
"O décimo homem", de Graham Greene (Record, 176 páginas, tradução de Flavio Moreira da Costa, publicado originalmente em 1985): em uma prisão nazista na França durante a ocupação, dez prisioneiros são obrigados a fazer um sorteio, e o sorteado será executado. Aquele que "vence" a competição faz uma proposta insólita, a de trocar de lugar com outro detento por por toda a sua fortuna. Um dos presos aceita a troca, morre no lugar do outro, e a fortuna do sobrevivente vai para a família do falecido. O detento que comprou sua sobrevivência, agora pobre, volta para a casa onde morava, e aí começam os problemas. Extremamente bem escrito, "O décimo homem" é uma novela que justifica todo o sucesso que o inglês Graham Greene (1904-1991) fez como escritor. "O abismo vertiginoso - um mergulho nas ideias e nos efeitos da física quântica", de Carlo Rovelli (Objetiva, 199 páginas, tradução de Silvana Cobucci, publicado originalmente em 2020): um dos efeitos mais conhecidos da física quântica é que o observador, apenas por olhar um experimento, muda o comportamento de partículas subatômicas. Meu maior objetivo em ler este livro do grande físico italiano era tentar entender este efeito estranhíssimo. De fato, como Carlo Rovelli comenta em sua obra,
"a realidade dos quanta é muito mais estranha que todos os delicados, misteriosos, encantadores e intricados aspectos da nossa realidade psicológica e da nossa vida espiritual"
Em seu ótimo livro, Rovelli descreve um experimento que qualquer um acharia maluco se não fosse real, com a mão do observador mudando parte dos fótons lançados por um equipamento. No livro também são apresentadas ótimas descrições dos principais cientistas envolvidos na descoberta da física quântica. A explicação que Carlo Rovelli dá para este efeito esquisito, por outro lado - baseado, grosso modo, na relação entre todas as partículas do Universo - não me impressionou muito. Quem sabe eu não a tenha entendido muito bem. "Clube da Luta", de Chuck Palahniuk (Leya, 272 páginas, tradução de Cassius Medauar, publicado originalmente em 1996): não assisti ao famoso filme homônimo baseado neste romance, e confesso que agora estou bem curioso para saber como roteirista e diretor fizeram para colocar essa loucura toda nas telas. O livro, narrado em primeira pessoa por um funcionário de uma grande empresa, conta como um sujeito estranho chamado Tyler Durden convence vários homens, uma vez por semana, a trocarem socos no porão de bares. A loucura de Tyler vai se aprofundando e ele acaba criando o Projeto Ordem e Destruição, em que convence homens a, primeiro, fazerem pequenos atos de desordem, como cuspir em pratos que serão servidos para hóspedes ricos num hotel, para depois partir para um terrorismo em larga escala. Muita gente acha que "Clube da Luta" é um livro que representa as repressões masculinas, ou coisa que o valha, mas eu só achei que o livro é esquisito mesmo - como os dois do autor ("Maldita" e "Condenada") que eu já tinha lido, aliás. E sim, eu gostei muito de "Clube da Luta".
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“Em agosto nos vemos”, de Gabriel García Márquez
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“Em agosto nos vemos”, de Gabriel García Márquez
9 de junho de 2024 at 14:40 0
A ideia de Gabriel García Márquez (1927-2014) era publicar cinco contos independentes com uma protagonista latina (acho que colombiana) com o mesmo nome da mulher de Johan Sebastian Bach, Anna Magdalena Bach. Só conseguiu terminar o primeiro conto, já que começou a ter problemas de memória no final da vida, que é este "Em agosto nos vemos" (Record, 130 páginas, tradução de Eric Nepomuceno, publicado originalmente em 2024). A protagonista vai, uma vez por ano, até uma ilha em que sua mãe está enterrada, para "conversar" com sua mãe morta no cemitério. Em uma destas viagens até à ilha ela se encanta com um homem, faz sexo com ele e volta meio perturbada - ela nunca tinha traído o marido, músico clássico de sucesso. Anna Magdalena Bach não sabe nem o nome do amante, e tem esperança de encontrá-lo na visita seguinte à ilha, e não o acha - mas acaba fazendo sexo com outro desconhecido. E assim a história de "Em agosto nos vemos" vai indo, e não dá para contar mais nada para não estragar a surpresa. Gabriel García Márquez reescreveu de maneira obcecada esta novela, e acabou concluindo que não valia a publicação. Seus filhos o "traíram" quando resolveram publicá-la. Sorte nossa: o livro é tão bom quanto qualquer outra coisa que o gênio García Márquez publicou em vida. E, como nota final, a novela se basta a si mesma: ficamos sem saber o que o Prêmio Nobel de 1982 tinha em mente para suas outras quatro novelas com Anna Magdalena Bach, mas isso não importa tanto. Só fico chateado de não saber o que aconteceu com a filha da personagem, Micaela, que tinha uma vida sexual ativa mas que, mesmo assim, estava próxima de se tornar uma Carmelita Descalça.
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“O ano do dilúvio”, de Margaret Atwood
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“O ano do dilúvio”, de Margaret Atwood
19 de maio de 2024 at 19:12 0
Sou fã de trilogias. Amei as trilogias autobiográfica e sobre "Jesus", de J.M. Coetzee, a de Gershom Scholem sobre o "messias" Sabatai Tzvi, o que já foi publicado da trilogia de Chuck Palahniuk que faz paralelo com a Divina Comédia de Dante (e que parece que ele não vai completar mesmo). Mesmo "A trilogia da liberdade", de Jean Paul Sartre, que começou espetacularmente e terminou de maneira ilegível, li até o final. Só não consegui terminar mesmo a trilogia "Teu rosto amanhã", de Javier Marías, que parei no primeiro volume (e olha que acho "Coração tão branco", do mesmo autor, um dos melhores livros que já li). Conforme comentei aqui, gostei muito do primeiro volume da trilogia MaddAddão, de Margaret Atwood, chamado "Oryx e Crake". O livro conta "a história de um futuro em que ocorre uma grande catástrofe depois que cientistas começam a fazer modificações genéticas em grande escala nos animais e nos seres humanos, e o único sobrevivente do homem conforme conhecemos (há também alguns seres humanoides, criados por manipulação genética) em uma grande região litorânea é um homem que agora tem o apelido de 'Homem das Neves'”. No segundo volume, "O ano do dilúvio" (Rocco, 470 páginas, tradução de Márcia Frazão, publicado originalmente em 2009), o ambiente pós-apocalíptico é o mesmo - o que restou da Humanidade vive nos escombros depois do chamado "Dilúvio Seco" (a catástrofe ambiental supracitada). Alguns personagens que tinham aparecido em "Oryx e Crake" voltam neste "O ano do dilúvio", mas os mais importantes deles - as garotas Ren e Toby - surgem pela primeira vez aqui. Esta segunda parte da trilogia MaddAddão é em quase tudo inferior à primeira. As personagens principais não têm grandes atrativos em termos narrativos, a história às vezes é arrastada, mas o pior de tudo é a seita do jardineiros, cujo líder - um tal de Adão Um - brinda os leitores a todo o tempo com discursos ecológicos ingênuos, dignos de uma Greta Thunberg. A questão que fica para mim é: vou ler o terceiro volume da série, chamado de "MaddAddão" (também o nome da trilogia)? Provavelmente.
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“Inverno”, de Karl Ove Knausgård
Literatura
“Inverno”, de Karl Ove Knausgård
5 de maio de 2024 at 15:54 0
Aqui já tinha comentado que a Quadrilogia das Estações, de Karl Ove Knausgård, apresenta um volume para cada uma das estações do ano, e que a série é uma espécie de manual de instruções para uma filha que ainda não tinha nascido. Já tinha discorrido sobre "Outono", e o presente texto é sobre "Inverno" (Companhia das Letras, 232 páginas, tradução do norueguês de Guilherme Silva Braga, publicado originalmente em 2015), o segundo da série. Assim como no livro anterior, "Inverno" é composto por pequenos textos de cerca de três páginas cada um, comentando sobre assuntos variados, como "cérebro", "montes de neve", "sexo", "ponto de fuga". O estilo de Knausgård é fascinante. Ele escreve de maneira tão detalhada e interessada sobre assuntos às vezes aparentemente insignificantes (como corujas ou cotonetes) que às vezes eu imagino que, se Deus fosse falar de sua própria criação - ou das criações dos humanos - suas palavras seriam semelhantes à do grande escritor norueguês. Vejam por exemplo este exemplo, o início do texto sobre o cérebro:
O cérebro, que numa pessoa adulta pesa cerca de um quilo, é composto de dois hemisférios simétricos e separados por uma fissura longitudinal, e se parece acima de tudo com uma grande noz, no sentido de que a superfície é toda enrugada, cheia de sulcos e depressões, e também porque o cérebro, a exemplo das nozes, encontra-se no interior de uma casca dura e redonda que faz as vezes de caixa. Mas, enquanto a noz é seca, enrugada e morta, o cérebro é úmido e repleto de líquidos, e nessa perspectiva se parece mais com um molusco, que também é composto de um interior úmido e vivo fechado no interior de uma casca. A diferença mais importante, claro, é que o molusco compõe uma unidade, que constitui uma criatura em si mesmo, enquanto o cérebro é apenas um órgão que integra um todo maior, a saber, o corpo humano, através do qual o cérebro se ramifica por meio dos inúmeros nervos que dele saem. Mas, se pudéssemos retirar o cérebro da caixa craniana e separar cada um desses nervos, que saem do cérebro, descem pela nuca e se espalham por todas as partes do corpo, o cérebro haveria de parecer-se com uma criatura à parte, não mais uma criatura terrestre, porque não teria pernas nem braços, mas uma criatura que flutua no mar.
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Livros que minha mãe amava: 7. “A história secreta”, de Donna Tartt
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Livros que minha mãe amava: 7. “A história secreta”, de Donna Tartt
27 de abril de 2024 at 12:18 0
Eu já comentei aqui e aqui sobre o quanto gosto de "A história secreta", de Donna Tartt (Companhia das Letras, tradução de Celso Nogueira, 557 páginas, publicado originalmente em 1992), e que ele tinha sido me apresentado pela minha mãe. Acho que ela estava no escritório, lá em cima, e me mostrou o livro, dizendo que era muito bom. Amei o romance, me esqueci dele e resolvi relê-lo, anos depois. Eu o pedi para a minha mãe, sofremos um pouco, mas acabamos achando o exemplar - que reli e amei de novo. Quando resolvi fazer um texto sobre "livros para reler", acabei chegando à conclusão de que este era um dos poucos romances que tenho vontade de reler sempre. Sei lá onde está aquele exemplar que minha mãe me emprestou. Comprei outra edição, cuja foto acompanha este texto, com uma capa diferente da primeira. E reli o romance, agora pela terceira vez. Engraçado, nesta nova leitura, é que o que eu mais lembrava do romance era uma ocorrência trágica e de fundo espiritual que realmente vira a cabeça de todos de cabeça para baixo - mas, sei lá por quê, eu achava que ele ocorria no final do livro: na verdade, a tragédia ocorre aí pela metade. O fato é que este acontecimento era sobre o qual a minha mãe mais comentava quando falava do romance, e deve ser por isso que eu me lembrava tanto dele. E, quem sabe, a lembrança dela me ajude a gostar tanto de "A história secreta", de Donna Tartt.
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Livros que minha mãe amava: 6. “Memorial de Aires”, de Machado de Assis
Literatura
Livros que minha mãe amava: 6. “Memorial de Aires”, de Machado de Assis
21 de abril de 2024 at 13:07 0
Comentei aqui que minha mãe amava Machado de Assis como, provavelmente, nenhum outro autor. Contei também que eu não tinha gostado muito de uma nova leitura de "Dom Casmurro", provavelmente por saudade dela. Resolvi tirar a cisma e li (pela segunda) "Memorial de Aires", o último romance escrito pelo Bruxo do Cosme Velho. No romance, contado em primeira pessoa pelo Conselheiro Aires, diplomata aposentado, um casal idoso, de sobrenome Aguiar, não pôde ter filhos, mas praticamente ajudou a criar Fidélia, filha de um fazendeiro e agora viúva, e o advogado Tristão, que estava em Portugal e voltou para a cidade onde toda a ação de passa, o Rio de Janeiro. Ao contrário de Dom Casmurro, amei "Memorial de Aires". No dizer de Barreto Filho, que faz a introdução dos romances de Machado de Assis na edição das obras completas do autor da Nova Aguilar Editora, sobre a qual eu tinha comentado anteriormente e cuja foto ilustra este texto, comenta:
"O escritor está trabalhando com uma mão leve, que não conhece mais a ênfase nem a inflação sentimental. Quando o marido declara que os dois possuíam o único e grande ressentimento de não terem filhos, o Conselheiro censura no seu diário semelhante ênfase, e o melhor elogio que tem para Dona Carmo é declarar: 'é das poucas pessoas a quem nunca ouvi dizer que são doidas por morangos, nem que morrem por ouvir Mozart. Nela a intensidade parece estar mais no sentimento que na expressão'. Isso nos dá uma amostra das exigências de sobriedade a que ele tinha chegado, e que ele próprio praticava, exemplarmente, não somente como homem mas nos seus livros e em particular no Memorial, onde não se encontra nenhuma situação, nenhum sentimento, nenhuma reflexão sublinhada além de sua medida. O seu espírito chegou aqui a um estado de apuro em que imita ou se confunde com a sabedoria popular. A sua palavra sobre cada coisa vem repassada daquela simplicidade e concisão de que é feito o ditado, a expressão ao mesmo tempo única e geral. O Memorial está cheio dessas delícias, e as próprias construções castiças respiram essa linguagem arcaica que o povo muitas vezes conserva, e esse modo meio jocoso e sério de apreciar as coisas que é o patrimônio do senso comum. (...) O seu sistema de ideias constitui um patrimônio comum, que se comunica a todos, produzindo-se a surpresa de um encontro entre o grande trabalho de erudição e de cultura e o insondável sentimento da comunidade. Eis por que a sua influência é cada vez mais ampla e profunda. Memorial é melancólico, mas é um depoimento em favor da vida."
Minha mãe falava pouco deste livro, mas o que importa? O fato é que a releitura me deu saudades dela. Ainda mais hoje, no dia do aniversário de seu falecimento.
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Livros que minha mãe amava: 5. “O Gênio e a Deusa”, de Aldous Huxley
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Livros que minha mãe amava: 5. “O Gênio e a Deusa”, de Aldous Huxley
10 de março de 2024 at 15:35 0
Se esta série de livros que minha mãe amava tivesse apenas um exemplar, este certamente seria “O Gênio e a Deusa” (Civilização Brasileira, 113 páginas, tradução de João Guilherme Linke, publicado originalmente em 1955), o preferido dela. Como eu, minha mãe não costumava reler livros, mas tinha algumas exceções – as minhas eu comentei aqui pouco tempo atrás, e a única exceção que eu sei dela era (devia ter mais algumas, mas eu não lembro) era este “O Gênio e a Deusa”. Ela me dizia que tinha lido mais de dez vezes este romance, e que às vezes o relia quando lhe dava na telha. Alguns trechos da obra ela repetia em algumas ocasiões, e este aqui, sublinhado na edição dela, é o que eu mais lembro de tê-la ouvido recitar:
“’A gente acaba se acostumando’ – repetiu. Cinquenta por cento das Consolações da Filosofia em cinco palavras. E os outros cinquenta podem ser expressos em seis: irmão, quem está morto, está morto. Ou, se se prefere, em sete: irmão, quem está morto, não está morto.”
Eu não achava esta citação nada demais, no início. Até que um belo dia percebi que ela falava, de modo descontraído e profundo ao mesmo tempo, da vida após a morte – provavelmente a maior questão da humanidade. Outro trecho que ela citava é famoso início do livro:
“O mal da ficção – disse John Rivers – é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido. - Nunca? – contestei. - Talvez do ponto de vista de Deus – concedeu ele. – Do nosso, nunca. A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui uma coisa nem outra.”
A edição da minha mãe está cheia de trechos sublinhados, e lê-los, claro, me faz lembrar dela. O jeito como o “O Gênio e a Deusa” é contado é – apesar de não original – bastante interessante. O livro todo é uma conversa na noite de Natal, à noite, entre o narrador e John Rivers, um físico que, trinta anos antes, tinha morado na casa da família do Dr. Maartens (o “gênio” do título), um físico vencedor do Prêmio Nobel, casado com Katy (a “deusa”), e com dois filhos, Timmy e Ruth. Dr. Maartens, apesar de genial na ciência, é completamente infantil na vida pessoal (será que é a inspiração para o personagem Michael Beard, do ótimo “Solar”, de Ian McEwan, sobre o qual comentei aqui?), enquanto a bela Katy é uma espécie de “esteio da casa” e Ruth é uma adolescente problemática. Os conflitos pessoais entre John Rivers e os Maartens é o tema principal do livro. Eu já tinha lido “O Gênio e a Deusa” na adolescência, mas não tinha entendido muito. Na releitura, agora, notei que o livro é simplesmente uma obra-prima, e merece todo o amor que minha mãe tinha por ele. Mas não vou deixar de acabar este texto sem transcrever o último parágrafo do livro, que minha mãe sublinhou, e dá uma pequena mostra do humor ácido da minha mãe:
“Guie com cuidado – recomendou enquanto abria a porta. – Este é um país cristão e hoje é o aniversário do Salvador. Praticamente todo mundo que você encontrar estará bêbado.”
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