Literatura

Dalton Trevisan (1925-2024)
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Dalton Trevisan (1925-2024)
10 de dezembro de 2024 at 01:19 2
Eu devia ser ainda criança quando minha mãe me falou de Dalton Trevisan pela primeira vez. Ela tinha alguns livros escritos por ele em casa, fui ler e não levei muito a sério: não devia ser assim tão bom um escritor que falava só de bairros e lugares que eu conhecia. O bairro Barreirinha. A Praça Tiradentes. A Rua das Flores. O prazer que eu tenho com suas histórias é difícil de descrever. Até hoje, se leio um conto dele e vejo citado um lugar em que eu sempre passo, eu sinto um certo arrepio bom. Bobo, mas bom. Por uma dessas coisas que é difícil de explicar racionalmente, passei a sentir de uns dois meses para cá uma grande necessidade de ler seus contos – cheguei a contar para um amigo que estava com cada vez menos vontade de ler ficção, fora J.M. Coetzee e Dalton Trevisan. Comprei quatro livros dele recentemente, já li um – "Mistérios de Curitiba" - e, entre os outros três, um grosso volume chamado “Antologia Pessoal”. Não via a hora de começar a lê-lo. Não via a hora de escrever sobre os contos dos livros que comprei recentemente. Não costumo me abalar muito com a morte de quem não conheço pessoalmente, e não conheci pessoalmente o maior escritor que já nasceu na minha cidade. Mas me abalei MESMO com a morte de Dalton Trevisan. De uma maneira idiota e meio patética, no fundo eu achava que ele era meu amigo. Descanse em paz, gigante. (foto que acompanha o texto obtida na Banda B)
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“O dia em que o céu caiu”, de René Goscinny e Albert Uderzo
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“O dia em que o céu caiu”, de René Goscinny e Albert Uderzo
24 de novembro de 2024 at 18:11 0
Criada em 1961 por René Goscinny e Albert Uderzo, a série de livros de história em quadrinhos Asterix faz, até hoje, um imenso sucesso no mundo inteiro: além das HQs (traduzidas em mais de 100 idiomas e que já venderam mais de 120 milhões de exemplares) e filmes (de desenho animado e "normais"), até um parque temático nos moldes da Disneyworld foi construído nas imediações de Paris. As histórias da pequena aldeia gaulesa (a Gália se situava onde atualmente é a França) que resiste à dominação romana, pouco antes do início da Era Cristã, graças à poção mágica criada pelo druida Panoramix - que dá uma força sobrenatural a seus habitantes - continua fascinando crianças, jovens e adultos pelo mundo todo. Entre as maiores qualidades das histórias do baixinho e corajoso Asterix podem ser citados: o brilhante traço de Uderzo (que nitidamente foi melhorando a cada nova história criada, até se estabelecer em sua plenitude por volta do episódio "Asterix entre os bretões", lançado em 1966); a esperteza e a inteligência do personagem principal; o conseqüente contraste com a obtusidade de seu melhor amigo Obelix (que caiu num caldeirão da poção mágica quando criança e que, por isto, conquistou uma força sobre-humana para o resto da vida); a sabedoria do druida; os engraçados personagens Abracurcix (o chefe da aldeia), Chatotorix (um bardo que canta insuportavelmente mal) e Ordenalfabetix (o vendedor de peixes que vive se pegando com o ferreiro Automatix) - e não se pode esquecer do charme adicional de histórias em que os não-poderosos (os gauleses, neste caso) sempre vencem os poderosos (aqui, os romanos). Mas sem dúvida nenhuma a qualidade que é a maior responsável pelo imenso sucesso de Asterix são os brilhantes roteiros assinados por René Goscinny, falecido em 1977 - e a morte deste foi uma perda insuperável para a qualidade das histórias do baixinho gaulês, o que se pode comprovar lendo "O dia em que o céu caiu”, HQ recentemente publicada lá fora e também por aqui (Record, 49 páginas). Quem assina o roteiro, como tem feito desde a morte de seu colega, é o desenhista da dupla, Albert Uderzo. A história conta a chegada de duas naves extraterrenas na aldeia gaulesa, uma dos walneydistianos, da estrela Walneydist, que são mais bonzinhos; a outra nave é dos nagmas, seres ambiciosos e sem escrúpulos vindos do planeta Gnama que querem conquistar o universo todo. O que estas duas expedições, de planetas rivais, querem na aldeia dos irredutíveis gauleses? Saber o segredo de sua força, claro, que já conquistou fama muito além do nosso planeta. E, a partir deste mote, muita coisa acontece na aldeia: luta de naves, vôos, desaparecimentos, toda a sorte de acontecimentos fantásticos. Não que "O dia em que o céu caiu” seja ruim, não mesmo. A HQ tem brigas memoráveis entre Ordenalfabetix e Automatix, os "efeitos espaciais" são bem bolados - sem contar que é sempre um prazer ver o pessoal da aldeia em ação. Mas quando comparamos esta história bobinha com as brilhantes HQs com roteiro de Goscinny, como por exemplo a fábula sobre a luta entre a razão e a superstição rasteira “Asterix e o adivinho”, a profundamente melancólica “Asterix e o caldeirão”, o estudo sobre a ambição humana “Asterix e o domínio dos deuses” ou o enorme deboche sobre os dominadores de todos os tempos que é “Asterix e os louros de César”, ficamos pensando se realmente Asterix e Obelix mereciam este final de carreira tão melancólico. (texto publicado no suplemento dominical do jornal "O Estado do Paraná" em 2006)
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“Vida e época de Michael K”, de J. M. Coetzee
Literatura
“Vida e época de Michael K”, de J. M. Coetzee
10 de novembro de 2024 at 13:11 0
"Vida e época de Michael K", do sul-africano J. M. Coetzee (Companhia das Letras, 230 páginas, tradução de José Rubens Siqueira, publicado originalmente em 1983), Prêmio Nobel de Literatura de 2003, começa assim:
"A primeira coisa que a parteira notou ao ajudar Michael K a sair de dentro da mãe para dentro do mundo foi que tinha lábio leporino. O lábio enrolado como pé de caramujo, a narina esquerda fendida."
Poucos parágrafos adiante o livro continua com:
Por causa da deformação, e porque não era rápido de cabeça, Michael foi tirado da escola depois de uma breve tentativa, e entregue à proteção do Huis Norenius, em Faure, onde, às custas do Estado, passou o resto da infância na companhia de outras crianças infelizes com afecções diversas, (...)
Além do lábio leporino e de "não ser rápido de cabeça", Michael K vive no meio de uma guerra civil na África do Sul, é pobre e tem que cuidar da mãe, que sofre de hidropsia e não consegue andar. Quando a guerra chega no bairro onde Michael K mora, e também para cumprir um antigo desejo de sua mãe, ele cria uma condução em cima de um carrinho de mão e tenta levá-la para a sua cidade natal - mas ela morre logo no início da viagem. Depois começam a acontecer uma série de acontecimentos na sua vida: ele é preso algumas vezes, é assaltado e fica sem as economias da mãe que carregava consigo, tenta morar isolado numa fazenda, é constantemente ameaçado por combatentes de algum dos lados da guerra, encontra pessoas esquisitas. Com o nome do personagem remetendo a vários outros de Kafka e vivendo sempre em condições dificílimas, pode-se imaginar que "Vida e época de Michael K" seja apenas uma espécie de denúncia contra os absurdos da guerra e da sociedade constituída - por mais que, em certo sentido, o romance seja isso mesmo. Mas Coetzee não seria o gigante da literatura que é se apenas tentasse emular o também gigante Kafka. A verdade é que, frequentemente, é o próprio Michael quem arranja problemas para si mesmo. Dadas as trágicas circunstâncias da guerra civil em que vive, ele é muito mais bem tratado - pela polícia, pelos combatentes, por outras pessoas e pela própria mãe - do que se esperaria de um personagem chamado "Michael K". Já estou com dois livros de Coetzee aqui comigo, esperando a leitura. Nunca me canso de suas histórias fortes e profundas.
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“Vida de Petrarca”, de Ugo Dotti
Literatura
“Vida de Petrarca”, de Ugo Dotti
3 de novembro de 2024 at 12:52 0
Muita gente debochou de Luana Piovani quando ela disse que tinha lido "Cem anos de solidão", o clássico de Gabriel García Márquez, em seis meses. Segundo este link da Folha de São Paulo, ela declarou, orgulhosa:
"Terminei de ler meu último companheiro de 6 meses, meu fiel amigo de cabeceira, meu gorducho livro! Gabriel e eu realmente nos entendemos! Cem Anos de Solidão me fez viajar por lugares quentes, me apresentou mulheres loucas e admiráveis e ainda me descreveu uma cena de amor enfestada [sic] de borboletas amarelas."
Eu não entendo direito o deboche, já que às vezes demoro anos para acabar de ler um livro. Eu certamente demorei mais de dez para terminar este "Vida de Petrarca", de Ugo Dotti (Editora Unicamp, 555 páginas, tradução de Luís André Nepomuceno, publicado originalmente em 1987), sobre o grande poeta e ensaísta italiano que viveu entre 1304-1374 - uma época extremamente conturbada na Europa. Petrarca participou ativamente dos distúrbios políticos de seu tempo polemizando - muitas vezes por cartas - com políticos e escritores importantes. Quando se cita o papado de Avignon (1309-1377), por exemplo, quase sempre Petrarca é lembrado por declarar, para quem quisesse ouvir, que aquela mudança de sede, da Itália para a França, era o "cativeiro babilônico dos papas" (de todo modo, agora o papado de Avignon é um dos meus interesses estranhos). Não que precise, mas vou tentar me justificar por ter terminado tanto tempo para acabar de ler a biografia do grande poeta italiano. No prefácio "Marcel Proust - uma biografia", de George D. Painter (Editora Guanabara, 798 páginas, tradução de Fernando Py, publicado originalmente em 1959) o autor declara que, com o livro, pretendeu fazer a "biografia definitiva" de um dos meus escritores preferidos. Deixei a leitura pela metade, achei chato demais. Um trecho ao acaso mostra sobre o que estou falando:
"Proust a conheceu, no outono de 1888, ela contava trinta sete anos, e ele apenas dezessete; ela estava agora exatamente com quarenta. Era roliça, porém de cintura fina, e usava um vestido bastante decotado, com festões de pérolas, três de cada lado, que pendiam da parte mínima que ocultava seu seio. O cabelo era louro-acinzentado, atado com uma fita cor-de-rosa; os olhos eram pretos e tendiam a abrir-se desmesuradamente quando ela se excitava. 'Tenho olhos amendoados, mas em sentido inverso', dizia rindo. Possuía uma grande coleção de porcelanas, na qual incluía Proust, a quem chamava de "meu pequeno psicólogo de porcelana". Ele replicava comparando a um altar a estante em ele ela dispunha suas figuras de Saxe: 'Vivemos no século de Laure Hayman; e a dinastia reinante é a de Saxe'; (...)"
Tudo bem que "Em busca do tempo perdido" tem muitos detalhes assim, mas o objetivo no romance é sempre literário e, na biografia, é sempre descritivo. E chato. Já passei da metade de mais duas monumentais biografias definitivas - e chatas -, uma de Raspútin, de Douglas Smith, e uma de Nietzsche, de Curt Paul Janz. Em comum com as de Marcel Proust e Petrarca, descrições tediosas de viagens, conversas, relações com amigos e inimigos. E etc. Enfim, achei que nunca terminaria de ler uma "biografia definitiva" deste naipe, até que, depois de mais de uma década, terminei de ler esta "Vida de Petrarca". Fiquei orgulhoso como a Luana Piovani citada acima.  
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Revisitando livros lidos na adolescência
Literatura
Revisitando livros lidos na adolescência
20 de outubro de 2024 at 13:04 0
É sempre interessante reler livros lidos há muito tempo. Recentemente revisitei dois autores que não lia há mais de trinta anos já. Eu conheci o escritor norte-americano Charles Bukowski (1920-1994) pelas críticas sempre favoráveis da Revista Veja a respeito de sua obra. Li cinco livros do autor na adolescência, e lembro eles tinham uma estrutura meio circular, quase sempre com os mesmos temas: bebedeiras homéricas, sexo desenfreado com mulheres meio perdidas, sem grandes objetivos na vida - como o narrador/autor, aliás -, apostas em corridas de cavalo, mudanças constantes de um subemprego para outro, o início da fama na literatura. Lembro que eu não considerava a obra de Bukowski como "literatura séria" - eu amava Thomas Mann, na época, para que se tenha uma ideia -, mas me sentia atraído por aquelas histórias malucas. Enfim, um belo dia emprestei meus cinco livros de Bukowski para alguém que não lembro até hoje quem era, e que nunca me devolveu - e nunca mais tive contato com o autor. Alguns meses atrás passei na frente de um sebo e lá estava com destaque este "Crônicas de um amo louco - ereções, ejaculações e exibicionismos - Parte I" (L&PM, tradução de Milton Persson, 320 páginas, publicado originalmente em 1967), e resolvi comprá-lo. A releitura me revelou um escritor muito melhor do que eu me lembrava: sua perspectiva às vezes divertida e quase sempre carinhosa de seus personagens à margem da sociedade e, frequentemente, desencantados, é coisa de um grande escritor. No que depender de mim, vou continuar lendo - e relendo - Charles Bukowski por muito tempo ainda. Com o escritor italiano Alberto Moravia (1907-1990) a minha relação era ao mesmo tempo parecida e diferente. Ele também tinha ótimas críticas na Revista Veja e suas histórias eram fortemente sexuais; mas, ao contrário de Bukowski, ele tinha um verbete nas páginas principais da Editora Abril. Na minha mente de adolescente meio exibido e fanático por literatura, isto fazia uma grande diferença. Li nos anos oitenta três livros de Alberto Moravia, e dois deles, o romance "A Romana" e este "A coisa", de contos, me impactaram enormemente. Sempre tive na cabeça a ideia de que deveria reler Moravia: ainda não revisitei o romance, mas reli o outro citado recentemente. "A coisa" (Difel, tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, 268 páginas, lançado originalmente em 1983) é composto por histórias que envolvem, frequentemente, sexualidade, política e/ou mistério com  toques sobrenaturais. Os primeiros contos do livro são mais longos, e parece que Moravia foi ficando com preguiça à medida que o escrevia, já que os contos vão diminuindo em tamanho - e também em qualidade - à medida que as páginas vão transcorrendo. Os mais impressionantes são: aquele que dá título à coletânea, em que "a coisa" é uma tara estranha de um casal de lésbicas; "Ao deus desconhecido", em que uma enfermeira presta pequenos favores a seus pacientes homens num hospital; "A mulher da capa preta", uma história selvagem e misteriosa sobre dois viúvos que se hospedam num mesmo hotel; e "O cinto" e "O sinal da operação", duas histórias que hoje em dia seriam consideradas politicamente incorretas, uma sobre violência doméstica, outra sobre um padrasto e sua enteada. Se os melhores contos são grande literatura, mesmo nos piores a escrita de Alberto Moravia faz o leitor nunca perder o interesse. No que depender de mim, vou continuar lendo - e relendo - Alberto Moravia por muito tempo ainda.  
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“O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós
Literatura
“O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós
15 de setembro de 2024 at 12:41 0
Raramente fico frustrado com o tamanho dos meus textos aqui. Minha ideia sempre é dar uma pequena ideia do assunto a ser tratado, um tanto para fixar na memória, um tanto para destacar os pontos mais importantes. Mas com "O crime do Padre Amaro", o primeiro romance do grande escritor português Eça de Queirós (1845-1900), é inevitável eu me sentir um tanto descontente por não fazer um texto detalhado sobre ele. São tantos os personagens interessantíssimos, tantas críticas ao mesmo tempo ácidas e bem-humoradas, tanta genialidade, que eu acho que deveria, se tivesse mais tempo e menos preguiça, fazer um verdadeiro ensaio sobre o livro. Quem sabe um dia! Mas enfim, vamos aos pontos principais desta obra espetacular. "O crime do Padre Amaro", lançado originalmente em 1875, conta a história do amor tempestuoso entre um padre - o Amaro do título - e uma jovem solteira chamada Amélia. A contracapa da edição que acompanha este texto (da ótima coleção "Grandes Nomes da Literatura", da Folha de São Paulo, com 470 páginas), escrita pelo grande João Pereira Coutinho, faz um bom resumo de parte importante desta obra-prima:
"O crime do padre Amaro (...) não é apenas 'uma intriga de clérigos e de beatas tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé', como o próprio autor escreveu. Mas também não será, como certa crítica defende, uma mera condenação moral e espiritual do clero e da hipocrisia abjecta das mulheres devotas, que rezam aos santos certos e se entregam a luxúrias com os homens errados. Este romance sobrevive na memória do tempo pela extraordinária força dos seus personagens em especial de Amaro, o jovem que seguiu o sacerdócio sem real vocação e que sucumbe ao mais prosaico dos sentimentos quando se apaixona por Amélia. Acompanhar os seus atos e pensamentos - a angústia da transgressão; o ressentimento pela liberdade amorosa de terceiros; mas também a fragilidade típica do amante; os seus ciúmes reais ou imaginários; e a dilacerante ambiguidade com que ele contempla o horrendo crime - é conhecer por dentro a tragédia de um homem em carne viva que o leitor irá reconhecer como um de nós."
É claro que o tema principal do romance - a relação tórrida entre Amaro e Amélia - é apresentado primorosamente, mas o que mais me chamou a atenção foi a maneira corrosiva e divertida com que Eça de Queirós descreve a hipocrisia, a falta de escrúpulos e o corporativismo de quase todos os membros da Igreja Católica apresentados no livro (com exceção do abade Ferrão, o único, aparentemente, que realmente aplicava o Evangelho em sua vida privada) e das mulheres devotas que os seguem. E Eça de Queirós, à maneira de Molière, parece ter um carinho bem-humorado por tanta gente sem caráter. Enfim, eu gostaria de fazer um texto maior para descrever tantos personagens divertidos e fascinantes. Mas não quero terminar este curto texto sem apresentar a explicação esdrúxula, absurda e vil que o personagem cônego Dias faz da famosa frase de Cristo "dos pobres é o reino do céu". Eça de Queirós era gênio. Deixemos a palavra, enfim, com o tal cônego Dias:
"-Pra Deus não há pobre nem rico – suspirou a S. Joaneira. – Antes pobre, que dos pobres é o reino do céu! – Não, antes rico – acudiu o cônego, estendendo a mão para deter aquela falsa interpretação da lei divina. – Que o céu também é para os ricos. A senhora não compreende o preceito. Beati pauperes, benditos os pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena de não serem benditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que prega que os trabalhadores e as classes baixas devem viver melhor do que vivem vai de encontro à expressa vontade da Igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão chicote, como excomungados que são! Ouf!"
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Livros lidos recentemente
Literatura
Livros lidos recentemente
7 de julho de 2024 at 17:28 0
"O décimo homem", de Graham Greene (Record, 176 páginas, tradução de Flavio Moreira da Costa, publicado originalmente em 1985): em uma prisão nazista na França durante a ocupação, dez prisioneiros são obrigados a fazer um sorteio, e o sorteado será executado. Aquele que "vence" a competição faz uma proposta insólita, a de trocar de lugar com outro detento por por toda a sua fortuna. Um dos presos aceita a troca, morre no lugar do outro, e a fortuna do sobrevivente vai para a família do falecido. O detento que comprou sua sobrevivência, agora pobre, volta para a casa onde morava, e aí começam os problemas. Extremamente bem escrito, "O décimo homem" é uma novela que justifica todo o sucesso que o inglês Graham Greene (1904-1991) fez como escritor. "O abismo vertiginoso - um mergulho nas ideias e nos efeitos da física quântica", de Carlo Rovelli (Objetiva, 199 páginas, tradução de Silvana Cobucci, publicado originalmente em 2020): um dos efeitos mais conhecidos da física quântica é que o observador, apenas por olhar um experimento, muda o comportamento de partículas subatômicas. Meu maior objetivo em ler este livro do grande físico italiano era tentar entender este efeito estranhíssimo. De fato, como Carlo Rovelli comenta em sua obra,
"a realidade dos quanta é muito mais estranha que todos os delicados, misteriosos, encantadores e intricados aspectos da nossa realidade psicológica e da nossa vida espiritual"
Em seu ótimo livro, Rovelli descreve um experimento que qualquer um acharia maluco se não fosse real, com a mão do observador mudando parte dos fótons lançados por um equipamento. No livro também são apresentadas ótimas descrições dos principais cientistas envolvidos na descoberta da física quântica. A explicação que Carlo Rovelli dá para este efeito esquisito, por outro lado - baseado, grosso modo, na relação entre todas as partículas do Universo - não me impressionou muito. Quem sabe eu não a tenha entendido muito bem. "Clube da Luta", de Chuck Palahniuk (Leya, 272 páginas, tradução de Cassius Medauar, publicado originalmente em 1996): não assisti ao famoso filme homônimo baseado neste romance, e confesso que agora estou bem curioso para saber como roteirista e diretor fizeram para colocar essa loucura toda nas telas. O livro, narrado em primeira pessoa por um funcionário de uma grande empresa, conta como um sujeito estranho chamado Tyler Durden convence vários homens, uma vez por semana, a trocarem socos no porão de bares. A loucura de Tyler vai se aprofundando e ele acaba criando o Projeto Ordem e Destruição, em que convence homens a, primeiro, fazerem pequenos atos de desordem, como cuspir em pratos que serão servidos para hóspedes ricos num hotel, para depois partir para um terrorismo em larga escala. Muita gente acha que "Clube da Luta" é um livro que representa as repressões masculinas, ou coisa que o valha, mas eu só achei que o livro é esquisito mesmo - como os dois do autor ("Maldita" e "Condenada") que eu já tinha lido, aliás. E sim, eu gostei muito de "Clube da Luta".
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“Em agosto nos vemos”, de Gabriel García Márquez
Literatura
“Em agosto nos vemos”, de Gabriel García Márquez
9 de junho de 2024 at 14:40 0
A ideia de Gabriel García Márquez (1927-2014) era publicar cinco contos independentes com uma protagonista latina (acho que colombiana) com o mesmo nome da mulher de Johan Sebastian Bach, Anna Magdalena Bach. Só conseguiu terminar o primeiro conto, já que começou a ter problemas de memória no final da vida, que é este "Em agosto nos vemos" (Record, 130 páginas, tradução de Eric Nepomuceno, publicado originalmente em 2024). A protagonista vai, uma vez por ano, até uma ilha em que sua mãe está enterrada, para "conversar" com sua mãe morta no cemitério. Em uma destas viagens até à ilha ela se encanta com um homem, faz sexo com ele e volta meio perturbada - ela nunca tinha traído o marido, músico clássico de sucesso. Anna Magdalena Bach não sabe nem o nome do amante, e tem esperança de encontrá-lo na visita seguinte à ilha, e não o acha - mas acaba fazendo sexo com outro desconhecido. E assim a história de "Em agosto nos vemos" vai indo, e não dá para contar mais nada para não estragar a surpresa. Gabriel García Márquez reescreveu de maneira obcecada esta novela, e acabou concluindo que não valia a publicação. Seus filhos o "traíram" quando resolveram publicá-la. Sorte nossa: o livro é tão bom quanto qualquer outra coisa que o gênio García Márquez publicou em vida. E, como nota final, a novela se basta a si mesma: ficamos sem saber o que o Prêmio Nobel de 1982 tinha em mente para suas outras quatro novelas com Anna Magdalena Bach, mas isso não importa tanto. Só fico chateado de não saber o que aconteceu com a filha da personagem, Micaela, que tinha uma vida sexual ativa mas que, mesmo assim, estava próxima de se tornar uma Carmelita Descalça.
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