Haroldo, no primeiro semestre de 2014, uma época “recheada de más notícias, a maioria delas relacionada a terroristas islâmicos”, resolve sair da cidade em que morava, Curitiba, para dar um passeio em áreas preservadas no Brasil Central. São as aventuras de Haroldo que são descritas em “Aventura no Brasil Central”, de Horacio Sendacz (acessível em https://horaciosendacz.wordpress.com/2018/06/27/aventura-no-brasil-central/).
Já no Centro Oeste, Haroldo trava contato com a guia Rafaela, “uma morena de cor jambo, miúda e com um corpo jeitoso”, que não aparentava seus quarenta anos. Na viagem, eles encontram belas paisagens e “seres, obviamente extraterrestres, que tinham aparência quase igual entre si e, como vestimenta, cada um portava apenas um colar com um pingente de pedra semipreciosa”. Haroldo queria saber se eles faziam sexo, e foi informado que eles transavam apenas uma vez na vida, para reprodução, e sem orgasmo. Além disso, eles são “tradicionalmente tristes”.
Haroldo e Rafaela são liberados pelos E.T. e, de volta ao passeio no Brasil Central, começam uma série de aventuras sexuais, históricas, antropológicas e policiais - e também conhecem povos, da Terra mesmo, bastante misteriosos, sempre em meio a belíssimas paisagens. Melhor não contar muito para não estragar a surpresa.
De todo modo, o importante é que “Aventura no Brasil Central” é um livro despretensioso e muito, mas muito mesmo, gostoso de ler.
Como se sabe, Catherine Millet é uma respeitada crítica de arte que causou furor, em 2001, ao lançar o para lá de polêmico livro autobiográfico A vida sexual de Catherine M., sobre o qual comentei que ela falava de sua vida de verdadeira libertina (participando de orgias, relacionamentos longos e curtos) como uma crítica de arte. Aproveitando o grande sucesso do livro, o seu companheiro Jacques Henric lançou, ainda em 2001, “Légendes de Catherine M.” (Denoël, 250 páginas) e a própria Catherine lançou em 2008 “A outra vida de Catherine M.” (Agir, 200 páginas, tradução de Hortencia Santos Lencastre).
Os dois livros são interligados: o livro de Catherine conta as crises de ciúme que ela teve de Jacques em uma certa época da vida – ciúmes um tanto incoerentes, como ela mesma não cansa de repetir, tendo em vista sua própria vida sexual livre. Já o livro de Jacques Henric mostra uma série de fotos da sua companheira nua – você pode ver algumas delas abaixo – e um longo texto em que o autor fala de sua atração por ela, pelas mulheres em geral, sobre as fotos postadas, com um enorme número de citações literárias e, um tanto paradoxalmente, religiosas – sempre com grande conhecimento de causa, aliás.
Dois livros fascinantes de um casal fascinante.
fotos obtidas em "Légendes de Catherine M.", de Jacques Henric (Denoel)
“O verão de 54 (novelas)” , de Fabricio Muller (Editora Appris), é composto por quatro histórias bastante diferentes uma da outra.
O Verão de 54 é uma história de amor proibido. Conversão trata de família e religião, Morrissey é um policial sobre um assassino serial com “uma missão” e Sorry é uma novela para adolescentes. O Verão de 54 é uma história em metalinguagem. Conversão utiliza um narrador onisciente, Morrissey é em formato de diálogo e Sorry é um diário.
Como se vê, o leitor pode iniciar a leitura deste livro por qualquer uma das quatro novelas cujo tema lhe pareça mais interessante.
Segue abaixo a resenha, bem elogiosa por sorte, que a Regina Pimentel fez do meu "O verão de 54 (novelas)":
Fabricio Muller publicou mais um livro. Este, agora, é uma coletânea de quatro novelas, díspares entre si, cada uma com seu próprio leitmotiv. Mas há o que as una: é o estilo muito pessoal de Fabricio, sempre muito intimista, voltado para os recessos da mente e da emoção. As “verdades em si mesmas”: a noção protofenomenológica de que o mundo é como a consciência o percebe.
Já vimos isso em Balzac, em Flaubert, em Henry James, em Phillip Roth, e já vimos isso aqui mais perto em Dalton Trevisan – o realismo voltado àquilo que constitui o desenrolar da vida humano. Sem a crítica social. O sexo sempre premente, as relações interpessoais, os pequenos fracassos e sucessos. Tudo isso, na pena de Fabricio, exposto a céu aberto, às vezes com um sarcasmo que é ao mesmo tempo uma divina concessão à humana pequenez. E a sua escrita é impecável.
“Morrissey”, entre os quatro contos, se destaca por ser, ao mesmo tempo, uma homenagem ao cantor inglês, uma história policial e uma novela escrita inteiramente como fluxo de consciência dialogal. O que é ainda mais interessante por se tratar do diálogo entre um acusado e um criminoso...
A primeira novela, a que dá nome ao livro, entremeia à narração o diálogo interior do autor. A história em si é então uma metanovela: o conto é sobre como o autor decidiu escrever, e escreveu, sobre fatos. Ou o inverso? Um contista narra uma história, mas há um metanarrador que insiste em dizer como e por que isso e aquilo foi escrito...
“Sorry” é o diário de uma adolescente – “nada do que é humano me é estranho”, diria Fabricio, que sim, conseguiu narrar as aventuras e desventuras de uma menina rica de família judia.
Finalmente, “Conversão” relata o caminho percorrido por um grupo de pessoas de classe média rumo a Jesus, nominadamente o Jesus das igrejas Luterana e Bola de Neve. Mais uma vez, o autor consegue mostrar os fatos e as reflexões envolvidas em acontecimentos aparentemente cotidianos.
Paulinho era um surfista extraordinário. Suas rasgadas, seus
floaters, seu flow, sua direita absolutamente fantástica assustavam os
adversários. Não era o melhor tube rider que o mundo já tinha visto, mas estava
entre os melhores. Já no primeiro campeonato do CT, da WSL, ficou em segundo
lugar, perdendo apenas em Pipeline, e na final, para o eterno campeão Kelly
Slater. Já no ano seguinte não teve para ninguém, e ele já era matematicamente
campeão já na etapa de Peniche, em Portugal. Paulinho, então com apenas 17
anos, seria o novo Kelly Slater? Ultrapassaria a quantidade de onze campeonatos
mundiais do maior surfista de todos os tempos? Eram esses os maiores
questionamentos da imprensa especializada a respeito de Paulinho, depois de seu
primeiro – que seria o último – campeonato mundial pela WSL.
Sim, último. Logo no ano seguinte à sua vitória no CT, um
novo surfista chegou para assombrar o mundo do esporte: Gabriel Medina –
brasileiro como Paulinho e que, assim como ele, foi matematicamente campeão da
WSL já na etapa portuguesa. No ano seguinte o havaiano John John Florence
ganhou o “caneco” mundial, e meio que foi se revezando com o brasileiro Medina
em vitórias nos campeonatos da WSL nas duas décadas e meia seguintes – as quais
ainda contaram com vitórias solitárias do sul-africano Jordy Smith e do
brasileiro Ítalo Ferreira.
E o Paulinho? Continuou disputando o CT sempre com bravura,
mas nunca mais passou do quinto lugar. A princípio, poderia parecer que a
reversão completa das expectativas em relação àquela promessa do surf mundial foi devida a algum motivo
psicológico, ou mesmo físico – mas não: Paulinho continuou surfando como sempre
surfara, mas não conseguiu, jamais, fazer as manobras inovadoras e progressivas
que eram a característica principal da nova geração (Medina, John John, Filipe
Toledo, Ítalo Ferreira, Jordy Smith, e por aí vai), a qual Paulinho pertencia
apenas em termos cronológicos: seu surf era ultrapassado desde o início – o que
ninguém, por incrível que pareça, tinha percebido a tempo.
E não que ele não tentasse dar os aéreos que deliciavam os
amantes do esporte, e que tanto deviam à influência do skate – John John
Florence, é sempre bom lembrar, era um excelente skatista. Mas Paulinho não
conseguiu, nunca, acertar um aéreo que fosse.
Cinco anos depois que Paulinho tinha vencido seu único campeonato da WSL (anos nos quais ele treinou sem sucesso fazer manobras inovadoras e progressivas), ele teve uma espécie de luz: percebeu que jamais seria um John John Florence, que jamais seria um surfista realmente grande – ao contrário da expectativa geral anterior, inclusive dele.
No dia em que ele finalmente teve consciência disso, chamou
seu grande amigo Gabriel Medina no canto e desabafou: “irmão, nunca mais vou
ser campeão mundial, nunca vou conseguir dar uma manobra inovadora”. O então
campeão mundial olhou bem nos olhos de Paulinho e respondeu: “Jesus tem um
propósito maior pra você, bro, não se preocupe com isso”.
Paulinho, que nunca acreditara em Deus, hoje frequenta cultos evangélicos – quase sempre ao lado de seu amigo Medina – em Boiçucanga, na Igreja Bola de Neve.
(O texto acima, uma ficção com personagens reais, é uma resposta ao seguinte desafio literário proposto por Robertson Frizero: "escreva, em 500 palavras, um conto cujo tema seja a mediocridade. O protagonista deve ser um artista - não importa qual a sua expressão artística - e a cena mostrada deve retratar o momento em que a personagem dá-se conta do quanto está iludida quanto ao seu 'talento'. O que a personagem fará depois dessa constatação deve ser o desfecho do conto.")
“Ai ai Izaura, hoje eu não posso ficar / se eu cair nos teus braços não há despertador que me faça acordar”. Como acontecia frequentemente, Paulo se lembrava dessa música quando Maria lhe pedia para ficar “só mais um pouquinho”. De brincadeira, finalmente, resolveu cantá-la. Maria estrilou:
- Que música idiota.
- Mas é bonitinha, Maria.
- Ah vá.
Era assim. Os dois se acertavam em quase todos os aspectos,
menos na música. Amante que era do tal “sertanejo universitário”, Maria se
irritava a cada vez que ele colocava no carro algo mais sofisticado, na linha
de um John Coltrane ou Miles Davis. Ele meio que se divertia com isso e nunca
ligou muito para essa profunda diferença musical, mas uma vez ele teve
esperança de que ela fosse abrir um pouco seus horizontes musicais.
Foi assim: literalmente apaixonada pela família imperial, e
pelo imperador Pedro Luís de Orléans e Bragança em particular, Paulo um dia
contou para Maria que o próprio monarca tinha lhe dito que seu cantor preferido
era o jazzista americano Chet Baker. Tinha sido numa reunião de trabalho na
capital imperial, Rio de Janeiro - ocasião que tinha deixado Maria praticamente
sem dormir durante uma semana. Ela não parava de mandar para o Paulo mensagens
no Whatsapp falando da excitação que sentia por saber que ele teria uma reunião
com o imperador. Com o imperador! Maria tinha quadros com toda a família
imperial pela casa, era um fanatismo que não conhecia limites.
Na verdade, Paulo exagerara um pouco em seu relato para
Maria. De fato, depois da reunião de trabalho (uns assuntos sobre o metrô do
Rio), ele e o imperador trocaram palavras sobre música. Pedro Luís de Orléans e
Bragança falou que amava Bach, que ouvia desde criança e que, agora, com o
Spotify, estava muito feliz pela possibilidade de conhecer ainda mais
intérpretes e gravações de seu compositor preferido. Paulo, que nunca foi fã de
música clássica, resolveu lhe perguntar se gostava de jazz também. O imperador
lhe respondeu que não tinha maior interesse pelo estilo, mas tinha visto um
show de Chet Baker no YouTube e tinha gostado muito – a história trágica do
grande jazzista também tocava o coração do monarca.
De modo que o papo de Chet Baker ser o “cantor preferido” do
imperador era só isso – papo, e furado. O mais engraçado tinha sido a reação de
Maria:
- Que pena, um imperador tão maravilhoso, com um gosto tão
estragado.
(Exercício literário proposto por Robertson Frizero: em Literatura, chamamos de ucronia qualquer narrativa que conte uma versão alternativa da História como a conhecemos. Trata-se da reconstrução de um evento do passado tal como ele poderia ter acontecido. Em Fatherland, romance policial de Robert Harris, por exemplo, o autor imagina um mundo no qual a Alemanha nazista teria vencido a Segunda Guerra Mundial.
O desafio de hoje é escrever uma narrativa de
até 500 palavras que se passa no seguinte cenário ucrônico: Deodoro da Fonseca
não proclamou a República e o Brasil seguiu sendo governado por um regime
monárquico e pela mesma linhagem dos Orleans e Bragança. Use essa informação
apenas como pano de fundo para sua narrativa; não se preocupe em descrever como
o movimento republicano falhou, etc.)
Duas estudantes de medicina norueguesas, Nina Brochmann e
Ellen Dahl, resolveram escrever um livro sobre o órgão sexual feminino que, ao
mesmo tempo, contivesse informações cientificamente corretas e que fosse acessível
ao grande público. Tiveram grande sucesso nessa empreitada, e “Viva a vagina:
Tudo que você sempre quis saber” (Paralela, 344 páginas, publicado
originalmente em 2017) acabou sendo traduzido para diversos países.
De fato, o livro – que fala de assuntos como
anticoncepcionais, anatomia da região genital feminina, doenças sexualmente
transmissíveis, menstruação, hormônios, gravidez - merece esse sucesso todo.
Escrito em linguagem leve e divertida, é uma leitura altamente recomendada para
quem se interessa pelo assunto, sejam homens ou mulheres.
As autoras só poderiam ter falado um pouco menos no DIU,
haha – mesmo assim, bem, agora acho que até eu entendo um pouco desse método
anticoncepcional.
Valérie Tasso é uma escritora, sexóloga e pesquisadora francesa radicada em Barcelona, na Espanha – onde é presença frequente em debates televisivos, falando sobre sua especialidade, o sexo. Li recentemente três livros dela.
“Diário de uma ninfomaníaca” (Essência, 262 páginas) foi seu livro de estreia, publicado originalmente em 2003, e é de caráter autobiográfico. O início da obra conta o tempo em que a autora trabalhava como publicitária em Barcelona, de onde saía para diversas viagens, nas quais se encontrava com vários homens diferentes para fazer sexo. Lá pelas tantas, ela se apaixonada por um “homem errado”, que a engana e acaba a levando à falência. Sem emprego e sem dinheiro, Valérie começa a trabalhar como prostituta para tentar se reerguer.
O livro é francamente ruim, escrito com mão pesada, sem
nenhuma sutileza. O leitor não consegue ter muita empatia para com a narradora,
o que dificulta muito a leitura num livro com tal temática.
Por sorte eu – que sigo a Valérie Tasso no Twitter e simpatizo com suas postagens – acabei insistindo com a autora e acabei tentando a leitura de “Confesiones sin vergüenza: Las mujeres españolas nos cuentan sus fantasías sexuales” (Grijalbo, 150 páginas), publicado originalmente em 2015. A partir de uma turnê na qual a autora fez palestras e reuniões por toda a Espanha falando sobre sexo, o livro reproduz fantasias sexuais escritas por mulheres participantes de tal turnê. As fantasias apresentadas no livro são de mulheres de todas as idades e estados civis, e o resultado é interessantíssimo.
Muito bom também é “El otro
lado del sexo” (Plaza & Janés, 248 páginas, 2006), publicado originalmente
em 2006. O livro descreve as pesquisas de Valérie Tasso sobre grupos ou pessoas
que têm a originalidade (ou estranheza?) como característica principal. Entre
eles, umas tais “Tigresas Brancas”, que passam a vida praticando a felação,
elevando esta atividade em arte sagrada; abstinentes sexuais; um médico que diz
aumentar o prazer feminino injetando colágeno no ponto G; sadomasoquistas.
Ao contrário de o “Diário de uma
ninfomaníaca”, os outros dois livros comentados aqui são de leitura bastante
leve e agradável.
Comentários Recentes