Segundo o ex-jogador e atual comentarista Tostão, “o grande craque é o que simplifica, define logo a jogada. Antes da bola chegar, já sabe o que vai fazer com ela. Não perde tempo com detalhes inúteis. Assim é também o cartunista, desenhista e contador de histórias em quadrinhos. O desenho e as poucas palavras – ou nenhuma – informam, analisam e nos divertem”.
O trecho acima foi retirado do prefácio da coletânea de quadrinhos, de vários autores, “Dez na Área, um na Banheira e Ninguém no Gol – Volume 1” (Via Lettera, 112 páginas, R$ 42,00 em média). Todas as dez pequenas histórias, boa parte delas sem título, contidas no livro têm como assunto principal o futebol – tema, obviamente, mais do que em voga nestes tempos de Copa do Mundo.
O tipo de enfoque dos quadrinistas para com o mais popular esporte do mundo varia bastante de um caso para outro. Num cartum ufanista e sem graça, assinada por Osvaldo Pavanelli e Emílio Damiani, e dedicada ao Mestre Ziza (apelido de Zizinho, famoso craque que jogou nas décadas de 40 e 50), os jogadores de 1982 aparecem flutuando acima do chão, enquanto que aqueles da Copa de 1994 são desenhados como jogadores de pebolim: é a velha e desgastada apologia do futebol arte se fazendo presente – como se poderia esperar, os jogadores de 58, 62 e 70 aparecem quase como super-heróis. Mas esta é a única história em que jogadores famosos aparecem: nas outras nove, a crítica, as recordações dos autores ou a fantasia dão o tom.
Lelis compôs uma ótima, debochada e corrosiva HQ em que o futebol dos presídios de segurança máxima é narrado como se fosse realizado fora das grades, ou de modo profissional: por exemplo, enquanto a narração fala em torcida soltando “fogos de artifício”, o desenho mostra presidiários atirando com seus revólveres para o alto; quando o comentário é a respeito da “comovente” capacidade de improvisação do brasileiro, que usa “qualquer coisa” como bola, o desenho mostra os jogadores disputando uma partida chutando um crânio humano; quando a narração fala de um centroavante “matador”, o leitor já pode imaginar o tipo de meliante que ele é… Outra história diretamente ligada com a violência, mas de tom bem mais sério, é a de Samuel Casal, que mostra os sonhos e desilusões de um garoto, relacionados ao futebol e à sua sobrevivência na favela onde mora.
Outros cartuns contam a péssima relação de pessoas com o mundo da bola. Em “Tudo o que é redondo me é estranho”, Maringoni mostra como foi difícil, para o personagem principal (seria o próprio autor?), começar a ter costumes essencialmente masculinos para conseguir amigos homens: com este objetivo ele aprendeu a olhar e a tratar as mulheres como simples objetos sexuais, a falar com conhecimento de causa sobre carros modernos e partidas de futebol importantes e insignificantes, além de passar ter modos grosseiros. Já a declaradamente autobiográfica história de Allan Sieber mostra as aproximações e distanciamentos do autor com o mundo da bola.
Boa parte dos cartuns tem a fantasia como característica principal. Em “Harmonia das Esferas”, de Spacca, o tom é onírico, numa história esquisita e não muito bem realizada, que relaciona uma partida de futebol com astrologia. Já Custódio mistura humor com sobrenatural, contando o caso de um excelente goleiro, Juvêncio, que toma um frango inacreditável numa final, e que faz sua equipe perder um título há muito. “Jogada”, de Fábio Moon e Gabriel Bá, apresenta um craque absoluto da bola – mas que é apenas fruto da imaginação de um gari. “Mesa redonda sexo-futebol debate!”, de Caco Galhardo, como o próprio nome diz, apresenta um esquisitíssimo debate futebolístico em que as perguntas são sobre sexo, e as respostas são as típicas de jogadores de futebol quando falam de suas partidas. O delirante “Deu-se o diabo na terra do futebol”, de Leonardo, mostra a estranha partida de futebol que o dirigente “Eununco Meganha” (baseado, obviamente, no presidente do Vasco, Eurico Miranda) marcou com o dono de uma equipe de quinta categoria para ganhar votos: corrupção, violência, e delírios de todos os tipos são os principais aspectos da HQ.
Mas a melhor de todas as histórias é “Yukio Miura”, de Zimbres, que utiliza com brilhantismo a terminologia da crítica de artes visuais para analisar a carreira de um jogador e teórico do futebol, cujo nome dá o título ao cartum, durante uma estranha década de 2050. Para que se tenha uma idéia, seguem alguns exemplos da magistral – e engraçadíssima – prosa de Zimbres: “Essa jogada está muito dura. Falta organicidade. Ninguém está pensando na superfície como um todo.” “Ah, o Garrincha, outro gênio! Ser como ele! Ser futebol, flutuar no gramado como um santo, imolado pelo pensamento cartesiano, se oferecendo em sacrifício à torcida e à arte.” “E, com esta jogada, Romário rompe definitivamente com o neo-realismo e inaugura sua fase situacionista.” “Não é isso que importa. A face feia da ordem mecânica não nos assusta. O 4-5-1 do (time de futebol) Apolo S.A. é o desenho do medo humano frente às forças incontroláveis da luz”.
(texto publicado no suplemento dominical do jornal O Estado Do Paraná em meados de 2006)
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