“Kim”, de Rudyard Kipling (Companhia Editora Nacional,
tradução de Monteiro Lobato, 299 páginas, publicado originalmente em 1901):
considerada a obra-prima do inglês Kipling, Nobel de Literatura de 1907, “Kim”
conta a história da personagem-título, um garoto órfão morando na Índia, filho
de um soldado inglês e de uma irlandesa que morreram na miséria. De esperteza e
inteligência incomuns, o garoto tem contato com um enorme número de pessoas, passando
por inúmeras aventuras. O estilo de Kipling é um pouco truncado – a história
passa de um acontecimento a outro de forma frequentemente brusca –, mas “Kim”,
pela descrição vívida que faz da vida na Índia, merece toda a fama que tem.
“Kurt Cobain and Nirvana - Updated Edition: The Complete
Illustrated History”, diversos autores (Voyageur Press, 208 páginas, publicado
originalmente em 2013): ricamente e ilustrado, o livro se concentra mais na
história da banda de Kurt Cobain do que no seu vocalista e guitarrista, e tem
detalhes muito interessantes – como textos em separado sobre cada álbum do
Nirvana e pequenos comentários sobre cada um dos cinquenta discos preferidos do
compositor de “In Bloom”. Um prato cheio para fãs e um livro tão bonito que pode
perfeitamente servir de enfeite na sala.
“Essa gente”, de Chico Buarque (Companhia das Letras, 200
páginas, publicado originalmente em 2009): Manuel Duarte é um escritor que fez
muito sucesso em seu livro de estreia, mas que está com a carreira estagnada e,
pior que isso, numa crise criativa. Com idas e vindas, “Essa gente” tem trechos
muito engraçados e outros de uma amargura sutil – principalmente quando fala da
virada à direita que o país deu nos últimos anos. Por sorte, como grande
escritor que é, em “Essa gente” Chico Buarque fugiu totalmente da literatura
puramente política e escreveu (mais) uma pequena obra-prima.
“A vida escolar de Jesus”, de J.M.Coetzee (Companhia das
Letras, tradução de José Rubens Siqueira, 227 páginas, publicado originalmente
em 2013): já escrevi aqui
sobre “A Infância de Jesus”, primeira parte deste livro: “não dá para
entender o que o grande J.M. Coetzee (Prêmio Nobel de 2003) quis dizer com esta
história (...). David tem alguma coisa a ver com Jesus Cristo? O que exatamente
ele tentou mostrar com a ilha distópica do romance, onde as pessoas se esquecem
do seu passado? Por que David e Inés são tão irritantes?” Continuo sem
entender o que J.M.Coetzee quer com esta história – nesta continuação, David vai
para uma aula de dança ao invés de estudar como as outras crianças -, mas, pelo
menos, quando comecei “A vida escolar de Jesus” eu já estava esperando ler um
livro muito estranho.
“Cat person e outras histórias”, de Kristen Roupenian (Companhia
das Letras, tradução de Ana Guadalupe, 251 páginas, publicado originalmente em 2019):
publicado na revista New Yorker em 2017, o conto que dá nome a esta coletânea –
que conta a história de uma moça que faz sexo sem vontade com um homem mais velho
com quem estava flertando - fez furor no mundo inteiro (procure por “Cat person”
na internet para saber do que estou falando). Os doze contos do livro são
extremamente bem escritos e prendem a atenção do leitor – mas a autora frequentemente
exagera nas tintas sombrias.
Marc
Renton (ou simplesmente Rents) é o sujeito de personalidade complexa: mesmo
viciado em heroína e aplicador de golpes aqui e ali, é universitário, culto, e
tem seu próprio e quase justificável senso de justiça. Begbie quer distância de
heroína e é fiel às suas amizades, mas é um psicopata violento que arrebenta
praticamente qualquer um por motivos insignificantes. Sick Boy é um viciado
almofadinha, frio, calculista e manipulador – e fã de James Bond. Já Spud é um
perdedor, um derrotado, que sustenta seu vício em heroína com pequenos golpes e
com o dinheiro Assistência Social – mas é cara legal e, somando tudo, o melhor
caráter dos quatro.
Estes amigos de Edimburgo, capital da Escócia, são os principais personagens de Trainspotting, do autor escocês Irvine Welsh, romance publicado originalmente em 1993 e que teve uma versão cinematográfica lançada em 1996 que foi um cult de enorme sucesso – e que catapultou as carreiras do diretor Danny Boyle e do ator Ewan McGregor. Pornô, lançado originalmente em 2002 (Rocco, 568 páginas, tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari) é a continuação daquela obra e conta o que aconteceu com os personagens citados acima – e mais alguns novos – cerca de uma década depois (Trainspotting se passa no final da década de 80).
Em Pornô,
praticamente ninguém mais usa heroína, só mesmo Spud e muito de vez em quando.
Isto não quer dizer, contudo, que os personagens tenham se transformado em
exemplares e responsáveis pais-de-família. Renton abriu, com sucesso, algumas
boates na capital holandesa e vive um casamento em crise. Spud agora tem um
filho pequeno e a mulher Ally; tudo estaria muito bem se ele não continuasse
totalmente perdido, sem emprego, sem ocupação e dando pequenos golpes para
arranjar algum dinheiro para drogas e bebidas. Begbie passou uma temporada na
cadeia depois de ter assassinado um sujeito e agora está à solta, mais insano,
alucinado e violento do que nunca. Sick Boy morou em Londres um bom tempo, e
agora voltou para Edimburgo, onde abriu um pub; ele não admite mais o
antigo e humilhante apelido e agora quer ser chamado pelo seu nome verdadeiro,
Simon David Williamson. Simon está mais mau-caráter e manipulador que nunca, e
é o verdadeiro personagem principal de Pornô – ao contrário de Trainspotting,
que tinha Marc Renton como protagonista.
Em Pornô, Sick Boy resolve patrocinar um filme pornográfico e está de caso com a inglesa Nikki Fuller-Smith, a única nova personagem com importância similar aos quatro já citados. Jovem, bonita, inteligente e extremamente liberada em relação ao sexo, Nikki faz massagens numa sauna para ajudar a custear seus estudos na Universidade de Edimburgo. Ela não pensa duas vezes antes de aceitar um dos papéis principais no filme que o namorado está produzindo: seu desejo é que o filme pornô lhe abra as portas para um mundo rico e glamouroso. Para ajudar na produção, Sick Boy (ou melhor, Simon) chama Marc Renton, seu antigo desafeto. Só que quem leu (ou assistiu a Trainspotting) deve se lembrar que este último fugiu de Edimburgo com o todo o dinheiro, fruto de uma grande venda de heroína e que deveria ser dividido entre os quatro amigos, mais outro personagem chamado Segundo Lugar. Rents, mais tarde, devolve apenas a parte de Spud, deixando Sick Boy, Begbie e Segundo Lugar a ver navios. Por causa deste golpe, Marc quer distância de Edimburgo. Sobretudo por medo da vingança do violento Begbie, que não achou muito legal (óbvio!) ter sido passado para trás na história da negociação da droga.
(texto publicado no Mondo Bacana em 2017; o texto sobre a continuação de "Pornô", chamado "Skagboys", foi publicado aqui.)
“Marianne” (2019) é uma série francesa de terror da Netflix com oito episódios de cerca de cinquenta minutos cada um. Ela conta a história de Emma, uma escritora de romances de terror que acaba percebendo, para seu desgosto, que os personagens de seus livros tinham correspondentes na vida real. A série é assustadora, tem belas paisagens e ótimas atuações, principalmente de Victoire Du Bois, a atriz principal. Não se impressione pelo fato de a Netflix ter cancelado a série depois da primeira temporada: Stephen King é fã, e isso diz tudo.
Belíssimas paisagens também são um destaque de “Labirinto
verde” (“Zone Blanche”), série franco-belga da TV France 2, distribuída por
aqui pela Netflix, com duas temporadas com oito episódios de cerca de 50
minutos cada uma – está
prevista uma continuação para este ano. A série conta a história de uma
pequena cidade ficcional na França, Villefrance, que tem uma quantidade de
crimes muito superior à da média nacional. Para tentar resolvê-los, a capitã
Laurène Weiss (Suliane Brahim, ótima) conta com poucos ajudantes. “Labirinto
verde”, cuja primeira temporada foi lançada em 2017, é uma série muito bem
conduzida e com alguns toques fantásticos.
“Downton Abbey” é uma série inglesa de grande sucesso lançada
entre 2010 e 2015, com seis temporadas de mais ou menos oito episódios com
cerca de uma hora cada um. Ela foi produzida pelo canal ITV
e atualmente é transmitida aqui no Brasil pela Amazon Prime. A série conta a
história dos Crawley, família nobre inglesa fictícia, entre 1912 e 1925. “Downton
Abbey” aborda temas históricos – a decadência da nobreza inglesa, o naufrágio
do Titanic, o início da mudança nos rígidos costumes da época, a Primeira
Guerra – com brilhantismo, e tem um
grande número de personagens (tanto nobres e como seus criados) muito bem
construídos e interpretados. A série mereceu todo o sucesso que fez – está previsto,
aliás, um filme sobre ela.
Comentei anteriormente
sobre o romance “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick; a série baseada nele,
da Amazon Prime, foi lançada por aqui
com o nome original, “The man in the high castle”. Ela tem quatro temporadas, lançadas
entre 2015 e 2019, cada uma com dez episódios de cerca de uma hora. A história
conta sobre um mundo paralelo em que alemães e japoneses ganharam a Segunda
Guerra Mundial e dividiram os Estados Unidos em duas partes – o leste alemão e
o oeste japonês. É interessante notar, entre outras coisas, a coerência da
série tendo em vista a ideologia dos vencedores: os americanos, vistos como
arianos pelos alemães, não sofrem preconceito e chegam a altos postos na administração
nazista, mas são considerados inferiores pelos japoneses. “The man in the high
castle”, que não terá mais continuação, é uma ótima série distópica, mas menos
assustadora do que “The handmaid’s tale”, por exemplo: afinal de contas,
sabemos que os nazistas e japoneses já perderam a guerra, mas não temos certeza
de que loucuras como as de Gilead jamais acontecerão.
O regime nazista,
comandado por Adolf Hitler na Alemanha, foi um dos mais brutais de todos os
tempos, senão o mais brutal: não só provocou a Segunda Guerra Mundial como
assassinou friamente, fora dos campos de batalha, cerca de seis milhões de
judeus, quinhentos mil ciganos e cinco milhões de pessoas de outras etnias.
Toda esta barbárie ainda chama muito a atenção dos historiadores e do público
em geral, e novos lançamentos de história e de ficção abordam diferentes
aspectos do regime nacional-socialista.
Falecido
recentemente, o historiador alemão Joachim Fest escreveu aquela que é
considerada por grande parte dos especialistas como a melhor de todas as
biografias de Adolf Hitler. O segundo volume desta obra foi relançado em 2006
(o primeiro tinha saído em 2005): Hitler - vol. 2 (Nova Fronteira, 528 páginas).
O primeiro tomo
cobria a vida de Hitler desde o seu nascimento até a posse como Chanceler
(cargo equivalente ao Primeiro-Ministro de um país parlamentarista) alemão, em 30
de janeiro de 1933. Hitler - vol. 2 inicia-se nesta data e termina com a
morte do Führer no seu bunker em Berlim, quando da derrota da Alemanha
em 1945.
Os dois volumes
desta biografia são extremamente detalhados, precisos e bem escritos, fruto de
um trabalho sério e obsessivo do historiador. Merecem totalmente o imenso
prestígio que obtiveram ao longo dos anos, desde a sua publicação na Alemanha
em 1973.
Para o leitor leigo, uma boa introdução ao modo nazista de pensar e de governar encontra-se em Itália Nazista e Alemanha Nazista (Madras, 180 páginas), escrita pelo catedrático de História Europeia Moderna da Universidade Estadual da Carolina do Norte Alexander J. De Grand. A obra faz uma comparação entre os regimes fascista da Itália e nazista da Alemanha em relação a assuntos como a marcha para o poder, os sistemas econômicos, as comunidades, a cultura, os militares, a expansão e a guerra.
Dificilmente
alguém que não tenha ficado chocado com a barbárie nazista não tenha algum dia
se perguntado como estaria hoje o mundo se o Eixo - aliança entre a Alemanha, a
Itália e o Japão - tivesse vencido a Segunda Guerra Mundial. Uma fantasia -
tétrica, como não poderia deixar de ser - neste sentido foi criada pelo
escritor de ficção científica Philip K. Dick no romance O homem do castelo
alto, publicado originalmente em 1962 e apenas agora lançado no Brasil
(Aleph, 304 páginas).
O livro mostra
como seria o início dos anos sessenta após a derrota dos Aliados. Neste
assustador mundo fictício, os japoneses governam a Costa Oeste dos Estados
Unidos e a Alemanha, a Costa Leste. Hitler está tão doente que já não tem mais
condições de governar, e o ditador do Reich agora é o antigo fiel escudeiro do
ex-Führer, Martin Bormann. Os
dirigentes nazistas (como sempre ocorrera, aliás), travam ferozes lutas
internas por nacos de poder: com Heinrich Himmler já falecido, os mais
importantes mandatários alemães são o ministro da aeronáutica e ex-vice premiê Hermann
Göring, o ministro da propaganda Joseph Goebbels, o ex-dirigente da juventude
nazista, o moderado Baldur Von Schirach, e os cruéis Arthur Seyss-Inquart e Reinhard
Heydrich – que, na ficção de Philip K. Dick, não tinha sido morto em
decorrência de um atentado em Praga perpetrado por terroristas tchecos,
conforme realmente ocorreu no ano de 1942. Na África, os nazistas promoveram um
monstruoso genocídio contra a população negra e, em todo o mundo, dão total
publicidade ao assassinato em massa de judeus nas câmaras de gás - que
continua, claro, com todo o fôlego. Os eslavos que não são escravizados ou
assassinados são mandados para regiões distantes da Sibéria. Não satisfeitos em
colonizar a Terra, os alemães mandam os primeiros seres humanos para Marte.
Ainda na parte tecnológica, os nazistas criam foguetes de linhas comerciais que
fazem o trajeto Estados Unidos-Europa em menos de uma hora.
O homem do
castelo alto se passa na
Costa Oeste dos Estados Unidos, na região de San Francisco. No romance, os
americanos são cidadãos de segunda classe, totalmente subjugados ao poder
japonês, que é bem menos agressivo que o correspondente nazista: o governo
imperial permite alguma liberdade de imprensa e jamais perseguiu judeus. Os
japoneses, além disso, admiram a cultura americana, apreciando o jazz e o
blues, e colecionam objetos fabricados nos Estados Unidos no período anterior à
Segunda Guerra Mundial.
O livro conta a história de alguns personagens - quase todos aficionados pelo milenar livro chinês de adivinhação, o I Ching - vivendo nesta Costa Oeste fictícia. O espião alemão que quer, com grande risco de vida, passar informações extremamente importantes para o governo japonês. O artesão judeu que fez operações plásticas e mudou seus documentos para esconder sua origem. A mulher problemática que namora um rapaz pretensamente italiano que ela acaba descobrindo ser um espião alemão preparado para assassinar o escritor de um romance que contava a história de um mundo em que o Eixo perdeu a guerra. O comerciante americano de objetos antigos que está sempre querendo agradar os superiores japoneses. O burocrata japonês que sofre com as políticas nazistas e com as guerras de espionagem.
O homem do
castelo alto é um livro
sombrio e melancólico, e que gruda na memória do leitor.
Se a obra de
Philip K. Dick angustia quando trata de um tempo presente que poderia ter
acontecido com a vitória alemã na Segunda Guerra Mundial, Diário de um
skinhead - um infiltrado no movimento neonazista, do jornalista espanhol
Antonio Salas (Planeta, 280 páginas) assusta ao falar do nazismo "de
verdade" nos dias atuais. O autor,
que utilizou um pseudônimo para assinar o livro por motivos óbvios, passou mais
de um ano como infiltrado entre violentos skinheads
espanhóis, sempre filmando tudo com uma câmera escondida. O risco que ele
correu nesta empreitada foi, obviamente, enorme, e o jornalista brasileiro Tim
Lopes, brutalmente assassinado por traficantes cariocas ao fazer uma reportagem
semelhante em 2002, é citado no livro do espanhol para dar uma idéia do perigo
da situação.
Para infiltrar-se na extrema-direita espanhola, Salas começou pelo maior meio de comunicação dos skinheads na atualidade: a internet. Ele demorou cerca de três meses – por segurança, sempre em lan houses - navegando por chats e sites nazistas, entrando em contato com pessoas do movimento, aprendendo sua gíria especializada e seus códigos de conduta, antes de pegar coragem e conhecer pessoalmente alguns de seus objetos de estudo. Como era de se esperar, para ser um infiltrado convincente ele rapou o cabelo, passou a se vestir como um skinhead e a defender (somente em público, claro) ideias nazistas. As muitas aventuras perigosas pelas quais Salas passou e os sentimentos – muitas vezes contraditórios e surpreendentes – que ele teve neste empreitada perigosa são narrados com grande detalhe, resultando numa leitura de grande impacto na maior parte do tempo. Entre os resultados mais importantes da investigação do jornalista estão a descoberta das íntimas ligações dos skinheads com os partidos legais de extrema-direita (que sempre negaram este contato) e com muitas torcidas organizadas do futebol espanhol – o que ajuda a explicar o recente aumento do racismo observado em arquibancadas europeias.
(textos publicados em 2006 na Revista Dominical do jornal O Estado do Paraná)
“O império de Hitler”, do britânico Mark Mazower (Companhia
das Letras, 801 páginas, tradução de Claudio Carina e Lucia Boldrini), conta o
que os alemães aprontaram em toda a Europa quando colonizaram grande parte do
continente entre 1939 e 1945. O livro mostra que a ideologia racial nazista era
mais importante que considerações práticas ou econômicas – e que isto acabou tendo
importância fundamental na derrota do regime de Hitler em 1945.
Não acho que a literatura deva defender posição política – não explicitamente, pelo menos. “A barata”, de Ian McEwan (Companhia das Letras, 104 páginas, tradução de Jório Dauster), faz exatamente isso: o livro, em que uma barata se transforma no primeiro-ministro inglês (a alusão à “Metamorfose”, de Kafka, é óbvia), é declaradamente uma denúncia contra o Brexit – como o posfácio, escrito pelo autor, deixa muito claro. Mas o livro é muito divertido e, como sempre no caso do grande escritor inglês, é extremamente bem escrito.
Fiquei sabendo depois de ter comprado o livro que “Blade Runner”, de Philip K Dick (Aleph, 283 páginas, tradução de Ronaldo Bressane) se chamava inicialmente “Androides sonham com ovelhas elétricas”. Assisti ao filme baseado no livro muitos anos atrás, e lembro que gostei muito. O romance - uma ficção científica que conta a história de um caçador de androides que estavam causando perigo às pessoas - não me impressionou tanto (creio que se ele tivesse metade do tamanho seria melhor). De todo modo, as discussões que o livro desperta - sobre consciência, empatia e sobre o que, afinal, nos faz humanos – são muito interessantes.
Aparentemente, “Não me abandone jamais”, do escritor Prêmio Nobel de Literatura de 2017, o inglês Kazuo Ishiguro (Companhia das Letras, 343 páginas, tradução de Beth Vieira), conta a história de uma escola na Inglaterra, com alunos vivendo as situações normais da infância/adolescência: o bullying, a amizade, a descoberta do sexo. Mas não é bem isso. Melhor não contar mais nada, mas vou dar uma dica: se você quiser ler o livro, recomendo que nem leia as orelhas do romance, uma obra-prima assustadora publicada originalmente em 2005.
O Prêmio Nobel de Literatura de 2001, o trinitário-britânico de origem indiana V.S.Naipaul (de quem, aliás, li três ótimos livros, “Os mímicos”, “Uma casa para o sr. Biswas” e “Guerrilheiros”) causou polêmica em 2011 ao criticar a literatura feminina, devido à "sensibilidade e estreita visão de mundo das mulheres". Isso é uma bobagem tão grande que nem merece refutação.
Mas é outra afirmação do escritor, na mesma ocasião, que me faz citá-lo aqui: ele acrescentou ainda que lia uma obra e depois de dois parágrafos já sabia dizer se o livro tinha sido escrito por uma mulher ou não. Li recentemente três ótimos romances escritos por mulheres, e fico me perguntando se eu saberia se tinham sido escritos por membros do sexo feminino caso eu não soubesse o nome do autor(a).
Sou fascinado pela distopia da república fictícia de Gilead, criada pela escritora canadense Margaret Atwood no romance “O conto da Aia” e que é a origem da excepcional série “Handmaid’s Tale”, ambos já comentados por aqui. Em 2019 ela lançou uma continuação de sua saga, chamada “Os testamentos” (Rocco, 448 páginas, tradução de Simone Campos). O livro é contado, de forma alternada, por três personagens femininas, tanto a favor quanto contra a opressora República de Gilead. O livro é excelente e com conflitos muito bem resolvidos, mas eu esperava um pouco mais. Coisa de fã.
Já “Largo pétalo del mar”, da chilena Isabel Allende (Sudamericana, 2019 – já existe uma tradução brasileira, a cargo da Bertrand Brasil) é uma verdadeira epopeia. O romance contando a história do casal espanhol (um casal bem diferente, diga-se, mas prefiro não dar mais detalhes) Víctor e Roser Dalmau desde a fuga da Guerra Civil Espanhol até seu final da vida no Chile – passando por uma fuga deste país quando do golpe de estado do ditador Augusto Pinochet. O livro parece esbarrar na pieguice aqui e ali, e os personagens principais são inesquecíveis.
Finalmente, “A época da inocência”, escrita pela americana Edith Wharton em 1920 (Penguin-Companhia, 416 páginas, tradução de Hildegard Feist), conta a história de amor mal-resolvido entre o rico advogado Newland Archer e a condessa Olenska, prima de sua futura esposa May Welland. Os preconceitos e costumes dos ricos americanos entre final do sec. XIX e o início do sec. XX são descritos com precisão cirúrgica e desapiedada por esta extraordinária Edith Wharton. Uma obra-prima.
Voltando à pergunta inicial: eu saberia se algum dos livros foi escrito por mulher, caso eu não soubesse o nome das autoras? Com certeza não. V.S. Naipaul era um bobão mesmo.
Fyodor é um exilado russo em Berlim na primeira metade do
século XX, e está tentando iniciar sua carreira literária. Lá ele conhece
outros fugitivos da Revolução Russa e passa os dias entre os livros, algumas
aulas particulares que ministra, e andanças pela cidade. O personagem principal
de “O dom”, de Vladimir Nabokov (Alfaguara, 384 páginas) tem bastante em comum
com o autor, também exilado russo que viveu em Berlim.
Composto por cinco longos capítulos, o romance, entre outras
técnicas, usa metaficção – conforme notado por Paulo Nogueira em seu texto
sobre o livro no Estadão, “a própria primeira frase é interrompida para a
citação de um crítico a respeito de... primeiras frases” – alternância entre
primeira e terceira pessoas na narração – e o leitor que se vire para saber o
que está rolando. O quarto capítulo é composto por uma biografia meio debochada,
escrita por Fyodor, de Nikolay Chernishevski, o autor favorito de Lênin.
Não acontece muita coisa em “O dom”, e boa parte da narrativa é composta por comentários sobre personagens, autores, romances, poesias e lembranças do próprio Fyodor (impressiona a história do pai dele, que era um entomologista muito famoso na Rússia de antes da Revolução - importante lembrar que o próprio Nabokov era entomologista profissional). O tipo de técnica utilizada faz com que às vezes seja meio difícil saber o que exatamente está ocorrendo; mesmo assim, o livro não é de leitura muito complexa.
Nabokov considerava “O dom” como seu melhor livro, e hoje a crítica o coloca no mesmo nível de seus romances mais importantes, como “Lolita” e “Fogo Pálido” (o meu preferido dele, aliás).
Quanto a mim, a cada novo livro fico mais impressionado com a incrível criatividade de Nabokov: “O dom” não se parece em nada com os demais romances dele que já li – uns muito diferentes dos outros, aliás.
O universo do filme noir é tipicamente urbano e contemporâneo: de maneira geral, protagonistas de caráter duvidoso, bandidos, mulheres fatais, policiais, etc., são personagens vivendo em grandes cidades - seja em becos escuros, lanchonetes, palacetes ou residências modestas - nos anos 40 e 50 do século XX (época em que os filmes foram realizados). Porém, alguns filmes no estilo fogem deste padrão. O presente texto trata de quatro filmes cujas histórias transcorrem em locais diferentes - dois em presídios, um na fronteira entre os Estados Unidos e México e outro numa pequena cidade - e outro no século XIX. São uma mostra de uma rara flexibilidade neste estilo cinematográfico fascinante - e um tanto engessado. Todos os filmes citados aqui constam da fascinante coleção de DVDs “Filme Noir”, da Versátil .
“À margem da vida” (“Caged”, 1950, 96 min), de John Cromwell, se passa num presídio feminino, em que uma jovem viúva de 19 anos é presa por cumplicidade num pequeno assalto e, lá, vai ficando cada vez mais amargurada com a falta de perspectivas de melhorar de vida quando estiver livre. O filme é extremamente bem conduzido, concorreu a quatro Oscar e Eleanor Parker - atriz que faz jovem viúva - acabou vencendo o prêmio de melhor atriz.
“Rebelião no presídio” (“Riot in cell block 11”, 1954, 80 min), de Don Siegel, se passa num presídio masculino onde ocorre uma rebelião. O filme é de denúncia contra as péssimas condições dos presos - alguém já ouviu falar nisso? -, mas perdeu muito de sua força.
“Mercado humano” (“Border incident”, 1949, 96 min), de Anthony Mann, conta a história de policiais mexicanos e americanos que vão à fronteira entre os Estados Unidos e México tentar desbaratar uma quadrilha que explora o tráfico de mexicanos. Grande filme, com uma fotografia espetacular de John Alton.
Em “Ao cair da noite” (“Moonrise”, 1948, 90 min), de Frank Borzage, um rapaz de uma cidade do interior que sempre sofreu bullying por ter um pai enforcado por assassinato acaba matando sem intenção, numa briga, o maior dos valentões da cidadezinha. O restante do filme mostra os problemas do assassino com sua consciência - e por isso a Versátil, na contracapa, acaba chamando o filme de “noir psicológico”. O filme definitivamente não consegue criar o clima que queria - será pelo fato de o diretor Frank Borzage não gostar do gênero noir, como mostrado nos extras do volume 11 da coleção da Versátil? Apostaria nisso.
Finalmente, “Conspiração” (“The tall target”, 1951, 77 min), de Anthony Mann, mostra um detetive que embarca num trem para tentar salvar o presidente Abraham Lincoln, que será vítima de um atentado. O melhor dos filmes citados aqui.
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