A tecla repeat 1 raramente é pressionada em meus cd players. Não costumo ouvir uma mesma música repetidas vezes, não mesmo. Até Boxers, de Morrissey, a minha música preferida, reluto em ouvir mais de uma vez seguida. Mas existe um lied chamado “Auf den Tod einer Nachtigall” (Sobre a morte de um rouxinol), composta por Franz Schubert que simplesmente não canso de ouvir. Meu recorde é, sei lá, vinte vezes seguidas. Não pretendo ouvir outra música enquanto escrevo esta página do meu diário.
Este lied tem uma história bem interessante: Schubert compôs uma série de lieder (plural alemão de lied) sobre poemas de Ludwig Hölty em 1815, mas interrompeu tudo para começar a compor sua Terceira Sinfonia. Tendo concluído esta obra, Schubert voltou ao poeta para escrever “Auf den Tod einer Nachtigall”. Por algum motivo desconhecido, Schubert deixou a penúltima linha da voz sem preencher, assim como as últimas três linhas do piano, de modo que a peça (como muitas outras que ele compôs sobre poemas de Hölty) acabou não tendo sido publicada por estar incompleta. Em 1970 (mais de um século e meio mais tarde, portanto) Reinhard van Hoorickx (bendito seja) completou a parte que faltava. Esta canção foi gravada pela primeira vez no corpo da obra completa de Schubert no cd Hyperion Schubert Edition – 10, com Martyn Hill, tenor, e Graham Johnson, piano, que é a versão comentada aqui. Vale ressaltar ainda que os intérpretes fizeram pequenas mudanças na harmonia da versão de Hoorickx.
O poema de Hölty é um lamento sobre a morte de um rouxinol, e diz mais ou menos o seguinte: o rouxinol, o cantor, “cujas notas ecoavam na alma” do poeta enquanto ele “deitava em meio as flores, não existia mais”. Enquanto vivia, das “profundezas de sua garganta” o rouxinol “lançava suas notas de prata”. O “eco ressoava suavemente nas cavernas”. Suas melodias rústicas faziam as donzelas “dançarem no brilho do escurecer”.
O poema não é assim tão extraordinário, mas o efeito visual é muito bom – dá pra sentir exatamente o que Hölty quis mostrar.
Agora, a transcrição para a música é simplesmente indescritível. É um lied em tom menor, que não chega a ser triste por ser extremamente calmo. O poema tem duas estrofes de oito versos cada um, e o oitavo verso é repetido, perfazendo duas estrofes de nove versos no lied.
Os quatro primeiros versos de cada estrofe têm uma melodia quase parada, lenta demais e em suspensão. Nós ficamos esperando o que vai acontecer. Os versos 5 a 7, então, vêm numa progressão, o ritmo e a tensão aumentam – mas não muito, pois tudo é muito tranquilo. No final do verso 7 esta “tensão está no máximo, mas, logo em seguida, no oitavo verso, há uma diminuição de ritmo na voz – o piano continua progredindo. No nono verso (repetição da letra do oitavo) voz e piano se unem e a estrofe vai terminando aos poucos, triste, como se fosse por falta de energia vital – o efeito é inesperado, belíssimo e devastador.
Eu tenho minhas dúvidas de que se o lied fosse cantado em outro idioma, que não o alemão, o efeito seria assim tão bonito. O quinto e o sétimo versos da primeira estrofe (… Seele hallte / (…) / …Abendgolde wallte) e da segunda (… Gesang’ und Fendschalmeien / (…) / … ihre Reihen) têm uma sonoridade que praticamente só pode ser obtida neste idioma. Ao contrário das cantatas de Bach, em que mal reconhecemos a sonoridade da língua dada a magnificência da melodia, nos lieder de Schubert, muito mais intimistas (quase conversas ou uma canções de ninar), a linda sonoridade do alemão aparece em todo o seu esplendor.
(texto escrito em 26 de julho de 2001)
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