Já nem lembro direito há quanto tempo assisti Limite, de Mário Peixoto, pela primeira vez. Mas lembro que saí de lá com cara de trouxa. Assim como tinha saído da Cinemateca tantas vezes com cara de trouxa, saí da sessão, mais uma vez, com cara de trouxa. Eu acho que tinha assistido uma documentário sobre este filme muitos anos antes ainda, muitos mesmo. Parece que o documentário falava maravilhas do filme, e do ritmo do filme. Ritmo? Que ritmo? Em Limite não acontecia nada!
Bem, hoje Limite é meu filme preferido (ou quase isso), certamente o filme que vi mais vezes. Só para escrever este texto vi mais uma, com grande prazer. Aquela introdução foi só pra desanimar mesmo. Assim como outras coisas na vida, assistir Limite é difícil na primeira vez.
Então vamos ao lado bom do filme: já na primeira vez que assisti eu ficara impressionado com a sua cena inicial. Eu sabia que era um filme mudo brasileiro, aquela coisa toda (na verdade, Mário Peixoto tinha 22 anos em 1931, quando realizou Limite, e faleceu em 1992 sem ter completado mais nenhum filme), mas nada tinha me preparado para aquilo. Uma mulher olhando fixamente para a câmera, com duas mãos algemadas bem em frente ao rosto. A imagem me impressiona até hoje.
Bem, antes de ver Limite pela segunda vez, eu li num prospecto um papelzinho que explicava o filme, mais ou menos como segue. Depois daquela cena inicial impressionante, aparecem os três personagens (Mulher n. 1, Mulher n. 2, e Homem n. 1) num barco à deriva. O filme é a história contada por cada um deles. São três histórias de fugas (a fugitiva da prisão, a mulher que fugiu do marido bêbado, o homem que foge da mulher tuberculosa) e que se encontram, sabe-se lá como, neste barco. No final, novamente no barco, os três estão completamente sem mantimentos, e o Homem n.1 tenta pegar um barril que eles veem no mar, mas não consegue. Vem uma tempestade, e o barco afunda – apenas a Mulher n.1 sobrevive, agarrada a um destroço…
O que é notável no filme, além da beleza, melancolia e poesia das imagens (o filme é todo filmado na Angra dos Reis do começo do século, uma mistura de natureza exuberante e construções históricas – isto sem falar na maravilha que é o mar filmado por Edgar Brazil) e como a história é contada. Para mostrar que a personagem quer se suicidar, a câmera roda como se fosse louca; para contar um encontro amoroso, só mostradas paisagens idílicas; lá pelas tantas, a câmera, que seguia uma personagem, a perde e começa a procurá-la, e a acha – ela estava sentada, pois tinha desistido temporariamente de caminhar, abatida pelo cansaço e desânimo. A cada vez que vejo o filme eu saco uma nova metáfora, um novo detalhezinho legal.
É pena que o Mário Peixoto fosse tão esquisito. Depois de Limite, praticamente fechou as portas para a criação de novos filmes, dado o seu temperamento difícil e as exigências descabidas que fazia para começar novas filmagens. Com o seu enorme romance “O Inútil de Cada Um”, que até hoje não sei se foi todo publicado ou mesmo terminado, ele pretendia fazer nas letras a mesma revolução que fez no cinema… e não conseguiu. É impossível ler mais do que três páginas daquele romance (eu comprei o primeiro volume, publicado pela Record). Graças ao inestimável auxílio humano e financeiro do grande cineasta Walter Salles Jr., Mário Peixoto, que estava falido após gastar toda a fortuna da família (ele nunca teve um emprego “de verdade”), acabou tendo um final de vida com um pouco de dignidade. Além de tudo isto, ele era, quase que com certeza, um homossexual reprimido, o que provavelmente aumentou sua complicação interior.
Limite é um filme profundamente melancólico (Mário Peixoto costumava dizer que o filme era sobre as limitações humanas – ele dizia que a gente ouve errado o relógio: “o relógio não diz “mais um, mais um” e sim “menos um, menos um”) e sua vida também é uma vida de fracassos. Mas pensando bem, imagina se o Mário Peixoto termina a vida rico, envolvido em um escândalo da Embrafilme?
(Texto escrito em 2001)
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