Quem lê algum romance de autores de língua inglesa como Philip Roth, Ian McEwan, Jonathan Franzen, David Foster Wallace, Irvine Welch ou Nick Hornby nota, além da clareza do estilo que caracteriza suas obras, o cuidado com a trama – normalmente ágil e bem construída. Por outro lado, o que me chocou a partir do primeiro livro do francês J.M.G. Le Clézio que li (um de meus autores preferidos, é preciso que se diga) é que nas suas obras parece não haver trama: os acontecimentos vão surgindo de maneira aparentemente aleatória. Seus livros têm um ritmo lento e reflexivo – abrindo a brecha para que alguns críticos simplesmente achem-no “chato”.
Eu já tinha tido a impressão de ter percebido a influência do estilo reflexivo de Antoine de Saint-Exupéry em J.M.G. Le Clézio na primeira vez que li “O Pequeno Príncipe” em francês – impressão esta que se intensificou com a leitura deste pequeno e extraordinário romance que é “Voo noturno”.
O livro conta a história de Rivière, o comandante da serviço postal da América do Sul, companhia cuja responsabilidade era enviar a carga postal vinda da Europa para a Argentina, o Brasil, o Uruguai e o Chile. Numa época de tecnologia precária (“Voo noturno” foi escrito em 1931) era extremamente arriscado enviar os aviões de serviço postal madrugada adentro, e era exatamente esta nova rotina de horário de voos que Rivière tentava implantar.
“Voo noturno” é um livro lento e reflexivo (à maneira daqueles que J.M.G. Le Clézio viria a escrever posteriormente). Ele se concentra principalmente na maneira de Rivière atuar: por exemplo, para o comandante sua própria rigidez extrema (não tolerava nem mesmo os atrasos não causados pelos pilotos) era uma maneira de fazer com que todos se unissem no esforço de fazer o melhor possível naquelas circunstâncias. É fascinante também o modo como Saint-Exupéry descreve as atitudes e pensamentos de Rivière (baseado em Didier Daurat, uma figura “mística” do Serviço Postal da época) durante uma crise causada por um acidente em um dos aviões de sua companhia.
O belga Georges Simenon é outro escritor de língua francesa com estilo reflexivo: em “O revólver de Maigret” o famoso detetive criado pelo escritor tenta resolver um crime em que as pistas (um rapaz visita a sua casa e rouba seu revólver, um cadáver é encontrado numa mala no guarda-volumes da estação Gare du Nord) parecem não guardar relação umas com as outras. Como sempre, a solução do crime é o menos importante: nos livros com o inspetor Maigret, o que conta é a maneira como a história vai sendo descortinada e a descrição da evolução do raciocínio do investigador, muitas vezes às cegas, mas sempre com uma grande humanidade e condescendência para com a fraqueza de seus investigados.
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