Considerado por muitos o último grande romance do Século 20, Graça Infinita, de David Foster Wallace, foi lançado recentemente no Brasil pela Companhia da Letras, com brilhante tradução de Caetano Galindo. Publicado originalmente em 1996, o livro é um assombro. A começar pelo tamanho. São 1144 páginas mas poderia haver muitas mais, caso a editora o não o lançasse num formato razoavelmente grande (16 x 23 cm) e letra pequena – imagino que num formato “normal” (como os da Penguin-Companhia das Letras, por exemplo) ele chegaria facilmente às 2 mil páginas. O romance é de tal riqueza temática e complexidade que é muito difícil responder rapidamente à pergunta singela (que já me foi dirigida, aliás): sobre o que, afinal, trata Graça Infinita?
O personagem principal do livro é provavelmente Hal Incandenza. Estudante do segundo grau, ele é ao mesmo tempo superdotado intelectualmente (é impressionante a quantidade de assuntos que conhece com enorme profundidade!), viciado em maconha e o segundo melhor tenista da ATE, a academia de tênis de altíssimo desempenho da qual participa. O melhor tenista, aliás, o frio e preciso John Wayne, tem um rumoroso relacionamento com a mãe de Hal, Avril Incandenza. O pai, James O. Incandenza, era um especialista em ótica e lentes que vira diretor de cinema (ou de “cartuxos de entretenimento”, na realidade paralela em que se passa Graça Infinita) de vanguarda, e que acaba se matando quando estoura a cabeça no forno de micro-ondas. Um dos muitos momentos emocionantes do livro é justamente quando Hal descreve a morte do pai para o irmão mais velho, Orin, um tenista de médio para baixo desempenho que acaba se transformando meio por acaso num excepcional punter (o jogador que chuta a bola no futebol americano). Além de Orin, Hal tem ainda outro irmão, Mario, que possui graves deficiências físicas e é tratado com grande carinho pelos colegas de escola e pela família.
Outro núcleo de Graça Infinita é o centro de Alcoólicos Anônimos (AA) de Boston, cidade na qual (contando o entorno) ocorre praticamente toda a trama do livro. O personagem principal deste núcleo é Dan Gately, um homem gigantesco que fazia trambiques para conseguir manter seu vício em drogas sintéticas e que, já “limpo” depois de muitos anos, ocupa uma posição de liderança dentro do AA – por isso acaba se machucando gravemente ao tentar defender um interno com graves perturbações mentais em uma briga. Estes dois núcleos se conectam, por exemplo, na personagem Joelle van Dyne, que é ao mesmo tempo interna do AA, amante de Orin e atriz dos filmes de James O. Incandenza. Belíssima, Joelle teve um acidente grave que desfigurou sua face, o que a faz utilizar permanentemente um véu sobre o rosto. Um dos filmes que ela tinha feito com o pai de Hal Incandenza é tão espetacularmente maravilhoso que vicia e deixa mentalmente inutilizado instantaneamente quem o assiste, causando um problema de saúde pública.
Um dos muitos charmes de Graça Infinita é que ele se passa num futuro próximo, mas em uma realidade paralela. No livro, Estados Unidos, Canadá e México se juntaram, formando a ONAN (Organização das Nações da América do Norte)! Contra esta organização, vários grupos dissidentes canadenses lutam com maior ou menor grau de violência. Os de maior destaque no livro são violentíssimos separatistas de cadeira de rodas. Nesta realidade paralela, os anos não são mais contados em sequência numérica, mas patrocinados (“Ano da Fralda Geriátrica Depend”, “Ano dos Laticínios do Coração da América”, “Ano do Frango-Maravilha Perdue” e por aí vai).
Tudo o que se escrever sobre Graça Infinita numa resenha vai parecer pouco. A escrita obsessiva de David Foster Wallace (que se matou em 2008, depois de ter sofrido por depressão durante muitos anos) detalha com grande profundidade e argúcia temas e histórias inesperados: seja o dia-a-dia nos Alcoólicos Anônimos ou na academia de tênis ATE; seja a espionagem e contraespionagem entre separatistas e governistas da ONAN; seja um jogo do tipo War, praticado nas quadras de tênis da ATE e tão complexo que necessita de matemática superior para ser jogado; seja a descrição minuciosa de dezenas de filmes de James O. Incandenza (que só existem, obviamente, na ficção de Graça Infinita); seja na descrição científica de drogas legais e ilegais e de seu uso. Além disso, o romance tem muitos trechos profundamente engraçados ou emocionantes.
Li recentemente que alguns críticos são da opinião de que um editor mais exigente deveria ter cortado boa parte de Graça Infinita (além do exposto acima, acrescente-se que só de notas o livro tem mais de 130 páginas – o que atrapalha a leitura contínua do livro, diga-se de passagem!). De minha parte, discordo. Por mais gigantesco que seja o livro, nada parece sobrar. O número enorme de assuntos, descrições e detalhes são a própria essência deste romance excepcional e que se lê com espanto e prazer.
(texto publicado originalmente no Mondo Bacana)
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Cara, acho que você deu muitos spoilers nesse seu resumo. Não precisava falar do acidente de ácido nem da relação de JW com a Avril, que são contados muito pro final.
Ademais, concordo com tudo que escreveu; apenas faltou esclarecer que é um livro NÃO-LINEAR: o tempo e espaço vão e voltam, algumas pessoas podem se intimidar com isso.
Fiz um vídeo no YouTube onde explico algumas lacunas na trama, cheque lá!
“Graça Infinta: Explicando o Final”
Abração.