O Paradoxo sobre o Comediante e Gosto Musical
Filosofia

O Paradoxo sobre o Comediante e Gosto Musical

11 de dezembro de 2015 0

O Paradoxo sobre o Comediante é considerado o trabalho de Denis Diderot que tem mais sobrevivência ativa nos dias de hoje. A idéia que o ensaio defende é realmente  paradoxal: o ator (ou o comediante da comédia clássica – não confundir com os humoristas da televisão), deve ter uma grande penetração psicológica mas nenhuma sensibilidade, e deve ser perito na arte de imitar todos os tipos de caráteres e papéis. Se o comediante fosse sensível, lhe seria permitido atuar duas vezes um mesmo papel com o mesmo calor e o mesmo sucesso?, pergunta o filósofo. Bastante caloroso na primeira apresentação, continua Diderot, ele estaria extenuado  e frio como um mármore na terceira. Ao passo que o imitador atento e discípulo atento da natureza, na primeira vez que se apresentar no palco sob o nome de Augusto, de Cina, de Orosmano, de Agamenon, de Maomé, copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos, e observador contínuo de nossas sensações, sua interpretação, longe de enfraquecer-se, se fortalecerá com novas reflexões que terá recolhido; ele se exaltará ou se moderará, e com isto você vai ficar cada vez mais satisfeito. Já os comediantes, na vida real, pelo fato de não serem mais que imitadores, quando não são bufões, são polidos, cáusticos e frios, faustosos, dissipados, dissipadores interessados, mais impressionados por nossos ridículos que tocados por nossos males; têm um espírito bastante sereno ante o espetáculo de um acontecimento lastimável, ou ante o relato de uma aventura patética; são isolados, vagabundos, à mercê dos grandes; têm poucos modos e nenhum amigo.

Eu confesso que inicialmente não gostei desta tese de Diderot. Afinal de contas, uma das poucas coisas em comum em grande parte das músicas que eu gosto (apesar deste ensaio ter como objeto o teatro, foi-me difícil não pensar em música enquanto o lia) é algo impalpável e difícil de explicar: a alma, o sentimento do intérprete. Por razões absolutamente particulares, eu adoro Agnaldo Timóteo e não gosto mais de Bryan Ferry: enquanto que o primeiro me passa sentimento e verdade, o segundo não consegue me passar nada, nem dor, nem tristeza, nem alegria – apenas a vontade defazer um tipo. Desta forma, diferentemente do grande (sem ironia) Jardel Sebba – que aqui confessa que a elegância é um pressuposto imprescindível para que ele goste de uma música – eu normalmente reconheço (eu sei que isto parece brega) um sentimento verdadeiro na música que gosto de ouvir. Ser elegante ou não, para mim, é absoluta e completamente indiferente.

Mas, voltando ao Paradoxo, é-me forçoso reconhecer que é difícil combater um gênio. Lá pelas tantas, Diderot cita um trecho de Racine (leia o trecho aqui) para comentar que a sua linguagem não é a de Henrique IV. É a de Homero, é a de Racine, é a da poesia; é falada por bocas poéticas com um tom poético. Reflita um pouco sobre o que se chama no teatro “ser verdadeiro”, continua o filósofo, complementando: será mostrar as coisas como elas são na natureza? De forma nenhuma. O verdadeiro neste sentido seria apenas o comum. O que é pois verdadeiro no palco? É a conformidade das ações, dos discursos, da figura, da voz, do movimento, do gesto, com o modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante. Eis o maravilhoso. Esse modelo não influi somente no tom; modifica até o passo, até a postura. Então, segundo Diderot, o teatro trata de “um outro mundo”, um mundo “ideal”.

Se este argumento já era bastante forte para aumentar o meu desconforto inicial, um argumento final do filósofo foi decisivo para me convencer: no teatro, com aquilo que chamamos sensibilidade, alma, entranhas, expressamos bem uma ou duas tiradas – exatamente aquelas poucas em que o personagem expressa um sentimendo igual ao que o ator sensível costuma ter – e falhamos no resto; é que abranger toda a extensão de um grande papel, dispor nele os claros e escuros, o doce e o fraco, mostrar-se igual nas passagens tranqüilas e nas passagens agitadas, ser variado nos pormenores, uno e harmonioso no conjunto, e constituir um sistema firme de declamação que vá ao ponto de salvar os repentes do poeta, é obra de cabeça fria, de um profundo discernimento, de um gosto refinado, de um estudo penoso, de uma longa experiência e de uma tenacidade de memória não muito comum. Em outras palavras, um bom ator tem uma atuação constante, seja lá o caráter e o sentimento do personagem, enquanto que um ator sensível só tem boas cenas quando o personagem faz algo igual ao que ele faria.

Assim, parece claro que a sensibilidade não parece essencial no teatro (boa parte dos argumentos acima vale também para o cinema, embora este trate normalmente de acontecimentos comuns, e nãoideais como na comédia clássica). Boa parte da técnica que os atores utilizam, como o famoso mergulhar no personagem (muitas vezes citado em entrevistas), não deixa de ser, de certa forma, fingimento. Por outro lado, muitas vezes os atores declaram buscar neles mesmos a inspiração para alguma cena mais difícil – o que comprova a dificuldade que existe, muitas vezes, em classificar algo tão impalpável quanto um sentimento.

E a música, como fica nisto? O sentimento de um intérprete musical é ou não é importante, se comparado ao de um ator? Existem algumas maneiras de responder isto. Por um lado, parece claro que grandes compositores e intérpretes conseguiram criar um universo todo próprio, de modo que seus próprios sentimentos conseguissem aflorar e fazer a sua arte soar mais verdadeira. Alguns compositores (p.ex. John Lennon, Lou Reed, Eminem) parecem se basear principalmente em suas próprias experiências para compor – deste modo, o sentimento que eles passam aos ouvintes parece autêntico. Por outro lado, grandes intérpretes não compositores, como Elvis Presley, João Gilberto e Frank Sinatra, seriam atores fingidores no modo do comediante de Diderot? Pode-se responder que, pelo menos nestes três casos, estes grandes cantores escolhiam suas próprias músicas – logo deviam cantar o que combinasse melhor com suas experiências. Mas esta resposta continua insatisfatória, ainda mais se eu acresentar outra pergunta: numa longa turnê, um intérprete reconhecidamente verdadeiro em seus sentimentos sentirá a música sempre da mesma forma, ou fingirá um pouco para que cumpra seus compromissos (e pague suas contas)? Outra pergunta difícil de ser respondida.

Estou chegando ao final deste texto, infelizmente, sem uma resposta definitiva. Vou tentar, portanto, responder de um modo totalmente particular: eu posso dizer que, para mim, o sentimento do intérprete continua tão importante como sempre foi. Por outro lado, eu não posso fazer absolutamente nada – isto parece óbvio – se o cantor fingir tão bem que consiga me convencer que está verdadeiramente sentindo aquilo que canta.

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(*) (trad. de J. Guinsbourg): Sim, é Henrique, é teu Rei que te desperta. / Vem, reconhece a voz que chega ao teu ouvido (..) / Sois vós mesmo, senhor! Que importante necessidade / Vos fez preceder a aurora de tão longe? / Apenas uma fraca luz vos ilumina e me guia, / Vossos olhos só e os meus estão abertos (em francês fica impressionante: Oui, c’est Henri, c’est ton roi qui t’éveille, / Viens, reconnais la voix qui frappe ton oreille… / (…) C’est vous-même, seigneur! Quel important besoin / Vous a fait devancer l’aurore de si loin? / A peine un faible jour vous éclaire et me guide, / Vos yeux seuls et les miens sont ouverts).

(texto escrito em 2003)

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