Dois lados de dois LPs
Música

Dois lados de dois LPs

8 de dezembro de 2015 0

Sua orquestra requer flauta, oboé, clarinete, fagote, trompete, trompa, ou, como disse o próprio autor, “uma orquestra equilibrada, com recursos de timbres que não se sobrepõe à sonoridade do solista”.

É assim que o Guia do Ouvinte do fascículo Villa-Lobos da Coleção Gigantes da Música, da Abril, se refere à orquestração do Concerto para Violão e Pequena Orquestra. A peça, belíssima, tem três movimentos (Allegro preciso, andantino e andante/cadenza e allegro ma non troppo) e sua duração é de pouco mais que dezessete minutos. O formato geral do concerto é de uma fantasia livre, onde uns poucos temas aparecem nos três movimentos. Outros completamente diferentes aparecem aqui e ali durante a obra – alguns com um efeito extraordinário, como um tema melancólico que, segundo o próprio Villa-Lobos, evocava a atmosfera melódica de certas canções populares do nordeste brasileiro. Esta grande liberdade de expressão é o motivo pelo qual Villa-Lobos queria batizar este Concerto de Fantasia – no que foi demovido pelo grande violonista Andrès Segovia.

Bastante diferente é a orquestração do lado A do LP A Dança das Cabeças, de Egberto Gismonti: ele o é responsável pelo violão de 8 cordas, pela flauta e pela voz, enquanto que o percussionista Naná Vasconcelos responde pela percussão, pelo berimbau, pelo corpo e pela voz (no lado B, que não será comentado aqui, Gismonti toca piano). Este lado A, apesar de ter o nome de seis faixas indicadas na contracapa, poderia ser tratado como uma única música, já que os seus 25min15s são tocados sem nenhuma pausa, e não há nenhuma ranhura no LP indicando o fim de uma faixa e o início da outra – seria algo, portanto, também como uma grande Fantasia. Existe sempre uma transição no final de cada música, onde as características da faixa anterior vão desaparecendo aos poucos para dar lugar àquelas da nova.

 A primeira música do lado A do LP Dança das Cabeças chama-se Quarto Mundo n.1 e inicia-se com um trinar de passarinhos – cortesia da percussão Naná Vasconcelos – que logo se mistura com uma flauta longínqua e de sonoridade oriental, parecendo um amanhecer no campo. A “faixa” seguinte,Dança das Cabeças –  tema de algum programa na TV Cultura há alguns anos – é frenética, repetitiva e com fortes características populares brasileiras (ressaltadas pelo berimbau de Naná Vasconcelos). Nesta “faixa” tanto Gismonti ao violão (que ele só vai largar na última faixa do lado A) quanto Naná Vasconcelos demostram uma técnica apuradíssima, com resultados extraordinários (virtuosismo nem sempre é sinônimo de chatice). A seguinte,Águas Luminosas, composta por um certo D.Bressane, tem uma melodia lenta, bela e melancólica. Pouco depois inicia Celebração de Núpcias, uma espécie de variação do tema anterior. Tanto repetitiva (em seus clímax seguidos) quanto profunda, provavelmente Celebração de Núpcias seja o ponto mais alto deste lado A. A “faixa” seguinte, Porta Encantada, é uma espécie de radicalização da anterior: o que era repetitivo transforma-se em caótico, e o que era caótico transforma-se em um samba inseperado e desordenado. Quando esta última acaba, Quarto Mundo n.2 vem com a flauta de Gismonti tocando o mesmo tema de Quarto Mundo n.1, a primeira do lado A, numa mostra que Gismonti pensou mesmo neste lado do LP como se fosse uma só música.

Estas duas obras admiráveis têm em comum muitos aspectos. Como semelhança superficial pode-se citar a duração (ambas ocupam um lado inteiro de um LP), a utilização do violão como instrumento principal, o fato de serem eminentemente instrumentais (no lado A de Egberto Gismonti, a voz é utilizada apenas como instrumento), e, por último mas não menos importante, ambas são obras de compositores brasileiros que utilizam elementos nacionais (alguns deles citados acima) para criar obras profundamente sofisticadas. Mas a real grandeza destas duas peças reside em sua semelhança mais profunda – eu me arriscaria a dizer que a alma delas é praticamente a mesma. Tanto o lado A de Dança das Cabeças, de Egberto Gismonti, quanto o Concerto para violão e pequena orquestra, de Villa-Lobos, têm uma beleza profundamente melancólica, que remonta a um Brasil antigo – ou rural – distante e triste. Dada a profunda brasilidade e, ao mesmo tempo, pungência das duas obras, é de se perguntar se, despidas do folclore simplório de “samba, suor e cerveja”, ambas não captaram um aspecto pouco explorado do estado de espírito brasileiro, melancólico e um tanto desesperançado – resultado  tanto da herança portuguesa (vide o fado) quanto da tristeza de um povo sofrido.

(texto escrito em 2003)

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