Até pelo fato de o húngaro ser um raro idioma ocidental de origem não-indoeuropeia, ele é tão difícil de aprender que é considerado o “único idioma que o diabo respeita”. Possivelmente é a complexidade da língua que fascina o ghost-writer (segundo a Wikipedia, é a pessoa que, tendo escrito uma obra ou texto, não recebe os créditos de autoria: estes ficam com aquele que o contrata ou compra o trabalho) José Costa. E que ghost-writer! O personagem principal de “Budapeste”, romance de Chico Buarque, escreve “monografias e dissertações, provas de medicina, petições de advogados, cartas de amor, de adeus, de desespero, chantagens, ameaças de suicídio”. José Costa foi se aperfeiçoando no ofício, e logo já estava publicando artigos em jornais de grande circulação, em nome de gente como o presidente da Federação das Indústrias, o ministro do Supremo Tribunal Federal, o cardeal arcebispo do Rio de Janeiro.
A fascinação pelo húngaro – idioma que José Costa desconhece completamente – vai tomando corpo aos poucos, até que numas férias a esposa dele, Vanda – que há tempos queria conhecer a Inglaterra – vai para Londres enquanto que ele vai para Budapeste. Estas férias em separado são um desastre para o casal: na capital da Hungria José Costa acaba tendo um relacionamento com Kriska, sua professora de húngaro, e vai ficando por lá até que é expulso do país porque não consegue mais renovar o visto – e é obrigado a retornar ao Brasil. De volta ao país natal, o ghost-writer se surpreende ao saber que “O ginógrafo”, autobiografia absolutamente fictícia que ele tinha criado por encomenda para um turista alemão, se tornou um sucesso estrondoso de vendas (existe um documentário em que Chico Buarque lê um belo trecho de “Budapeste” que faz parte do livro fictício “O ginógrafo”). E as aventuras malucas do ghost-writer continuam, mas não vale a pena contar mais para não estragar a surpresa. De todo modo, “Budapeste” é um livro fascinante pelo humor e pela fantasia, e que consegue – a seu modo torto – dar conta do fascínio que amantes da literatura sentem pela palavra – objeto de obsessão.
Já “Leite Derramado”, também de Chico Buarque, é a história contada do leito de hospital por Eulálio d’Assumpção, homem centenário e decadente, que perdeu toda a fortuna que tinha herdado de sua família tradicional: o avô fora barão; o trisavô, português, desembarcara no Brasil e tinha sido confidente de Maria Louca; o pai, senador, fora assassinado – não fica claro se pelos adversários políticos ou se pelo marido de uma amante. Outro assunto fundamental na trama que a memória confusa de Eulálio não consegue elucidar o leitor é qual o motivo de Matilde – o grande amor de sua vida e mãe de sua filha – ter deixado dele para nunca mais voltar. Se por um lado esta perda jamais foi superada, por outro o amor de Eulálio pela ex-mulher é a grande força do romance.
Explico: herdeiro de todos os vícios intelectuais e morais de sua família tradicional, o narrador de “Leite Derramado”, ao mesmo tempo em que acredita na inferioridade dos negros, tem um amor totalmente avassalador pela mulata (ou seria negra?) Matilde. É nessa contradição que cresce a figura trágica de Eulálio, não só um personagem literário de rara grandeza, como um representante das transformações históricas pelas quais o Brasil tem passado.
Com tudo isso, “Leite Derramado” é uma obra-prima – um dos melhores romances de um autor brasileiro brasileiros que já li.
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