Cinco Marias, de Fabrício Carpinejar
Literatura

Cinco Marias, de Fabrício Carpinejar

13 de maio de 2015 0

Considerado pela crítica especializadas um dos melhores poetas brasileiros da atualidade, o gaúcho Fabrício Carpinejar está lançando o livro de poesias Cinco Marias (Bertrand Brasil, 123 páginas).

O livro parte de uma nota de jornal completamente fictícia: um tal de Diário do Sul, de 31 de março de 2045, narra que em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, uma mulher enterra o marido, morto de morte natural, no quintal de sua residência com a ajuda das quatro filhas (perfazendo, portanto, as cinco Marias do título). Todas elas afirmam que não era um ser humano que fora colocado embaixo da terra, mas sim a biblioteca da casa. Em suas investigações, a polícia encontra um diário na residência delas no qual, aleatoriamente, mãe e filhas colocavam novos textos sem assinar. Segundo a nota do tal Diário do Sul, “o delegado (…) considera estranha a prática de um diário coletivo, o que dificulta a identificação da verdadeira autora”. Cinco Marias, o livro, é este “diário coletivo”.

Nele, os poemas não têm título ou qualquer espécie de ordem cronológica. Alguns têm relação direta com o enterro do homem da casa, que elas pensavam ser a biblioteca (“-Mãe, o que estamos fazendo? / Vamos enterrar a biblioteca”; “Em lençóis, carregamos pilhas / de papéis e encadernações. / Um livro não lido pesava como um morto. / Arrastamos a mortalha pela sinuosidade da escada, / as curvas da casa, o pano turvo das folhas.”; “Em duplas, atiramos os livros / lentamente. As covas se desmanchavam para receber outra forma de lama.”); outros falam com desprezo do morto (“O pai escondeu a voragem, os indícios, / o delito. Em segredo, / havia internado a mãe em sua clínica. / Não informou os parentes e os amigos. Desejou enterrá-la viva. / Atestou que era louca”; “Meu pai carecia / de medida ao vinho. / Segurava o cálice pelas bordas. / Seu suor comprimia / álcool em minha testa. / Eu afastava seu beijo, / aquele beijo. // Não importava a safra, / poderia ser a melhor, / ela azedava em sua vela.”) ou da dificuldade de comunicação com o mundo masculino como um todo (“Os homens nunca vão entender”).

A maioria dos poemas de Cinco Marias, porém, trata de temas que não têm relação direta com o enterro ou com o homem enterrado no quintal da casa – e na grande maioria deles não há qualquer indicação de qual das “cinco Marias” está escrevendo. Eles falam do cotidiano feminino, de sensações, de neuroses. Alguns têm uma beleza impressionante e inesperada (“Os mortos envelhecem / na eternidade. / Não os invejo. / Tenho dentes para morder. // Diante do prado, / ardo imensa” ; “Podamos a planta do corpo, da residência. / Reformamos o quarto da empregada / em escritório, a dependência em terraço, / o corredor em sala de estar. / Não superamos os limites, mudamos as fronteiras de lugar.” ; “Estou de mãos dadas / com a lonjura. / O portão como um filho / agarrado nas pernas. / Deus me deu asas / para ficar / parada” ; “Desistam de planejar o desfecho. / Não morremos com nobreza. / Toda morte é um vexame. / Não nascerei de novo, / a morte é que se renova.”). O tom, freqüentemente, é desolado (“Eu preferia ter perdido tudo / para não ficar reparando / as pequenas perdas”) ou de violência represada (“As confidências ofendem. / O casal esgota cedo a estranheza. / Busca se destruir perfeitamente. / A traição é uma intimidade / mais estável que o casamento.” ; “Deveria ter brigado mais, / respondido às agressões, / sangrado mais, / esperneado e puxado os cabelos, / gritado palavrões e socado o ar. / No acúmulo da poeira, / as gavetas trincaram.”). Há também momentos estranhamente otimistas (“Ao andar contigo, / eu ria à toa, / a música já tinha / a nossa respiração. / Como uma cordilheira, / a tempestade sobrevoava / a esponja do verde, / sem derramar relâmpagos. / Ao andar contigo, / eu me invejava”) ou de harmonia simples com a natureza (“Quem não se delicia / com o tremor da chuva? / Quem não se abandona / ao vapor veloz da terra? // Não condenar ou absolver, / utilizar a vida / somente.”).

A sensação que fica para o leitor ao terminar a leitura de Cinco Marias é que este é um livro intimista, melancólico, esquisito e com freqüentes passagens inesperadas.

Mas, o que é mais importante, é um livro belíssimo – literalmente, de tirar o fôlego.

(publicado no Mondo Bacana em abril de 2008)

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