Saulo Pereira de Mello estudou física e filosofia e é, junto como Plínio Süssekind da Rocha, um dos responsáveis por ainda podermos assistir aquele que é considerado o maior filme brasileiro de todos os tempos. A dramática restauração de Limite é contada por Emil de Castro na biografia do diretor Mário Peixoto (*):
José Carlos Avellar diz que em 1959 foi que surgiu a preocupação de que Limite poderia desaparecer, pois a projeção ja vinha sendo feita sem a segunda parte. O nitrato iniciava o processo de decomposição. Foi então que Plínio Süssekind da Rocha pediu a ajuda de Saulo. A cópia do filme ficou guardada na Faculdade Nacional de Filosofia até 1966, quando foi absurdamente apreendida por ordem da Polícia Federal, junto com A Mãe, de Pudovkin, e O encouraçado Potemkin, de Einsenstein. Em 1966, o filme foi liberado (…) e ficou sob os cuidados de Saulo em sua casa.
Foi uma luta constante para impedir a sua decomposição . Só quase 20 anos depois é que Saulo conseguiu a recuperação do filme e começou a estudá-lo, fotografando-o imagem por imagem. Não foi um trabalho fácil salvar Limite. Somente uma paixão desmedida levaria alguém a tamanho sacrifício, o de transformar sua casa num laboratório cinematográfico, com as fitas tomando conta de sua sala de jantar.
Saulo, a mulher Ayla e a filha Laura passaram a viver cercados de Limite por todos os lados. Ele, porém, não se arrepende de sua dedicação ao filme e de sua amizade por Mário Peixoto. Se não fosse Limite ele seria apenas um simples professor de Física, o que não seria nenhuma desonra. Mas hoje ele é uma das mais abalizadas autoridades em Limite, e com lugar assegurado na história da cinematografia brasileira como o restaurador do filme.
E é esta abalizada autoridade o autor de um pequeno livro (de pouco mais de 100 páginas) da coleção Artemídia, da Editora Rocco, chamado Limite. O livro – eu nem precisaria comentar – é uma preciosidade para os fãs do filme (entre os quais me incluo).
Limite, o livro, foi lançado em 1996 e é uma reunião de dois longos artigos lançados no início da década de 90 (Metamorfoses do visível e Insólita organização de imagens) somados a uma introdução e a um epílogo (chamados respectivamente de Antes de Limite e Depois de Limite) feitos especialmente para o livro.
As partes de leitura mais fácil são, sem dúvida, a introdução e o epílogo. Antes de Limite apresenta um rápido panorama do cinema brasileiro da época, conta quais as influências principais e o que levou Mário Peixoto a criar seu filme, além de explicar que seu fracasso retumbante – Limite nunca chegou a ser distribuído comercialmente – foi, claro, causado por ser “difícil” mas também por que vários outros filmes brasileiros da época também tinham problemas com a distribuição. Depois de Limite conta a vida de Mário Peixoto após seu único filme em 1931, com cerca de 21(!) anos de idade: com temperamento difícil, várias outras vezes tentou fazer outra película e nunca conseguiu; dedicou-se obsessivamente à literatura; nunca teve um trabalho formal e, anos antes de falecer em 1992, já tinha gastado toda a fortuna da família – sendo socorrido no final da vida por seu fã, o também diretor de cinema Walter Salles Jr.
Já os dois artigos são de leitura complexa – principalmente o longo (60 páginas) Metamorfoses do visível, uma análise de Limite feito com grande detalhamento.
O artigo dá ênfase no fato de que a cena inicial do filme de Mário Peixoto – a da mulher com envolta pelas mãos algemadas em torno de si (apresentada acima) – é a sua proto-imagem, isto é: aquela na qual todo o restante da película vai se basear. Esta imagem, semelhante a uma que o diretor viu na capa de uma revista européia, é um símbolo das limitações humanas – tema, segundo Saulo Pereira de Mello, de todo o restante da película, a qual mostra três náufragos – o Homem n.1 e as Mulheres n. 1 e n. 2 – num barco à deriva contando as histórias de suas vidas antes do seu trágico final. A partir desta idéia da proto-imagem Saulo Pereira de Mello vai desenvolvendo sua descrição de Limite como sendo um filme angustiante, onde não há perspectivas de que os seres humanos consigam superar suas próprias limitações a não ser no fim inexorável: na morte.
Metamorfoses do visível é um artigo muito mais filosófico do que técnico: o autor vai analisando uma grande quantidade de detalhes dentro do filme para corroborar com sua teoria. Entre muitos outros exemplos, Saulo Pereira de Mello mostra que os cabelos dos náufragos estão sempre despenteados, símbolo de falta de rumo dos personagens; as cidades são mostradas meio apodrecidas, praticamente em ruínas, significando a decadência de tudo; a postura dos náufragos é aristocrática: o que poderia parecer um contra-senso com a origem deles na verdade é mais uma mostra de que Limite é um filme alegórico; o olhar das pessoas no filme é cabisbaixo – enquanto que o riso em algumas cenas é vulgar: não há saídas viáveis para a humanidade, e este é o recado de Limite. Mesmo quando analisa o modo de Mário Peixoto criar seus incríveis takes – ora com a câmera parada, ora em grande liberdade de movimentos – o autor do livro tem sua tese em mente.
O estilo do artigo Metamorfoses do visível (o artigo seguinte, menor em tamanho, Insólita organização de imagens, é uma espécie de resumo deste), se não chega a ser totalmente confuso, peca um pouco pela empolação e por repetições desnecessárias. Mas nem é esse o seu maior problema: embora Saulo Pereira de Mello elogie sim a magnificência técnica do filme Limite, estes elogios parecem pouco suficientes: não há espaço, em seu livro, para o absoluto assombro que toma conta de quem assiste este filme espetacular, com imagens belíssimas, takes inesperados e uma história contada magistralmente apenas por imagens (o filme todo é mudo, com intertítulos em apenas uma cena). Além disso, Pereira de Mello também não cita algumas soluções técnicas geniais de Mário Peixoto (**), esquece de comentar sobre a beleza decadente da paisagem e não escreve uma palavra sobre como a maravilhosa trilha sonora – criada por Brutus Pedreira, a cargo de nomes como Debussy, Satie e Ravel – ajuda a deixar o espectador pasmo com o filme. Em outras palavras: querendo provar sua teoria, o autor do livro praticamente esqueceu que ver Limite é uma experiência estética impactante, assombrosa, inesquecível.
E, mais do que a qualquer teoria de limitação humana, eu diria que a permanência do filme de Mário Peixoto se deve mesmo à sua enorme – e inesperada – beleza.
Mas não dá para esquecer que, hoje, só posso ter contato com esta beleza toda graças à dedicação de Saulo Pereira de Mello – que, com humildade, em nenhum momento do livro se gaba do seu esforço pra recuperar Limite, a obra-prima de Mário Peixoto.
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(*) in Jogos de Armar: a vida do solitário Mário Peixoto. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000. 230pp)
(**) por exemplo, a cena em que a câmera “procura” uma estafada Mulher n.1 que acabara de fugir da cadeia; outra em que a câmera “age” como uma louca, andando de um lado para outro enquanto que a Mulher n.2 pensa em suicídio; e a bela seqüência idílica de takes da Natureza mostrados enquanto o Homem n.1 faz amor com a esposa – leprosa – do Homem n.2 (vivido pelo próprio Mário Peixoto – o único personagem com os cabelos arrumados, como brilhantemente notou o autor do livro Limite).
(texto escrito em meados de 2004)
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