O limite das capacidades humanas sempre me espantou um pouco. Por que eu não sei como vive meu vizinho? O sujeito mora no apartamento abaixo do meu, e eu sequer sei como ele decora a sua casa. Ao mesmo tempo em que não tenho o menor interesse objetivo pela vida alheia, eu me sinto frustrado em conviver diariamente com várias pessoas de quem eu gosto, mas que nem sequer sei como vivem. Se tomam sol na cara quando deixam a janela do quarto aberta, ou se o sol não bate nunca ali. Se usam roupas esfarrapadas em casa ou se tentam manter um mínimo de dignidade. Se preferem dormir de lado ou de bruços. Minha mulher não sabe como é a disposição do escritório em que trabalho, e não conhece pessoalmente a maioria meus colegas.
Parece que Selena Gomez é assim também. Eu adoro o clipe de “The Same Old Love”, em que ela está andando no banco de trás de um carro e vê uma série de transeuntes, uns andando de mãos dadas na calçada, outros brigando no carro, e assim por diante. Ela manda o motorista parar, sai andando na calçada e começa a ver algumas pessoas que ela tinha visto antes na rua já nas suas casas, que estão com as janelas abertas. Não é voyeurismo, não é vontade de se meter na vida alheia, não é simples curiosidade: é a frustração por sabermos tão pouco sobre o mundo e as pessoas ao nosso redor.
“Perfect”, a faixa, é intensa, complexa, violenta, estranha. A letra da música conta sobre uma namorada “oficial” que sabe que o namorado “oficial” tem uma amante. Uma letrista comum iria ficar se lamentando, ou se vangloriando (por ser a “oficial”, afinal de contas), ou odiando, ou fazendo um discurso feminista. Selena Gomez não faz nada disso. Ela pode “sentir o batom” da “outra” nos seus lábios; pode “vê-la deitada sobre o peito” dele. Quando a cantora “sente o batom” da outra, é como se a “estivesse beijando também”. A conclusão é assustadora: a “outra” é perfeita. Então ela pede:
Como ela te toca?
Eu posso tentar também?
“Com o cheiro do perfume da outra”, Selena Gomez conclui que poderia “amá-la, também”, como o namorado ama a “outra”. Não é subserviência, não é humilhação: tem algo disso, claro, mas a sensação que a letra de “Perfect” passa é tão estranha, tão inesperada, que passa a impressão, para o ouvinte, que amores loucos são loucos mesmo.
Acredito que Selena Gomez, leitora da Bíblia, se inspirou no Cântico dos Cânticos para escrever a sexy Good For You, já que os paralelos são muitos. A sexualidade e a riqueza, por exemplo:
“Eu estou nos meus 14 quilates / Eu sou 14 quilates / Sou como Midas / Agora você diz que eu tenho um toque / (…) /Eu estou com meus diamantes Marquise / Eu sou um diamante Marquise / “Que faria até a Tiffany ficar com ciúmes” (Good for You)
“Como são belas as suas faces entre os brincos, e o seu pescoço com os colares de joias! Faremos para você brincos de ouro com incrustações de prata.” (Cânticos 1:10,11)
Quando a amada quer ficar deslumbrante para o amado:
“Vou usar aquele vestido bonito que você gosta / Arrumar meu cabelo bem bonito / Porque eu quero ficar bonita para você” (Good For You)
“Estou morena, mas sou bela, ó mulheres de Jerusalém; escura como as tendas de Quedar, bela como as cortinas de Salomão.” (Cânticos 1:4,5)
Os dois textos mostram o orgulho da amada por pertencer ao amado:
“Me deixe te mostrar que estou orgulhosa de ser sua” (Good For You)
“Eu sou do meu amado / E ele tem saudade de mim” (Cânticos 7:10)
As três músicas citadas acima estão no disco “Revival [Deluxe]”, reconhecido por muita gente como prova da maturidade da cantora líder mundial de seguidores. Com as maravilhas citadas acima, nem precisava mais nada, mas o disco tem uma quantidade maravilhosa de pérolas pop como “Outta My Hands (Loco)”, “Me & My Girls”, “Kill Em with Kindness” (possivelmente a minha faixa preferida do disco), “Hands to Myself”, “Me & the Rhythm”, e por aí afora.
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