Consta que Marcel Proust se surpreendia com o fato de que os personagens de Homero tinham emoções modernas, no que eu concordo. Mais do que isso, salta aos olhos agilidade da narrativa e a descrição precisa dos conflitos em “Odisseia” (Penguin-Companhia das Letras, 576 páginas): o final da história, inclusive, em que Ulisses e seu filho Telêmaco se vingam dos pretendentes de Penélope, tem todos os elementos de um thriller de suspense. De todo modo, é óbvio que este é um livro muito antigo, e isto faz grande parte do charme de “Odisseia” para o leitor de hoje.
A começar pela ótima tradução da Penguin-Companhia das Letras, a cargo do português Frederico Lourenço. Segundo José Paulo Paes, “a boa tradução não é aquela que você lê como se tivesse sido escrita originariamente em português. É aquela em que o português tem algo de estranho. Aí você conseguiu infundir um pouco do original na sua própria língua, ampliando-a.” Isto pode ser mostrado rapidamente no trecho inicial da tradução de “Odisseia”:
“Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou, / depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada. / Muitos foram os povos cujas cidades observou, / cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar / os sofrimentos por que passou para salvar a vida, / para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas. / Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar. / Não, pereceram devido à sua loucura, / insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion, / o Sol — e assim lhes negou o deus o dia do retorno. / Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.”
Para tirar a estranheza da tradução de Frederico Lourenço, imagino o mesmo trecho numa linguagem atual:
“Me conte aqui, musa, sobre o homem que por anos vagueou perdido depois de ter destruído a cidade sagrada de Troia. Ele conheceu muitos povos de muitas cidades diferentes e sofreu horrivelmente no mar para que pudessem todos voltar para suas casas, tanto ele como seus companheiros. Mas estes foram assassinados pelo Deus Sol, Hiperión, como vingança pela morte de seu gado sagrado.”
Mas o que eu mais estranhei em “Odisseia” foi a história dos pretendentes. Depois da guerra de Troia, Ulisses quer voltar para a sua terra natal mas o deus Posêidon faz de tudo para atrapalhá-lo (ao mesmo tempo em que a deusa Atena tenta auxiliá-lo do jeito que pode). Nesta viagem de volta, ele sofre com tempestades, é preso pela ninfa Calipso, encontra tanto terras hostis quanto hospitaleiras. Enquanto ele come o pão que o diabo amassou no mar, sua casa vai se enchendo de pretendentes à mão de sua esposa Penélope (ninguém sabia, afinal, se Ulisses estava vivo ou morto).
Boa parte da “Odisseia” se refere às barbaridades que estes pretendentes fazem na casa de Ulisses. Os caras simplesmente se apossam do lugar, devoram o gado do dono, vão ficando por lá, como se fosse o conto “A Casa Tomada”, de Julio Cortázar. O leitor vai se revoltando contra a cara de pau dos sujeitos, e fica se perguntando: por que diabos Penélope simplesmente não toca todo o mundo de lá? Ela não diz nem que sim nem que não para os pretendentes, afinal de contas. Será que era costume da época? Sei lá.
De todo modo, fazer leitores, 2800 anos depois, se revoltarem com a falta de noção de uma cambada de sujeitos não é para qualquer um, né?
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