A palavra “utopia” entrou para o vocabulário da humanidade graças a uma obra do filósofo inglês Thomas More (1478-1535), um dos grandes humanistas do Renascimento. Tendo passado por vários cargos públicos e tendo sido inclusive um importante assessor do Rei Henrique VIII, More caiu em desgraça quando aquele resolveu romper com o Vaticano para poder se divorciar e casar novamente: por recusar-se a aceitar o rei como cabeça da Igreja da Inglaterra, More foi executado em 6 de julho de 1535. A sua firme posição em favor da Igreja de Roma acabou sendo reconhecida pelo Vaticano, que o proclamou santo através do Papa Pio XI em 19 de maio de 1935.
De toda sua obra – composta por tratados, obras de história, cartas e textos religiosos – foi o livro “Utopia” que acabou tornando seu nome conhecido para as próximas gerações. Em forma de diálogo, More coloca na boca do personagem fictício Rafael Hitlodeu as ideias do livro, que é dividido em duas partes: na primeira é apresentada uma virulenta crítica à justiça e à política da época, e na segunda é descrita a vida numa ilha fictícia no Novo Mundo, chamada Utopia (como era de se esperar).
É um tanto chocante para o leitor de hoje ler as críticas de More à justiça inglesa dos séculos XV-XVI: o personagem Rafael Hitlodeu não se conforma com o fato de que a pena de morte fosse utilizada contra simples assaltantes, que frequentemente não tinham possibilidade de arranjar trabalho e que roubavam para conseguir comida. Instigado pelos interlocutores – entre os quais o próprio Thomas More (!) – a ajudar governantes com suas brilhantes ideias, Rafael Hitlodeu debocha das boas intenções dos governantes em geral – mostrando que tem coisas que não mudam mesmo.
A segunda parte do livro descreve a vida na ilha de Utopia. O principal objetivo dos seus habitantes é ter prazer – sem culpas (se bem que o sexo antes do casamento é punido com a desonra da família). Os criminosos são punidos com a escravidão, e a pena de morte só viria na reincidência. A liberdade religiosa é permitida. Todos os habitantes da ilha devem passar alguns anos trabalhando no campo. As cidades não podem ter mais do que um certo número de famílias: em caso de excesso população em uma cidade, algumas famílias vão para outras localidades ou colonizam regiões próximas. Todos devem trabalhar seis horas por dia e o dinheiro não existe: as pessoas pegam o que precisam numa central de abastecimento. O ouro, abundante na ilha, é considerado um metal inútil e é utilizado tanto em objetos como penicos ou tubulações como para despertar a intriga entre os inimigos de Utopia. A vida privada é totalmente desencorajada: os governantes locais acreditam que a contínua inspeção de vizinhos observando uns a vida dos outros acaba fazendo com que a maioria dos habitantes de Utopia acabem se comportando de maneira virtuosa.
Até hoje se discute se Thomas More escreveu seu livro com objetivo de apontar para uma realidade melhor ou com fins irônicos. Eu mesmo acabei a leitura do livro e não tenho uma opinião formada sobre a questão.
O que ficou para a humanidade, em todo o caso, parece ser o que Alcino Leite Neto descreve na contracapa da minha edição de “Utopia”: com o livro, “ganhamos também um dispositivo crítico – o pensamento utópico, que consiste em sempre submeter as sociedades concretas ao julgamento promovido por nossos ideais de felicidade”.
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