A Rosa Branca e Um Amor na Alemanha
Cinema

A Rosa Branca e Um Amor na Alemanha

4 de dezembro de 2015 0

Não adianta: por mais que a pessoa tenha crescido assistindo filmes em cinematecas e seja fã dos chamados filmes “de arte” europeus (como eu), não há como fugir do impacto do cinema americano (em grande parte, o mérito disto é dos próprios americanos – pretendo logo falar aqui do filme Stagecoach, de John Ford, por exemplo). Graças a seus filmes, nós temos uma clara idéia de como era a vida cotidiana nos Estados Unidos em todas as fases de sua história desde, pelo menos, o Velho Oeste no século XIX – os exemplos são tão numerosos que nem vale a pena citar aqui.

Quando o assunto é a Alemanha Nazista, por outro lado, estamos mais familiarizados com livros e documentários que descrevem (com maior ou menor precisão) os horrores do regime. São menos freqüentes filmes que tratem da vida dos alemães do período de uma maneira, digamos, “à americana” – isto é, focando primordialmente conflitos e acontecimentos de pessoas (mais ou menos) comuns, com uma linguagem (mais ou menos) linear. Num pequeno esforço de “mergulhar” na mentalidade e no cotidiano do povo alemão da época (como é possível “mergulhar” no Velho Oeste assistindo filmes do John Wayne, com todas as limitações, é óbvio, implícitas neste processo), aluguei numa locadora Um Amor na Alemanha (lançado em 1984), do grande diretor polonês Andrzej Wajda, e A Rosa Branca (lançado em 1982), do diretor alemão Michael Verhoeven. Posso dizer que meu pequeno esforço foi plenamente recompensado. Os dois filmes têm a estrutura linear do grande “cinemão” americano – isto é, são mais preocupados em contar bem uma história do que em elocubrações filosóficas ou revolucionar a linguagem cinematográfica. Além disso, ambos têm personagens convincentes e roteiros bem amarrados – e claro, conforme meu objetivo incial, dão uma bela idéia da vida cotidiana da época.

Um amor na Alemanha é ficção: conta a história de uma mulher alemã, Pauline (vivida pela grande Hanna Schygulla), que, na ausência do marido militar (que fora lutar na frente russa), tem um caso de amor com o polonês Stanislaw (Pietr Lysak) – só que as leis da época puniam com a morte poloneses que tivessem relações sexuais com alemães. A Rosa Branca, por outro lado, é baseado no caso real dos irmãos Scholl e alguns colegas, punidos com a morte em 1943 por distribuírem panfletos contra o regime – a cena incial do filme são as fotos reais de todos os executados no final do processo.

Dadas algumas semelhanças entre os filmes, resolvi dividi-los em quatro partes cada: a primeira poderia ser chamada de idílica; a segunda, de saída da normalidade; a terceira, de desenvolvimento e repressão; e a quarta parte, finalmente, de conclusão (*).

A parte idílica dos filmes mostra como deveria ser a vida de grande parte dos alemães cumpridores de seus deveres durante o governo nacional-socialista (antes dos bombardeios aliados). Em Um Amor na Alemanha é mostrado o dia-a-dia de uma cidadezinha alemã, onde todos os habitantes são quase sempre sorridentes, saudáveis e gentis – apesar dos cupons de racionamento que têm que ter para adquirir alimentos. Já A Rosa Branca foca incialmente uma grande família de Munique (os Scholl), cujos membros moram numa grande e confortável casa, onde promovem serões culturais com música clássica. Os membros masculinos da família vão para o front russo ou ficam em Munique estudando, enquanto que as moças estudam, namoram e têm sua iniciação sexual. Assim como em Um Amor na Alemanha, os personagens de A Rosa Branca parecem pessoas saudáveis e felizes.

É bem claro o momento da saída da normalidade nos dois filmes: em Um Amor na Alemanha Pauline, dona de uma pequena venda, carente sem o marido – ausente já há vários meses de casa – começa a ter um tórrido caso de amor com o polonês Stanislaw, que trabalha como escravo numa casa vizinha. Em A Rosa Branca Sophie Scholl finalmente descobre que seu irmão Hans e alguns amigos eram os responsáveis por alguns virulentos panfletos contra o regime que ela tinha lido na faculdade. Logo após sua descoberta Sophie surpreendentemente resolve fazer parte do pequeno grupo agitador.

O desenvolvimento é a continuação do movimento no sentido da saída da “normalidade” nacional-socialista: em  A Rosa Branca os irmãos Scholl e seus companheiros trabalham com grande coragem para distribuir o maior número possível de panfletos por toda a cidade, assim como para criar novos contatos externos ao seu minúsculo núcleo de agitação, tanto na Universidade como no Exército. Enquanto isto Pauline, em Um Amor na Alemanha, fica cada vez mais apaixonada por seu polonês Stanislaw, e começa a ser imprudente, praticamente não conseguindo mais esconder o seu romance do resto da população local. A repressão vem praticamente paralela ao desenvolvimento: nesta parte admirável dos dois filmes, cenas do desenvolvimento se revezam com a repressão, a qual, pouco a pouco, vai fechando todas as portas aos principais personagens dos filmes: enquanto que, em A Rosa Branca, a grande rede de delação nacional-socialista vai, aos poucos, mostrando suas garras – qualquer pessoa, virtualmente, era uma delatora em potencial -, em Um Amor na Alemanha a delação é causada por um motivo sórdido: uma vizinha delata Pauline para a SS simplesmente por que queria a sua vendinha para si.

A conclusão dos dois filmes, como não poderia deixar de ser, é trágica – e em mais um detalhe estes dois admiráveis filmes se parecem: em ambos os perpetradores nazistas (a carcereira de A Rosa Branca e o coronel da SS em Um Amor na Alemanha) mostram-se profundamente desconfortáveis em ter de ajudar a executar pessoas que cometeram crimes tão… insignificantes.

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(*) num sentido estrito, uma quinta divisão, chamada relação do passado com o presente, poderia ser criada também. Isto por que em A Rosa Branca uma “lei” para “revogar” os crimes dos Scholl (ainda não revogados quando do lançamento do filme) é “promulgada” pelo próprio diretor Verhoeven – resultando num efeito melodramático e um pouco sem sentido -, enquanto que, em Um Amor na Alemanha, toda a história é contada na época atual pelo filho de Pauline, já adulto, que volta à cidadezinha onde nascera para tentar esclarecer a tragédia.

(texto escrito em 2003)

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