“Mute witness”
Música

“Mute witness”

24 de novembro de 2015 0

Se você perguntar a vários fãs do Morrissey qual o seu álbum preferido, provavelmente nenhum vai citar “Kill Uncle”, de 1991. Apesar dos fãs de Morrissey serem reconhecidamente mais fanáticos que o normal (muitos praticamente não ouvem outra coisa) a grande maioria deles mal vai se lembrar de “Mute witness”, uma das faixas deste injustamente desprezado álbum “Kill Uncle”. Entretanto, “Mute witness” é uma obra-prima, uma canção forte, dramática e difícil (esta dificuldade, possivelmente, é o que faz esta canção ser tão esquecida – é mais fácil dizer “ah, mais uma porcaria da carreira solo de Morrissey” do que tentar entender “Mute witness”).

“Mute witness” conta a história de uma testemunha muda, testemunha esta que, além de seguir os passos de alguém, está nos lugares mais improváveis (“4 da manhã, Northside, Clapham Common, o que você estava fazendo lá?”, “Agora veja ela de pé em cima da mesa, com seus pequenos braços balançando”). Esta testemunha sabe também tudo o que acontece com a pessoa que persegue (“e suas palavras silenciosas descrevem a cena da noite passada”, “ela só estava tentando explicar o que foi que ela viu”). É angustiante a situação desta testemunha muda: apesar do esforço que ela faz (“Gritando tão alto lá do chão”) só o que ela consegue é causar pena (“sua pobre testemunha”, “e você sente tanta pena na sua alma pela sua testemunha muda, ainda testando a força de nossa paciência”). A pessoa “perseguida” tem dificuldades de ouvi-la, pois são insistentes os sinais de que não só a testemunha faz força para se fazer ouvir, como a propalada “mudez” da testemunha sugere alguém que fala mas que não é ouvido. Isto aumenta a pena que sentimos da testemunha, mas certamente há mais. Existe algo certamente oculto na canção: qual o motivo que faz a “testemunha” ser tão infeliz (pois ela o é demais). Mas Morrissey quer deixar bem esclarecido, no final da canção que a testemunha OPTOU pelo seu destino (“tudo teria sido tão mais fácil, se pelo menos ela nunca tivesse se oferecido”) – um tema que volta na canção “alma matters”, de 1997 (“a escolha que eu fiz, […], eu nunca estive tão certo disto, é minha vida se arruinando do jeito que escolhi”).

Quanto à melodia, ela é repetitiva e acelerada – dá impressão que conseguimos sentir a angústia da testemunha em querer se fazer entender. Ela está lá, tentando de tudo, gritando, berrando para ouvidos surdos.

Bem, mas aí alguém pode perguntar: o que faz esta música, afinal de contas, ser tão especial? Nós não sabemos o que faz a situação da testemunha ser tão angustiante, fora a sua dificuldade de comunicação. Nós não sabemos tampouco como ela pode estar em praticamente todos os lugares – seria algum poder paranormal?

Nada disto importa, na verdade.

Importa saber por que os personagens de Kafka são perseguidos? Não, apenas a perseguição importa.

Importa saber como a Bruxa de Blair atinge suas vítimas? Não, apenas a angústia dos perseguidos importa.

Aqui vemos vemos alguém (a “testemunha muda”) querendo desesperadamente ajudar outra pessoa, mas sem nenhuma recompensa, sem nenhum retorno, sem nenhum alívio. Apenas sentimos uma pena profunda dela. E é este sentimento que importa.

“Agora seque suas lágrimas, minha cara (…) Seu táxi está aqui, minha cara” – não por acaso, é assim que esta obra-prima termina: ela precisa parar de chorar… e ir embora.

(texto escrito em 2002)

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