“Um copo de cólera”, “A neve estava suja”
Literatura

“Um copo de cólera”, “A neve estava suja”

2 de novembro de 2015 0

Eu lembro de ter ouvido ou lido, anos atrás, a notícia de que o político israelense Shimon Peres lia alguns romances de escritores locais antes de viajar para algum país que não conhecia. Creio que ele achava que a literatura mostrava aspectos que outros meios – como a história ou o jornalismo – não conseguiam registrar. Realmente, é inegável que a leitura de Balzac ajuda – e muito – a entender a vida e a política da Restauração e da Monarquia de Julho na França do século XIX, assim como os livros de J.M. Coetzee dão uma visão “de dentro” da África do Sul no período do apartheid.

As obsessões do escritor Patrick Modiano, Prêmio Nobel de 2014, são a dominação alemã na França durante a Segunda Guerra Mundial e a dificuldade dos personagens ao tentar recuperar lembranças e documentos desta época tenebrosa. Se na maioria dos romances de Modiano a precisão na descrição de ruas e lugares de Paris é um ponto em comum com os livros do escritor policial belga Georges Simenon, no romance deste último “A neve estava suja” (1948) a coincidência é ainda maior, já que a história se passa durante a ocupação alemã.

“A neve estava suja” é um dos mais célebres “romances duros” (termo que o escritor utilizava para denominar os livros em que o personagem Maigret não participava) de Georges Simenon. No livro, a maioria dos personagens é do mesmo tipo daqueles que infestam os livros de Modiano: pequenos arrivistas, golpistas, desqualificados que se aproveitavam da dominação alemã para ganhar dinheiro com atividades ilícitas. O personagem principal do romance é Frank Friedmaier, o filho de uma dona de bordel que é basicamente um psicopata: já no início do livro ele mata um oficial alemão para conhecer a sensação de matar alguém. Ele faz sexo com as prostitutas que trabalham com sua mãe, e as maltrata. Ganha dinheiro com pequenos golpes, e nenhuma preocupação moral se interpõe entre o seu desejo de conseguir enriquecer naquela época difícil e os meios para atingir este objetivo. Sua frieza e maldade tornam-no semelhante ao célebre personagem Mersault, do romance “O estrangeiro”, de Albert Camus – livro que inspirou a ótima “Killing an arab”, do The Cure, aliás. A atmosfera de opressão, de angústia e de falta de perspectivas deste extraordinário “A neve estava suja” é a mesma dos romances de Modiano, embora o estilo dos dois escritores seja bastante distinto: Simenon é preciso nas descrições, enquanto que o Nobel de 2014 faz das falhas da memória parte integrante de sua técnica narrativa.

As poucas críticas que li do clássico “Um copo de cólera”, do paulista Raduan Nassar, relacionam a atmosfera opressiva desta novela com a ditadura militar brasileira – o livro foi escrito em 1970, mas publicado somente em 1978 (a ditadura começou em 1964 e foi até 1985). O livro conta a história de dois dias na vida de um casal de namorados – ou amantes – cujos nomes não aparecem nenhuma vez: ela chega na casa dele no final da tarde, eles fazem sexo, dormem, acordam de manhã, tomam banho e – depois que ele se enfurece com as formigas que estão atacando uma cerca de sua propriedade – começam uma tensa discussão que chega até à agressão física. O final aponta para a paz entre os dois.

Com uma técnica que faz aumentar a tensão dos acontecimentos – as frases de cada capítulo são divididas apenas por vírgulas, e não por pontos e parágrafos -, “Um copo de cólera” mostra a extrema tensão sexual entre os dois personagens e os conflitos que surgem entre o homem – machista e intelectual ao mesmo tempo – e a moça, bem mais nova – que se sente atraída tanto pelas qualidades como  pelos defeitos do amante. A influência da ditadura militar, aqui, é muito mais sutil do que a da ocupação alemã em “A neve estava suja”, e tem a ver com a tensão, a violência e o ódio que permeiam toda a narrativa  – principalmente por parte do amante.

“Um copo de cólera”, creio, faz parte das obras-primas que têm mais a ver com relacionamentos humanos atemporais do que com uma época específica: eu certamente não o recomendaria para o Shimon Peres se inteirar sobre a época da ditadura militar brasileira.

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