Restif de la Bretonne (1734-1806) era um escritor francês que viveu numa época extremamente conturbada na França, e é representante do “Segundo Iluminismo” (fim do século XVIII). Sua obra, extremamente vasta, e frequentemente autobiográfica, fez com que ele fosse apelidado de “Rousseau da sarjeta”. Este apelido engloba sua preocupação social e seu gosto pelo sexo e pela pornografia.
Um dos últimos livros do autor, “Anti-Justine” (L&PM Editores) é uma obra que pretende se contrapor ao “Justine”, de Sade – famoso por misturar, sempre, sexo com dor e sofrimento. Para Restiff de la Bretonne, ao contrário, o sexo deve ser motivo de alegria. Mas ele não precisava exagerar: em “Anti-Justine”, pais fazem sexo com filhas, e todos adoram o incesto cometido – o que é absolutamente irreal e, nem preciso acrescentar, desaconselhável. De todo modo, a overdose de sexo sujo e explícito que é o livro como um todo tem partes realmente agradáveis – e outras muito engraçadas, de modo involuntário.
Li recentemente as duas mais recentes encíclicas do Papa Bento XVI, “Caritas in Veritate” e “Spe Salvi”. Nenhuma das duas é tão boa quando “Deus caritas est”, a outra encíclica do Papa (que li assim que foi lançada, em 2005), mas são excelentes obras deste teólogo refinadíssimo que é Bento XVI.
“Caritas in veritate” (que pode ser lida no aqui) discorre com detalhes sobre a teoria social da Igreja. O Papa não é contra o capitalismo – muito pelo contrário – mas insta os empresários para que sejam mais caridosos e justos. É a função dele, claro, e ninguém pode ser contrário a isto. Mas não chega a ser uma leitura apaixonante.
Muito melhor é “Spe salvi” (que pode ser lida no site do Vaticano), que trata de um assunto que o Papa conhece melhor, a esperança cristã. O modo profundamente respeitoso e com conhecimento de causa com o qual ele cita filósofos descrentes (como Adorno, Bacon e Horkheimer) e a teologia de outras religiões (como o protestantismo e o judaísmo antigo), além da descrição interessantíssima de detalhes históricos (como os túmulos do início do cristianismo) fazem de “Spe salvi” uma leitura profundamente enriquecedora – tanto espiritual quanto culturalmente.
Existe um certo tipo de literatura em que o narrador conta tudo em primeira pessoa e, de maneira circular, volta todo o tempo para um acontecimento ou uma ideia. Fazem parte deste tipo de narrativa o “Kaddish: para uma criança não nascida”, de Imre Kertész (Imago), que comentei aqui recentemente, e “Amuleto” (Anagrama – a edição nacional, de mesmo nome, é da Companhia das Letras).
Se em “Kaddish…” o fato que sempre volta à baila é a impossibilidade de ter filhos depois de Auschwitz, em “Amuleto”, a narradora Auxilio Lacouture – a “mãe dos poetas do México”, uma pessoa que não tem trabalho fixo e se encosta aqui e ali – é obcecada por ter ficado presa no banheiro da Faculdade de Filosofia e Letras, ao mesmo tempo em que o prédio é tomado pelas tropas militares, em 1968 – na mesma época em que houve o famoso massacre de Tlatelolco. Confesso que não sou um apreciador deste tipo de narrativa, que me parece mais cansativa que outra coisa.
De todo modo, “Amuleto” tem uma boa quantidade de cenas fortes, que valem a leitura do livro: o metafórico final; a relação de Auxilio com seu filho, que adorava desenhar; o encontro do poeta Arturo Belano com o “Rei dos Homossexuais” da Colônia Guerrero.
Se eu tinha ficado chateado de ter comentado sobre “Révolutions”, de Le Clézio, que era o pior livro do autor Prêmio Nobel de 2008 que eu tinha lido até então, agora é com o maior prazer que recomendo a leitura deste excepcional “Hasard suivi de Angoli Mala” (Gallimard – não tem edição em português, até onde sei). O livro é composto de duas novelas: a segunda, “Angoli Mala”, que fala sobre um menino índio que sofre horrores entre traficantes nas florestas da América Central e do Sul, é mais curta e menos interessante. Mas é “Hasard” (cuja tradução seria algo como “destino”) é que é a obra-prima.
A novela conta a história de Nassima, uma jovem negra e de coração puro, cuja família vem das Antilhas, e de sua relação com Moguer, cineasta de sucesso, amargo, perseguido pelos fantasmas do passado – pode ter assassinado uma menina, com quem havia tido relações sexuais -, e que passa meses a fio andando de barco pelos oceanos.
Le Clézio faz uma literatura de boas intenções, às vezes resvalando para o kitsch. É comum ele idealizar povos e pessoas – o autor demonstra uma grande piedade e carinho pelos povos oprimidos, por exemplo, e parece realmente acreditar no mito do “bom selvagem”. Ao mesmo tempo, suas descrições de personagens, acontecimentos e paisagens são agudas, precisas, profundas. Por baixo de todo o verniz politicamente correto, reside um autor maior.
É claro que este seu lado “puro” faz com que parte na crítica não goste dele – o chato do Daniel Piza, do Estadão, por exemplo, o chamou de “chatão”. Não importa. Le Clézio é realmente grande.
Outro grande autor é J.M. Coetzee, já citado aqui algumas vezes. O seu “Diary of a bad year” (Vintage – a edição brasileira se chama “Diário de um ano ruim”, e é da Companhia das Letras) é, na verdade, três livros “paralelos”. Na parte de cima de cada página são apresentados ensaios que o personagem principal do livro, um autor chamado simplesmente “C.” – provavelmente o próprio Coetzee – está escrevendo. Na primeira parte de “Diary…” os ensaios são escritos para uma coletânea de de vários autores e, na segunda, eles são de cunho mais pessoal, e sua elaboração foi proposta por sua secretária, Anya, por quem “C.” é perdidamente apaixonado. A parte de baixo de cada página de “Diary…” fala da relação da secretária com “C.” e, na parte do meio de boa parte das páginas o personagem principal é o noivo de “C.” – que tenta dar um golpe no escritor.
A maior parte da crítica preferiu os ensaios, que falam de diversos assuntos, como a guerra do Iraque, a matemática, Bach, a Al-Qaeda, a gripe aviária, ser fotografado, e por aí vai. Realmente, o refinamento do raciocínio de “C.” é extraordinário – mesmo discordando do que ele escreve, é impossível não admirar sua capacidade de persuasão e a originalidade de suas opiniões.
Mas eu mesmo preferi a história das partes de baixo das páginas de “Diary…”. A descrição da relação de Anya com seu noivo e com “C.” é admirável, e a maneira como ela vai ficando cada vez mais importante – e mais brilhante em todos os sentidos – na narrativa, ao mesmo tempo em que os dois homens vão desaparecendo na história, é coisa de mestre.
(publicado no blog do Mondo Bacana em 2010)
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