Existem escritores que marcam uma época de nossa vida e depois são meio que esquecidos. Outros marcam de maneira um pouco mais profunda: por mais que os deixemos de lado por uma época, acabamos retornando a eles mais cedo ou mais tarde. Já com o poeta austríaco Georg Trakl, comigo, a coisa vai um pouco mais longe: sou meio obcecado pela sua poesia desde que li um verbete sobre ele na antiga Enciclopédia Abril, aí pelo início dos anos 80. Mais de trinta anos depois, continuo lendo e relendo seus poemas, procurando tudo o que consigo encontrar de e sobre Trakl em sebos, na internet, onde for possível. Criei até uma página na internet (http://georgtrakl.diaryland.com – que abandonei há alguns anos e que infelizmente está com sérios problemas de formatação) só para guardar as coisas que encontro sobre o poeta por aí. Minha última aventura com Trakl é ler uma edição de suas poesias completas em espanhol, duas páginas por dia e com dicionário – ainda estou no começo da “aventura”.
Nascido em Salzburgo, na Áustria, em 3 de fevereiro de 1887 (fazia aniversário no mesmo dia que eu), Trakl tinha seríssimos problemas mentais e emocionais – era depressivo e esquizofrênico, e possivelmente teve um caso incestuoso com a irmã. Era viciado em drogas desde a adolescência e passou a ter acesso facilitado a elas quando se formou em farmácia. E foi com uma overdose de cocaína que Trakl de suicidou em 3 de novembro de 1914, durante a Primeira Guerra Mundial, com apenas 27 anos de idade: ele era oficial farmacêutico, e a guerra conseguiu abalar ainda mais seu complicadíssimo quadro mental. Segundo o verbete da Enciclopédia Abril supracitado, Georg Trakl, que tinha nascido sob o signo de Aquário, se suicidou sob o signo de Escorpião – o único animal capaz de se suicidar. Sua obra completa cabe, sem maiores apertos, em cerca de 200 páginas.
O filósofo Ludwig Wittgenstein dizia que não entendia a poesia do austríaco, mas que ela o deslumbrava – tanto que chegou a doar parte das suas economias a um grupo de escritores entre os quais Trakl estava incluído. É fácil concordar com Wittgenstein: nem sempre se consegue compreender o que o austríaco queria dizer, mas isso não importa.
Um aspecto importante da poesia de Georg Trakl está na grande beleza que ele cria com imagens absolutamente inesperadas. Por exemplo, a utilização do azul, o amarelo, o púrpura e o dourado em objetos ou seres que não costumam ser destas cores (“Pombas azuis / bebem de noite o suor gelado / que corre da fronte cristalina de Élis. / Eternamente ressoa / nos muros negros o vento solitário de Deus” ; “Terrível é o declínio da humana geração / Nesta hora, os olhos de quem a ele assiste enchem-se / Do ouro das suas estrelas” ; “Juntaram-se em fonte as imagens noturnas das lágrimas / Olhar dourado do princípio, escura paciência do fim” ; “A figura azul do Homem passava pela sua lenda”)
A putrefação e a morte também são aspectos importantes da sua poesia (“Oh, tão cheios de imundície e vermes os seus cabelos, / quando ele lá fica, com pés prateados, / e aqueles mortos saem de quartos desertos” ; “Do tapete surgem ossadas dos túmulos, / o silêncio das cruzes desmoronadas na colina / o cheiro doce do incenso no purpúreo vento noturno”), assim como a loucura (“Os degraus da loucura em quartos negros, / as sombras dos velhos sob a porta aberta”), as drogas (“Abrem-se azuis os olhos papoula de um anjo”) e a paixão incestuosa pela irmã (“Das tuas pálpebras Deus fez arcos. / Estrelas procuram à noite, filha de sexta-feira santa, / Na tua fronte, os arcos”).
Às vezes o melhor é nem comentar nada (“Uma canção à guitarra, que soa numa taberna estranha, / Os sabugueiros bravos além, um dia de Novembro há muito passado, / Passos familiares na escada ao crepúsculo, o aspecto de traves crestadas, / Uma janela aberta em que ficou uma esperança doce – / Indizível é tudo isto, ó Deus, que abalado se cai de joelhos”): melhor é só ler mesmo.
A foto que acompanha este texto é a reprodução de um selo austríaco comemorativo ao grande poeta, cuja obra é mais e mais estudada à medida que os anos passam.
(texto escrito no final de 2014)
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