É interessante como às vezes demoramos para entender certos artistas. Em outra ocasião eu tinha comentado como levei tempo para tomar consciência do real valor do tenor alemão Christoph Prégardien. Com o barítono Dietrich Fischer-Dieskau, normalmente considerado o mais importante do mundo no gênero lied (*), acabou acontecendo praticamente a mesma coisa.
Nos primeiros discos que ouvi com Fischer-Dieskau, este me pareceu pouco melodioso. Sua potente voz de barítono me parecia mais afeita ao discurso do que à melodia, dada a tendência dele – que eu acreditava existir – em se utilizar de um canto quase falado (e mesmo berrado às vezes).
Isto foi mudando à medida que eu fui ouvindo novos – e antigos – discos com o cantor. Repetidas audições recentes do lado A do meu velho LP com monumental sérieWinterreise, de Schubert (que eu, francamente, ouvi pouco desde que comprei) me fizeram recentemente achá-la superior àquela cantada por Christoph Prégardien… Não que eu creia que essa tendência seja definitiva, em absoluto: por ter uma voz ainda mais áspera nos graves que Prégardien, nem sempre considero o seu canto o melhor. Mas quando Fischer-Dieskau acerta, é extraordinário. O lied comentado aqui, Sehnsucht nach der Waldengend, de Schumann, com versos de Justinus Kerner (**), é um belo exemplo disso.
A letra da canção, em alemão, é a seguinte:
Sehnsucht nach der Waldengend
Wär’ ich nie aus euch gegangen,
Wälder, hehr und wunderbar!
Hieltet liebend mich unfangen
Doch so lange, lang Jahr’.
Wo in euren Dämmerunge
Vogelsang und Siberquell
Ist auch manches Lied entsprungen
Meinem Busen, frisch und hell.
Euer Wogen, euer Hallen,
Euer Sänseln nimmer müd’.
Eure Melodien alle
Weckten in der Brust das Lied.
Hier in diesen welten Triften
Ist mir alles öd’ und stumm,
Und ich schäu’ in blauen Lüften
Mich nach Wolkenbirden um
Wenn ihr’s in den Busen zwinget,
Regt sich selten nur das Lied:
Wie der Vogel halb nur singet,
Den von Baum und Blatt man schied.
A partir da tradução em francês inserida no encarte do cd fiz uma tradução literal para o português:
Saudade da Floresta
Se eu pudesse não tê-las jamais deixado,
Nobres e esplêndidas florestas!
Vocês que durante tanto tempo
Me abrigaram com amor!
Então na sua penumbra
Ressoavam o canto dos passarinhos e o murmúrio das fontes argentinas
Mais de um canto claro e jovial
Jorrou do meu peito.
Suas ondulações, seus ecos,
Seus murmúrios incessantes,
Todas as suas melodias
Fizeram nascer em mim estes cantos.
Mas agora, nestes vastos campos
Tudo me parece deserto e mudo,
E eu levo meus olhares em direção ao céu azulado
Para descobrir as figuras que as nuvens desenham.
Acontece raramente que um canto
Nasça de um coração apertado pela tristeza;
O pássaro, nem mesmo ele, é inclinado a cantar
Quando é retirado de sua árvore.
Neste lied Schumann une com maestria música e poesia. A primeira e a última estrofes – que respectivamente tratam do arrependimento do poeta em ter deixado a floresta e da tristeza presente – têm praticamente a mesma melodia e são soturnas e melancólicas. A terceira e a quarta, que versam sobre o contentamento do autor quando morava na floresta, são cantadas num crescendo: enquanto que os versos 5 e 6 ainda têm um pouco da tristeza do início do lied e os versos 7 e 8 já são um pouco mais alegres, a terceira estrofe é quase que totalmente jovial: as palavras Eure Wogen, eure Allen, que iniciam o verso 9, já vêm de súbito dar um tom mais feliz à canção. A quarta estrofe é de um lirismo e de uma beleza notáveis, e o verso 16 é cantado em ritmo desacelerado, preparando o terreno para a tristeza do final. O último verso do lied (o de número 20), é cantado lenta e tristemente (ao contrário do seu correspondente na primeira estrofe, o verso 4), em perfeita sintonia com a melancolia da letra.
É com extraordinária maestria que Dietrich Fischer-Dieskau passeia por todos estes estados de espírito. Mas é nas passagens dos versos 1 para 2, e 17 para 18, correspondentes com a mesma melodia na primeira e na quinta estrofes, que se sente o sopro do gênio. Os versos 1 e 17 são soturnos, graves, quase em tom de repreensão. Quando esperamos algo mais sério para a seqüência, Fischer-Dieskau canta de maneira absolutamente doce os finais dos versos 2 e 18. A suavidade de sua voz neste ponto, inesperada dado o tom sombrio do verso anterior, é totalmente convincente e arrebatadora.
E pensar que eu achava o canto dele pouco melodioso…
(texto escrito em 2002) ___________________________(*) lied é canção em alemão, cujo plural é lieder. Usualmente o termo é utilizado para nomear canções com voz e piano, gênero em que os grandes compositores de origem alemã do séc. XIX foram mestres .
(**) Este lied é encontrado no cd Vol. III (Robert Schumann) da coleção de gravações ao vivo de Fischer-Dieskau no Festival de Salzburgo (1957-1965). A gravadora é a Orfeo e quem acompanha o barítono é o pianista Gerald Moore.
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