Francisca era uma garota de programa que trabalhava num apartamento ao lado do Passeio Público. Passava o horário comercial ali, e a casa tinha, normalmente, uma alta rotatividade de clientes. Alguns eram muito bondosos, davam gorjetas e chegavam a pedir por programas de cinco horas. Outros eram asquerosos, tratavam-na mal, eram grosseiros — pelo menos estes, normalmente, chegavam rapidamente ao orgasmo e o programa era curto.
À noite, ela voltava para casa, um sobrado bem ajeitado no Umbará, onde morava com o marido. Pegava dois ônibus para ir para casa, o primeiro na Praça Rui Barbosa e o segundo no Terminal do Pinheirinho. Quando chegava, o marido lhe perguntava como tinha sido o dia. Ela dizia que trabalhava como cuidadora de uma senhora senil perto das Mercês, e ele aceitava sem problemas. O marido, que se chamava Paulo, trabalhava com transporte de bebidas e era um homem sério e compenetrado. Nos fins de semana, ele, a mulher e os três filhos assistiam aos cultos na Igreja Universal do Reino de Deus, a três quadras da casa deles. Como ela trabalhava de segunda a sexta, podia ir aos cultos de sábado e domingo sem maiores problemas. Às vezes a família ia visitar o pai dela, que morava em Matinhos, e era só assim que perdiam as cerimônias religiosas. Em algumas dessas ocasiões, Paulo assistia a um culto da mesma denominação lá no litoral, mas o mais comum era avisar ao seu pastor na igreja do Umbará que “naquele fim de semana eles iriam fazer a obrigação de dar uma atenção para o sogro, um velhinho muito bom, mas, infelizmente, distante da igreja”. O pastor então orava junto com Paulo pela conversão de Raul, o pai de Francisca.
Não se pode dizer que essa vida dupla não pesava na consciência da pobre Francisca, que realmente tinha trabalhado durante algum tempo cuidando de idosas. Quase meia década antes dos fatos narrados aqui, a última mulher sob seus cuidados morrera de uma hora para outra e ela ficara desempregada. Seu marido também estava sem emprego, e o desespero do casal era imaginável: eles tinham três filhos, sendo que nenhum dos três trabalhava e o mais velho tinha apenas dezoito anos.
Nessa situação desoladora — o pouco dinheiro que tinham economizado já estava no fim —, a irmã de Francisca, uma católica não praticante que não se importava com os chamados “moral e bons costumes”, sugeriu que ela começasse a vender seu corpo para ganhar dinheiro. Se Francisca quisesse, Raquel — a irmã — poderia lhe passar o contato de uma amiga dona de um apartamento que estava precisando de meninas para esse tipo de trabalho. Depois de muita hesitação, Francisca acabou conversando com a moça, e as duas combinaram que na semana seguinte ela começaria a trabalhar ali.
Francisca acabou gostando muito mais de trabalhar com sexo do que tinha imaginado. Tinha muito mais desejo sexual que o marido — frequentemente ia dormir insatisfeita porque ele não queria nada com ela — e os clientes, em sua maioria, a tratavam bem. Percebeu que não precisava se esforçar muito para ganhar muito mais dinheiro que antes: na verdade, em grande parte do tempo, o trabalho lhe dava prazer. Era assídua com os horários — a dona exigia que ela chegasse às sete da manhã e ela não poderia sair antes das cinco da tarde —, e não faltava nem quando estava muito resfriada. Para a família, como se pode imaginar, ela tinha dito que arranjara outro trabalho como cuidadora de idosos.
Sua consciência pesou mais no início da vida dupla: ela se sentia mal nos cultos, dada a incoerência entre o que era pregado e seu trabalho. Faltou a algumas cerimônias religiosas, mas teve que voltar a participar delas quando o marido disse que não era bom que ela continuasse se ausentando da casa de Deus. Então, recomeçou a frequentar as cerimônias. Quanto a seu dia a dia em casa, percebeu que nada se modificara e que, de certa maneira, seu trabalho no apartamento era apenas mais um trabalho: continuava sendo a boa mãe e esposa de sempre, carinhosa e atenta às necessidades da família.
***
Além dos problemas de consciência, que às vezes eram maiores, às vezes menores, Francisca se incomodava com o que ela chamava de “sombra”. Sempre que estava sozinha à noite andando na rua (que não precisava estar necessariamente deserta para que isso acontecesse), ela via um homem alto, com uma capa comprida e chapéu pretos. Às vezes ele estava na sua frente, normalmente a uns vinte metros de distância, mas às vezes ela sentia que ele estava atrás dela — e, quando se virava, lá estava ele. O pior nem era isso: o mais comum era Francisca olhar para ele, se distrair e, quando olhava de novo, ele sumia — normalmente para aparecer em outro lugar da rua, frequentemente distante do anterior, alguns minutos depois.
Ela sentia uma sensação estranha, uma espécie de calafrio, quando o via. No início, ela sentia bastante medo do homem misterioso, de quem nunca conseguiu ver direito o rosto — ele sempre aparecia à noite, e o chapéu aumentava a sua sombra, afinal de contas. Só sabia que ele usava uma barba, muito escura, aliás. Com o tempo, o medo diminuiu, mas não a sensação de desconforto que ele lhe trazia.
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Grandes mudanças na vida de Francisca tiveram início quando Paulo passou a chegar cada vez mais tarde em casa, devido a mudanças em sua escala de trabalho. Logo ele se estabeleceu num horário fixo na transportadora de bebidas: do meio-dia às oito da noite, de terça a sábado. Por isso, ele deixou de ir aos cultos do sábado — mas Francisca e os filhos não. Continuaram os mesmos bons crentes de sempre. Para ela, a principal diferença era a falta que o marido lhe fazia entre a hora em que ela chegava em casa — normalmente perto das seis da tarde — e a hora de Paulo, entre nove e dez da noite. Nesses períodos um tanto solitários, ela fazia o jantar, lavava roupas e assistia televisão. Os filhos raramente lhe faziam companhia: Júnior, o mais velho, normalmente estava na casa da namorada, que era da igreja também, enquanto as outras duas, Ana e Adriane, ou faziam suas lições de casa ou estavam com os amigos do grupo de jovens da Igreja Universal do Umbará.
Com a mudança de horário de Paulo, o jantar passou para as dez da noite, e todos os cinco — Paulo, Francisca, Júnior, Ana e Adriana — participavam juntos da refeição, que sempre começava com uma oração — normalmente a cargo do chefe da família, mas que podia ser feita por Júnior ou mesmo por Francisca.
Com este novo dia a dia, a vida sexual do casal passou por um arrefecimento. Depois do jantar, Francisca normalmente estava muito cansada para o sexo e acabava dormindo assim que lavava a louça — acordava às cinco e meia da manhã para chegar às sete no apartamento, afinal de contas. Paulo se queixava disso às vezes, mas entendia o lado da esposa.
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Outro acontecimento acabou ajudando um pouco a precipitar o drama desta história. Foi quando, em certa sexta-feira, os três filhos iriam para um retiro de jovens da Igreja Universal e Paulo e Francisca resolveram sair para jantar, só os dois — havia tempo que não faziam isso. Na volta, em uma pizzaria no Umbará mesmo, ainda no carro, Francisca, que estava extremamente excitada depois de ter tido uma sessão de sexo de quatro horas com um de seus clientes preferidos, mas com quem não tinha conseguido gozar, resolveu pegar no pênis de Paulo por cima da calça. Com pouco tempo de carícias, ela percebeu que ele rapidamente ficou ereto — então abriu o zíper e começou a fazer sexo oral no carro mesmo. Ele parou o automóvel numa rua deserta e ejaculou na boca de Francisca em pouco tempo. Ela percebeu que tinha adorado a experiência — mas Paulo, ele estava chocado. Apesar de não ter resistido, disse-lhe que a lascívia era um pecado e que eles não deveriam mais fazer isso. Ainda com um pouco de esperma na boca, Francisca, frustrada, respondeu-lhe que ele tinha razão e que esse tipo de coisa obscena não ocorreria mais.
Mas aquilo não lhe saiu da cabeça. Ela tinha descoberto ali que adorava “aventuras”, como passou a chamar esse tipo de relação sexual perigosa dali por diante, e o medo de ser pega lhe deu uma satisfação sexual que nunca tinha conhecido antes.
Passou, como se pode imaginar, a querer mais relações desse tipo.
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Possivelmente, nada de mais grave teria acontecido se ela não tivesse conhecido Rodolfo num encontro de estudos bíblicos num sábado à tarde. Ela gostava desses encontros que ocorriam na igreja do Umbará logo depois do almoço e antes do culto de sábado, já que gostava de saber mais a respeito da religião. Conforme comentado anteriormente, seu marido ia com ela antes da sua mudança de horário de trabalho, mas agora ela costumava ir sozinha, já que os filhos, nesse horário, estavam quase sempre no grupo de jovens do Templo Maior da Igreja Universal do Reino de Deus, na Rua João Negrão. O grupo de estudos em que Francisca ia tinha uma frequência variável, entre quinze e vinte e cinco pessoas.
Enfim, nesse dia específico, Rodolfo — membro da Igreja Universal da Fazenda Rio Grande, mestre de obras e ex-estudante de teologia — tinha sido convidado para guiar os estudos bíblicos. Sua pregação no grupo tinha sido sobre a parábola do rico e do pobre Lázaro, que é apresentada somente em Lucas (16; 19:31). Francisca nunca mais esqueceu as palavras finais da apresentação de Rodolfo:
— Vocês sabem o que Jesus quis dizer com esta palavra, igreja? Que, quando estivermos do outro lado, não vai adiantar a gente dizer para ninguém que conhece alguém que está bem. Sabem por quê? Porque quem está no Paraíso não vai poder ouvir! Ninguém vai ouvir quem estiver no inferno! Pensem nisso antes de caírem no pecado!
Francisca teve um estranho estremecimento com estas palavras. Não pelo medo de ir para o inferno — isso, de alguma maneira, não a preocupava mais depois de tantos anos trabalhando no apartamento —, mas pela força da palavra emanada por Rodolfo. Ele era um moreno alto, forte, com um pouco de barriga e com uma voz potente — bem diferente de Paulo, um polaco mirradinho, tímido e com um pênis um pouco menor do que a média dos que ela conhecia.
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Antes de terminar a pregação, Rodolfo passou o seu número de WhatsApp para quem quisesse falar sobre a palavra de Deus. Naquele momento, Francisca sentiu que seu sexo ficou molhado.
Estava com medo de falar com Rodolfo, mas sabia que não resistiria à tentação.
***
Já era começo da noite quando Francisca estava andando de volta para casa depois de ter conhecido Rodolfo. Foi quando a “sombra”, pela primeira vez, começou a andar ao seu lado. A rua estava completamente deserta, e na calçada estavam os dois, lado a lado, sem se falarem, Francisca e o homem misterioso todo de preto. Ela não sabia o que fazer e olhou para baixo — não queria ver o rosto dele, não mesmo.
Depois de uma caminhada de uns poucos minutos, ele sumiu. Não foi como das outras vezes, quando ele sumia quando ela estava distraída. Ele simplesmente desapareceu. Ela parou de ouvir seus passos, olhou para o lado e não havia mais ninguém.
Se fosse a primeira vez que tivesse visto a “sombra”, ela certamente ficaria apavorada, mas, como sempre o via, de certa forma já esperava por essa maior aproximação.
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Na segunda-feira seguinte, Francisca esperou um momento com poucos clientes e entrou em contato com Rodolfo pelo WhatsApp:
— Olá, Rodolfo, meu nome é Francisca e gostei muito da sua pregação de sábado.
Ele estava online e logo respondeu:
— Olá, Francisca, bom dia! Que bom que você gostou! Fico muito feliz quando consigo pregar a Palavra.
Então, ficaram uns bons minutos sem se escreverem. Francisca percebeu que assim não iriam longe — ela esperava que ele puxasse assunto, na verdade —, então escreveu o que tinha preparado mentalmente caso a conversa não se desenrolasse a contento:
— Rodolfo, você entende do livro de Jó?
— Ah, que bom que você me perguntou isso! Foi o livro que eu mais estudei nos meus anos de teologia…
Bingo, Francisca pensou. Perguntou-lhe então se ele podia lhe explicar sobre o livro, sobre o qual ela tinha umas dúvidas muito grandes. Ele respondeu que é claro que a ajudaria. Francisca então lhe disse que preferia conversar pessoalmente, porque ela não era muito boa com essa coisa de WhatsApp. Ele demorou um pouco para responder, e Francisca pensou que tinha andado rápido demais e que, quem sabe, tudo tivesse ido por água abaixo.
Depois de mais uns bons minutos de espera angustiada — mais tensa ainda porque um cliente tinha acabado de chegar —, ele respondeu que claro que poderia conversar pessoalmente com ela. Ela respondeu que teria que sair do celular dali a pouco, mas que para ela o melhor horário era entre cinco e meia da tarde e sete da noite. Ele respondeu rapidamente que estava fazendo uma obra no centro e que poderiam se encontrar no dia seguinte num pequeno café próximo da Praça Zacarias, onde ele estava tocando uma obra. Combinaram tudo então para as seis da tarde do dia seguinte. Ainda deu tempo de Francisca atender ao cliente, que já estava irritado com a demora.
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Andando na rua no mesmo dia, quase chegando em casa, Francisca viu a “sombra” encostada no muro da sua casa. Ficou em pânico, pensou em desviar o caminho e ir para outro lugar, mas preferiu encarar essa aparição que a incomodava desde que começou a trabalhar como garota de programa.
Chegando diante da “sombra”, simplesmente lhe perguntou:
— O que o senhor quer comigo?
Foi quando o olhou pela primeira vez. Embaixo do chapéu havia um rosto afilado, realmente lindo, com olhos verdes e penetrantes. Ele lhe falou assim:
— Sou seu anjo da guarda, Francisca.
Ela teve um estremecimento, não sabia o que responder. Olhou para baixo. O olhar da “sombra” a deixava sem graça. Quando olhou para cima de novo, ele já tinha sumido, e ela teve outro estremecimento.
Até então, ela nunca nem pensara em contar da “sombra” para alguém. Agora que a “sombra”, ou seu anjo, vai saber, falou com ela, pensou seriamente em desabafar com algum conhecido ou conhecida. Quem sabe agora que ele se disse “anjo” alguém na igreja poderia ajudá-la, quem sabe não achassem que ela estava louca.
***
Enfim, tudo deu muito certo com Rodolfo no dia seguinte. Ela pensou muito antes de decidir qual roupa iria vestir, mas acabou se decidindo pelo seu “uniforme” de todos os dias: calça jeans e camiseta, branca naquele caso; quando estava frio ela também usava uma jaqueta jeans. Uma das coisas que ela gostava na Igreja Universal do Reino de Deus, aliás, é que não havia nenhuma orientação para que os fiéis usassem roupas “de crente”, com vestidos pretos longos e camisas grandes e folgadas — como ocorria, por exemplo, com os fiéis da Assembleia de Deus.
O último cliente saiu às cinco e quinze, e ela ficou se maquiando até às cinco e meia para falar com Rodolfo. As colegas estranharam o cuidado de Francisca, que nunca se pintava antes de sair e, brincando, lhe perguntaram se ela teria um encontro. Ela riu, respondeu que não, que estava só se ajeitando mesmo.
***
Ela chegou um pouco antes de Rodolfo, que logo se lembrou dela como aquela “moça quieta” na primeira fila do encontro do sábado passado. Trocaram algumas poucas informações sobre suas vidas — os dois casados, ela com três filhos, ele com dois, já casados também — e Francisca, que estava nervosa pelo inusitado da situação, começou a lhe fazer as perguntas que tinha preparado:
— Por que Jó, que era tão bom, teve de sofrer tanto?
— Ah, eu duvido que algum ser humano, seja pastor, seja crente, seja ateu, consiga ter certeza na resposta! Não podemos nos esquecer que Deus faz o que lhe dá na telha! — respondeu Rodolfo.
Essa expressão meio desabusada de Rodolfo surpreendeu um pouco Francisca que, àquela altura, estava excitada de verdade ao falar com ele.
— Você acha certo dizer que Deus faz “o que lhe dá na telha”? — ela pergunta, gostando do rumo da conversa.
— Mas é a pura verdade!
E os dois começaram a rir de um Deus que faz o que bem lhe entender.
Um pouco mais séria, Francisca insiste:
— Mas não há nenhuma dica sobre a razão de Deus ter feito o que fez com Jó?
— Ah, claro que tem! Primeiro, Jó reclama demais. Depois, não entende por que Deus faz tudo aquilo com ele. Na verdade, não temos que entender Deus, temos que fazer o que temos de fazer, amando-o e obedecendo-o sempre.
E assim Rodolfo continuou a falar sobre a bondade de Deus, sobre como Ele nos ama tanto que deu seu próprio filho como Holocausto, em como sua misericórdia é infinita. À medida que ele falava, Francisca ficava mais e mais entusiasmada. Ela tinha estudado pouco — saíra da escola na terceira série do ensino fundamental — e lia com dificuldade. Frequentemente, inclusive, seus filhos, que eram todos estudantes já no ensino médio, corrigiam as palavras que ela escrevia errado no WhatsApp (do mesmo modo que o autor desta história). Deste modo, as palavras maravilhosas que Rodolfo ia despejando com facilidade eram um verdadeiro novo mundo para ela — não que ele falasse coisas muito diferentes do que os pastores falavam, mas eles eram muito distantes dela, muito sérios, quase irreais. Não eram pessoas que dessem muita atenção para ela, sempre quieta na igreja por medo de falar alguma bobagem.
Rodolfo não, ele realmente estava interessado nela. Fazia-lhe perguntas, queria saber sua opinião mesmo em assuntos mais complexos. Ela se sentiu inebriada pela atenção daquele moreno forte, alto, e que devia ter um pênis grande. Não por nada, mas ela achava que ele devia ter.
***
Eram sete da noite quando Rodolfo lhe perguntou se precisava de uma carona até em casa.
— Não, Rodolfo, moro muito longe, no Umbará, não precisa se incomodar.
— Deixa que eu te levo. É caminho para a Fazenda Rio Grande. Você se lembra que eu moro lá?
— Ah sim — respondeu Francisca. Você falou mesmo na apresentação.
— Então, vamos?
Francisca não esperava por essa. Tinha pensado apenas em manter contato com ele, e saber aos poucos se ele seria o homem com quem teria as “aventuras” que estava querendo tanto. Agora ela teria Rodolfo ali a seu lado, só os dois no carro. Ela achava que não conseguiria resistir.
***
E não resistiu mesmo. Os dois já estavam no carro — um Logan vermelho, ano 2012 — e foi na altura do Viaduto do Colorado que ela resolveu colocar a mão na coxa dele. Ele não teve nenhuma reação, o que surpreendeu um pouco Francisca — eles já estavam em silêncio há uns cinco minutos: ela foi ficando quieta, aliás, porque achava que poderia agir com mais facilidade nessa situação. Eles já estavam na BR-116 quando ela abriu o zíper da calça dele e tirou seu pênis de dentro da calça: como ela tinha bem desconfiado, ele era grande e grosso. Era circuncidado também, e ela ficou maravilhada com aquela cabeça enorme. Abaixou-se para começar o sexo oral, quando com a mão dele a parou. Ela ficou assustada, achando que ele iria denunciá-la na igreja, ou para seu marido, sabe-se lá. Mas não. Ele simplesmente falou, com calma:
— Você quer ir para algum lugar?
— Pra onde você quiser.
Ele dirigiu mais uns poucos minutos e logo entrou no primeiro motel que apareceu na BR. Entre excitada e assustada, Francisca teve seu primeiro caso extraconjugal fora do apartamento em que trabalhava. O primeiro caso extraconjugal de verdade, como ela pensou depois: sem envolver dinheiro.
***
Antes que Rodolfo fosse deixá-la em casa, no Umbará, Francisca lhe pediu para ficar a umas duas ou três quadras de onde morava — não era por nada, mas ela não queria dar na vista. Ele aquiesceu. Eram nove da noite ainda e ninguém tinha chegado, nem os filhos, nem o marido.
E ela já tinha avisado no grupo de WhatsApp da família que chegaria atrasada, porque a cuidadora noturna da Dona Roberta — a fictícia senhora de quem ela cuidava — chegaria atrasada.
No curto trajeto para casa, ela viu a “sombra”. Ele estava andando, uns dez metros diante dela, e sumiu pouco tempo depois.
Pela primeira vez na vida, ela achou que aquela aparição poderia ser só uma loucura da cabeça dela.
E se fosse? Ela ficaria louca? Já estava louca?
***
Quarta-feira de manhã, Francisca acordou dividida entre a satisfação pela lembrança do prazer que tivera na véspera e a consciência pesada de agora ser uma adúltera de verdade, sem nenhuma justificativa devida ao trabalho — por sorte, o pensamento de que ela pudesse estar maluca já tinha ficado no passado.
Ela também tinha medo da reação de Rodolfo: será que ele continuaria com o caso? Será que simplesmente a esqueceria para sempre? Devido à verdadeira bagunça que sua vida poderia tornar-se, agora que, além de garota de programa, poderia estar começando um caso extraconjugal estável — pois era isso mesmo que ela estava querendo, naquele momento —, ela tinha esperança, misturada com medo, de que Rodolfo não entrasse mais em contato com ela.
Então a quarta-feira se passou em brancas nuvens. E depois, a quinta. Na sexta, ela já estava quase esquecendo do assunto quando recebe uma mensagem pelo WhatsApp de Rodolfo:
— Bom dia, irmã.
— Bom dia, Rodolfo — não respondeu mais nada, pois estava furiosa com ele.
— Então, vamos ter mais uma aula?
Francisca ficou indignada. Que sujeito cafajeste.
— Vamos — ela respondeu. Afinal de contas, ele era inteligente, culto e com um pênis maravilhoso.
Desta vez não houve café antes, só motel.
Francisca disse para a família que teve problemas no trabalho, e quando chegou em casa, novamente ninguém tinha chegado. Ela já estava pensando em dizer para todos que provavelmente seus horários mudariam — os de Paulo já não tinham mudado?
***
No encontro de sexta-feira, Rodolfo contou por que não tinha entrado em contato com Francisca durante dois dias. É que ele tinha medo de usar o WhatsApp, já que a mulher dele às vezes mexia no seu celular — coisa que Paulo, marido de Francisca, jamais cogitara fazer. Então, na sexta-feira, como estava na obra e sabia que a mulher não poderia mexer no seu aparelho, ele decidiu lhe mandar uma mensagem.
— Mas você não trabalhou na quarta e na quinta? — perguntou Francisca. Por que não me mandou nem um oi?
— É que eu tive que ficar em casa resolvendo um problema de esgoto lá em casa.
— Ah, ok.
Francisca não aceitou direito a desculpa, mas preferiu deixar o assunto de lado. Mas Rodolfo tinha outro plano e perguntou:
— Alguém na sua família tem o Telegram?
— Nem sei o que é isso.
— Então, é um programa como o WhatsApp, só que é menos conhecido, então é mais difícil que a minha mulher descubra sobre a gente, se a gente se falar por lá.
— Bem, você que sabe.
— E tem mais: o Telegram tem um dispositivo que permite que cada usuário apague todas as mensagens da conversa, das duas pessoas.
— Como assim?
— Quem quiser apaga o histórico inteiro. Ninguém vê mais nada. Quer testar? Deixa eu pegar o teu celular, e instalo o Telegram pra você.
Em poucos minutos o programa está instalado.
Conversavam nus e deitados na cama do motel. Rodolfo se levanta, dá a camisa — social cinza — que está usando para ela, que se levanta e a veste. Ele então tira uma série de fotos dela, só de camisa: em algumas ela mostra o sexo, em outras as nádegas, e em outras ainda ela faz a camisa dele cobrir tudo. Ela adora, se acha linda. Ele então manda todas as fotos para ela pelo Telegram. Ele mostra para Francisca o jeito de apagar para que ela apague todo o histórico para os dois. Ela faz isso e ele lhe mostra seu próprio aplicativo, já sem fotos.
— Que pena! — disse Francisca. Eu saí tão bem nas fotos.
— Eu te mando de novo.
Depois, eles se abraçaram e transaram pela segunda vez na noite.
***
Começou então a melhor fase da vida de Francisca, quando a relação entre ela e Rodolfo foi seguindo sempre por estágios, o posterior sempre melhor que o anterior. Ela chamava esta fase de “ano maravilhoso” — embora não tenha certeza da sua duração total, que pode ter sido um ano só, ou mais que isso.
Se a utilização do Telegram deixou o amante mais tranquilo em relação à própria mulher, para Francisca — que, como já comentei, não tinha problemas com privacidade no celular — o Telegram passou a significar o depositário de vídeos eróticos. Quando ela não podia sair à noite com Rodolfo, por qualquer motivo que fosse, os vídeos de sexo entre os dois — que ele gravava no próprio celular e depois lhe enviava pelo Telegram — serviam-lhe como auxílio para suas sessões de masturbação solitária antes de a família chegar à noite.
Outro novo estágio na relação entre os dois amantes se deu quando Francisca comentou para Rodolfo que sentia falta de alguma aventura — ela dizia que motel era bom, afinal de contas, mas que ela precisava de algo a mais para apimentar a relação. Foi quando ele teve a maravilhosa ideia de mostrar os parques da cidade para ela — e Francisca nem sabia que a cidade os tivesse em tal quantidade. Ela até conhecia aqueles mais próximos do Umbará (aqueles em direção a São José dos Pinhais, como o Zoológico e o Parque do Iguaçu), mas nenhum mais para a Zona Norte da Cidade, como os parques do Barreirinha, Barigui, Tingui e Tanguá.
Ela até hoje gosta de se lembrar da primeira vez em que foi visitar um parque com Rodolfo. Ele inicialmente tinha lhe dito que naquele início da noite os dois iriam fazer uma coisa “diferente”. Ele então a pegou de carro onde ela lhe dizia que trabalhava, no Largo da Ordem — cuidando da mesma dona Roberta fictícia, que morava nas Mercês segundo a versão para a família dela — e foram seguindo na direção norte até chegarem no Parque Tingui.
Já estava escuro quando eles saíram do carro e foram andando de mãos dadas pela ciclovia que fica no meio do parque, até que ele viu uma pequena região de bosque mais fechado, perto do Memorial Ucraniano, e os dois entraram juntos na mata. Pararam num local distante, difícil de ser acessado por outras pessoas, e ela então se ajoelhou e começou a chupar aquele pênis que amava. Não deixou que ele ejaculasse na sua boca, pois queria ser penetrada ali mesmo, de pé para não se sujar muito no chão. Quando finalmente se vestiram, repararam que um homem olhava tudo, a uns cinco metros de distância, na pouca luz que havia naquela hora. Eles não souberam direito o que fazer, e então simplesmente foram andando até o Logan 2012 como se nada tivesse acontecido — e não viram mais o tal homem.
Este acontecimento a assustou — mas a excitou ao mesmo tempo. Em todos os muitos passeios sexuais nos muitos parques da cidade que fizeram naquele “ano maravilhoso”, apenas mais uma vez foram observados com certeza, por um homem no Parque Tanguá que não só ficou olhando a relação sexual entre os dois, como ainda colocou o membro para fora. Quando Rodolfo e Francisca perceberam a presença do homem de pé, se masturbando olhando para eles, resolveram continuar o que estavam fazendo, pois estavam excitados demais para pararem. Também desta vez o voyeurismo não teve nenhuma consequência.
Outro tipo de “aventura” sexual era o sexo no carro. Os dois foram com o Logan 2012 de Rodolfo para praticamente todos os drive-ins da cidade. Mas, claro, quando a excitação batia, eles transavam próximos da BR-116, no caminho para a casa dos dois, ou até mesmo na frente de praças pouco frequentadas. Os filmes gravados no carro — pelo amadorismo e pela enorme excitação envolvida — acabavam sendo os preferidos para auxiliar Francisca em seus momentos de prazer solitário, nos dias em que não via seu amante.
Aliás, é importante acrescentar que, se Rodolfo impressionava Francisca pelo conhecimento dos parques da capital paranaense, na hora do sexo propriamente dito os papéis se invertiam. Rodolfo tinha se casado virgem — como Francisca, aliás —, e não tinha tido experiências fora do sexo convencional. Embora a Igreja Universal do Reino de Deus basicamente não critique nenhum aspecto do sexo entre um casal, Isabella — a mulher de Rodolfo — se utilizava da religião para não fazer sexo oral no marido, por exemplo, atividade sexual que sempre tinha sido uma das preferidas de Francisca. Rodolfo, além disso, nunca tinha praticado sexo anal com nenhuma mulher, e teve um prazer tão grande em sua primeira vez com Francisca que constantemente ficava pedindo por essa atividade.
De todo modo, certas atividades sexuais mais ousadas que às vezes os clientes pediam para que Francisca praticasse no apartamento onde trabalhava não eram reproduzidas no sexo com Rodolfo, ou porque lhe causavam desgosto, ou porque ela simplesmente não queria que o amante soubesse o quão versada em sexo ela realmente era.
***
A “sombra” nunca mais tinha falado com Francisca depois daquela vez na frente do portão, mas ela continuava vendo o homem — ou seria anjo? — todas as vezes que estava sozinha na rua.
Até que um dia — ainda durante o “ano maravilhoso” — o homem apareceu ao lado dela. Caminharam uns dez passos e ele lhe falou:
— Pureza, palavra horrível.
Continuaram caminhando mais um pouco, até que ela se distraiu e ele sumiu.
Com toda a excitação e prazer que esta relação extraconjugal estava lhe trazendo, não se pense aqui que a cultura religiosa tinha sido menosprezada por Francisca — muito pelo contrário, aliás, ainda mais que às vezes ela acreditava que a “sombra” era seu anjo da guarda mesmo. Como ex-estudante de teologia e pregador eventual em grupos de estudos bíblicos da Igreja Universal, Rodolfo tinha um razoável cabedal de conhecimentos sobre os Evangélicos, sobre algumas das cartas de Paulo e sobre alguns livros do Velho Testamento, se destacando aí o já citado livro de Jó, os Provérbios e as profecias que se referiam a Jesus — Francisca chegou a chorar quando, com a Bíblia aberta, Rodolfo leu e lhe explicou a parábola do Servo Sofredor em Isaías. Mas nunca liam a Palavra nus, é importante que se ressalte. As leituras muitas vezes aconteciam em bares e restaurantes da capital paranaense, quando a satisfação era de mão dupla: Rodolfo feliz por ser admirado por seu conhecimento teológico, e Francisca feliz porque uma pessoa tão inteligente e culta ouvia com tanta atenção suas dúvidas a respeito da fé.
Havia mais do que sexo no relacionamento de Rodolfo e Francisca, nunca é demais ressaltar.
***
Enfim, no “ano maravilhoso”, de uma forma um tanto surpreendente para quem vê a história de longe, Francisca passou a ser uma mãe ainda mais presente na educação dos filhos e uma mulher mais carinhosa do que já era. Sempre atendera aos filhos pelo celular — por mensagens, quase sempre — quando estava trabalhando no apartamento, e agora também fazia o mesmo quando estava com Rodolfo.
Do mesmo modo, a sua mudança de horário para cuidar da fictícia Dona Roberta acabou sendo aceita com tranquilidade pelos três filhos e pelo marido, e ela então podia chegar em casa até às nove e meia da noite sem maiores problemas. Até porque a Francisca “da casa” aparecia com todo seu esplendor nos finais de semana, quando ela lavava a roupa acumulada, fazia comida — e a congelava — para a semana inteira, limpava a casa, fazia faxina.
Até a presença constante da “sombra” quando caminhava sozinha não a estressava mais. Seria ele mesmo seu anjo da guarda? Pena ele ser tão quieto, Francisca pensava — baseado em testemunhos de crentes na Igreja que acreditavam ter conhecido anjos na forma de desconhecidos que falavam pelos cotovelos, ela acreditava que anjos eram seres faladores.
***
O fim do “ano maravilhoso”, como Francisca ainda hoje chama aqueles dias de excitação e — por que não? — autoconhecimento, começou com uma grande mensagem pelo Telegram de Rodolfo, que dizia mais ou menos o seguinte:
— Meu amor, minha vida não é nada sem você. Os ventos me trazem a sua presença, as flores desabrocham querendo te ver, a chuva traz a vida para você, a natureza ama por você. Meu amor, penso em você pela manhã e à noite, à tarde e ao meio-dia. Vivo com sua presença como se fosse uma tatuagem, como se fosse parte de mim. Amor, eu te amo, eu te quero, eu te amo, eu te venero. Amor, eu preciso de você.
No que Francisca prontamente respondeu:
— Obrigado, amor, também te amo.
Aqui é preciso um parêntese: desde o início de seu relacionamento, Rodolfo e Francisca tinham estado de acordo que a relação deles era informal, que não haveria sentimento envolvido, mas somente diversão. Uns meses antes, Rodolfo já tinha começado a dizer — tanto pessoalmente quanto por mensagens — que amava Francisca. Desde o início, ela não gostara muito da novidade, mas respondia laconicamente que também o amava. De modo que o descrito logo acima não era muito diferente do que estava acontecendo nos últimos tempos.
A novidade veio a seguir, em uma mensagem de Rodolfo pelo Telegram:
— Meu amor, eu te amo, eu quero largar a minha esposa e ficar com você.
Francisca ficou chocada, sem saber o que responder. E não respondeu. Mais alguns minutos se passaram e Rodolfo volta à carga:
— É sério, meu amor. Eu não aguento mais, preciso de você, preciso me casar com você!
Francisca ficou realmente preocupada e acabou respondendo o amante:
— Meu amor, não posso largar minha família, você sabe disso…
— NÃO SEI DE NADA! EU TE AMO E TE QUERO!
Francisca sabia que, naquele dia, Rodolfo estaria de folga. Será que estava bêbado? Era só o que faltava!
— Quando você estiver mais calmo, a gente conversa — Francisca respondeu. E bloqueou o número do amante no celular.
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Infelizmente, esse tipo de conversa passou a ser muito comum nos meses que se seguiram: Rodolfo implorando para que os dois abandonassem seus companheiros para ter uma vida a dois juntos, e Francisca furiosa com essas ideias do amante. Brigavam e voltavam a se falar numa média de quase duas vezes por semana. Às vezes Francisca dava uma dura maior e ficava até dez dias sem relações com Rodolfo; para que ela o perdoasse nessas ocasiões, o que normalmente acontecia é que ele tivesse que deixar de lado as ideias de viverem juntos. Mas isso não demorava muito e logo ele voltava com grandes e longas juras de amor e pedidos para uma união de corpos.
Nessa época, frequentemente Francisca prometia a si mesma que “nunca mais” falaria com Rodolfo — mas bastava ela desbloquear o celular que se rendia a alguma mensagem romântica dele. “Eu não sei o que esse homem consegue fazer comigo”, dizia Francisca para um cliente que sabia do seu relacionamento com Rodolfo e que se divertia muito com a história dos dois.
E, do mesmo modo que naquela famosa música, depois das brigas o sexo entre os dois amantes era mais quente do que nunca. O fato é que Francisca sentia muito a falta física de Rodolfo. Os dois amantes continuavam ainda a falar sobre assuntos espirituais — mas boa parte do tempo anteriormente dedicado a estes assuntos, infelizmente, passou a ser despendido com brigas e discussões. Além disso, à medida que Rodolfo ficava mais e mais obcecado em viver com Francisca, menos se satisfazia com sexo vaginal, e mais desejava sexo anal. A preocupação com o estado psicológico do amante preocupava cada vez mais Francisca.
Esse período de brigas foi o primeiro estágio da segunda fase — esta, jamais nomeada, ao contrário da primeira, o “ano maravilhoso” — do relacionamento entre Rodolfo e Francisca.
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Foi durante a segunda fase que a “sombra” conversou com ela novamente. Eram umas seis da tarde, e o homem de preto estava na frente do portão da casa dela, como da outra vez. Ele falou assim:
— Francisca, por que você continua com esse homem?
— Porque eu tenho muito prazer com ele, não sei explicar como ele mexe comigo…
— Você já tem tantos clientes, já faz sexo o dia inteiro — ele retorquiu.
— Mas nenhum deles me faz eu me sentir desejada.
— Mas é diferente.
— Mas ele não é o homem certo. Ainda há tempo. Não diga que eu não avisei.
Ela sentiu um tremor graças à “sombra” — que sumiu logo em seguida — como não sentia há muito tempo já.
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Assim como cada estágio da primeira fase — o “ano maravilhoso” — do relacionamento entre eles era melhor que o anterior, na segunda fase cada estágio causava mais estresse e sofrimento que o anterior.
O segundo estágio da segunda fase começou com uma mensagem recebida no Telegram de Francisca:
— SUA VAGABUNDA, LARGUE DO MEU MARIDO! SEI TUDO O QUE VOCÊ E MEU MARIDO FIZERAM!
O nome de quem tinha mandado a mensagem era Isabella, exatamente o nome da mulher de seu amante. Sem saber o que fazer, inicialmente Francisca bloqueou o número da Isabella. Depois mandou uma mensagem para Rodolfo:
— SUA MULHER ME ESCREVEU! DISSE QUE ESTÁ SABENDO DE TUDO!
O amante estava offline.
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Francisca estava no apartamento onde trabalhava quando isso tudo aconteceu e ficou, como se pode deduzir, num estado muito abalado. E o tempo foi passando: veio um cliente, depois outro, depois outro. E nada de Rodolfo responder.
Ela já estava no ônibus, voltando para casa, quando Rodolfo escreve pelo Telegram:
— Oi, amor, o que houve?
— Sua mulher! Me escreveu que está sabendo de tudo!
Rodolfo ficou chocado. Tinha passado o dia todo numa obra na região metropolitana onde o celular não tinha sinal e por isso não respondera a Francisca. Na falta de alguma ideia melhor, os dois combinamos que iriam esperar como Isabella reagiria com o marido. Ela não tinha entrado em contato com ele, e este não podia simplesmente vir se queixar de que ela tinha tratado mal sua amante — afinal de contas, ele não tinha uma amante, para todos os efeitos.
Francisca então se lembrou do que a “sombra” tinha lhe dito alguns dias antes, de que ainda havia tempo para deixar dele.
Será que ainda havia mesmo tempo?
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E assim se passou mais uma semana: Isabella às vezes dava um olhar mais significativo para o marido, que fazia de tudo para fingir que não sabia de nada. E Francisca continuava com o número de Isabella bloqueado.
Ainda as coisas estavam assim quando surgiu uma nova característica de Francisca: o ciúme e a vontade de provocar a mulher do amante. Começou assim: Francisca, que sempre utilizava uma foto sua normal — com calça jeans e camiseta — como avatar de seu perfil do Telegram, mudou-o para uma mensagem escrita simplesmente “Te amo, meu amor”, com um coração embaixo dos dizeres. E desbloqueou a mulher de Rodolfo. E assim ela ia mudando o avatar do seu perfil, com mensagens cada vez mais explícitas: “Não sei viver sem você”; “Meu corpo precisa do teu”; “Sou toda sua, meu amor” — esta última mensagem com uma mulher nua estilizada abaixo dos dizeres.
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Foi nessa fase de ciúme de Francisca que a “sombra” falou com ela de novo. Ela estava chegando em casa, ele andando ao lado dela, quando ele olhou bem no fundo dos seus olhos, com aqueles olhos verdes lindos, e perguntou:
— Ciúme, agora?
Francisca, que nunca tinha brigado com a “sombra”, não aguentou e gritou:
— Você vem, me segue, aparece do nada e me vem com umas mensagens nada a ver! Quem você acha que é?
— Seu anjo da guarda — a “sombra” respondeu.
E riu.
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A provocação diária pelo Telegram — importante destacar que Francisca não usava este aplicativo para conversar com a família, mas apenas com Rodolfo — acabou tendo suas consequências. Foi assim: uma manhã, mais ou menos um mês depois de Francisca ter modificado pela primeira vez seu avatar, Rodolfo escreveu para Francisca:
— Meu amor, precisamos conversar.
O tom era estranho. Os dois se conversavam quase todos os dias, e continuavam a fazer sexo de três a quatro vezes por semana. Por que “precisavam conversar”? Mas ela respondeu somente isso:
— Ok, amor.
Quando se encontraram, aí pelas seis da tarde no Logan 2012, Rodolfo comenta com Francisca:
— Minha mulher me tocou de casa.
Sem saber o que fazer, Francisca respondeu:
— E você, o que vai fazer?
— Vou sair! Estou feliz! Quero viver com você!
— Mas eu já disse que não posso largar minha família.
Os dois ficam num silêncio tenso, e Francisca perguntou:
— Bem, e como é que ela descobriu?
— Mexendo no meu celular, só isso. Descobriu que o Telegram existe, e viu um monte de foto tua chupando o meu pau — Francisca ficou com vontade de rir com o comentário, mas preferiu só responder:
— Mas você não me dizia sempre que apagava as mensagens pra você?
— Pois é. Mas aquelas fotos são tão lindas… — e começou a chorar.
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No dia seguinte, Rodolfo escreve para Francisca que já não dormiria em casa. O único filho dos dois, Rodrigo, que tinha quinze anos de idade e fazia curso técnico em edificações, ficaria com a mãe. E ele moraria num pequeno hotel do centro até arranjar um lugar definitivo.
E assim alguns meses foram se passando: Rodolfo insistia cada vez mais para que Francisca deixasse da família dele, dizendo que não aguentava mais viver sozinho, e ela cada vez mais estressada — seria uma ótima ideia deixar de Rodolfo de vez, Francisca pensava consigo; mas ela não aguentava ficar longe dele, e estava gostando cada vez mais de colocar avatares provocativos no Telegram, porque tinha certeza de que Isabella via tudo.
E a “sombra” aparecia sempre, e não falava nada.
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Um dia Francisca teve uma ideia: passar um sábado inteiro com o amante. Eles poderiam ir a alguns parques, poderiam transar no carro, poderiam ir a um motel, tudo no mesmo dia — um dia inteiro dedicado ao sexo. O que Rodolfo achava da ideia?
— Este sábado não posso, tenho uma obra em Pinhais…
Francisca nem sabia dessa obra em Pinhais, achou estranha a resposta dele e desconfiou de algo específico. Mas já sabia o que fazer, e com paciência pôs seu plano em prática: nas quatro semanas seguintes, pediu para Rodolfo que tivessem um sábado dedicado inteiramente ao sexo, e Rodolfo recusou seguidamente. Foi na última recusa que ela fez a pergunta que estava preparando há quase um mês:
— Você está com sua mulher, né?
— Estou sim — respondeu ele, envergonhado.
Os dois estavam próximos da Praça Rui Barbosa neste momento, e Francisca exigiu sair do carro. E prometeu para ele — e para si mesma — que nunca mais falaria com o amante. Era muita cafajestada, pensou.
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E foi atravessando uma rua próxima da Rui Barbosa que aconteceu uma coisa que poderia ter sido trágica. Ela não lembra direito do que aconteceu, se escorregou, se um carro “furou” o sinal vermelho, se ela tinha culpa ou não, se ela tinha sido imprudente, se o freio do carro não funcionou direito, ou se foi só um problema do trânsito horroroso de Curitiba.
Ela se lembra de alguns detalhes: estava no meio da rua quando um sujeito, correndo, pegou-a pela cintura e se jogou abraçado com ela na calçada. Ele fez de tal jeito que ela quase não teve nenhuma escoriação. Ele tinha os cabelos escuros, era alto, e olhou com seus profundos olhos verdes para ela e lhe perguntou:
— Está bem, moça? Você quase foi atropelada, ainda bem que deu tempo de te tirar do caminho do carro, que estava em excesso de velocidade.
Era “a sombra”! Sem chapéu, com uma camiseta branca com motivos de surfe, e na frente de um monte de gente. E à luz do dia.
Logo outras pessoas se juntaram para saber se ela estava bem. Estava. Assim que ela se levantou, a “sombra” falou para ela, bem baixinho para ninguém mais ouvir:
— Precisando de mim, me avise. Você sabe onde me encontrar.
E saiu, tranquilamente, no meio da pequena multidão que se formou.
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Creio que não seria errado chamar o próximo estágio da relação entre Rodolfo e Francisca de “estágio das brigas feias”, e que durou mais alguns meses. Os dois brigavam por qualquer motivo. Rodolfo acusava Francisca de não querer deixar o marido para ficar com ele — o que, em última análise, era verdade, como sabemos. Francisca acusava o amante de prometer coisas que não podia, nem queria, cumprir — o que também estava longe de ser falso.
A última briga que tiveram nesse estágio aconteceu num motel e está reproduzida abaixo.
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Rodolfo chorava, dizia que iria sim largar a mulher em seguida, e ela responde:
— Não é a primeira vez que você diz que vai largar ela, e eu estou esperando faz um tempão.
— Mas é verdade!
— Mas vai largar quando? Semana que vem?
— Semana que vem não posso, ainda não sei onde vou morar, ainda temos a casa, que ninguém sabe com quem vai ficar…
— E ainda tem essa maldita casa!
— Pois é, mas o que você quer que eu faça?
— Largue dela, ou pare de me prometer essa bobagem.
Rodolfo começa a chorar.
— Tenho tanta pena de você, Rodolfo — responde Francisca, com ironia.
— Mas é verdade, não ria do meu sofrimento.
— Quando a gente começou, a gente combinou que iria só aproveitar a vida. Aí você se apaixonou. Aí falou que não podia viver sem mim. E eu na minha, com meu marido. Aí você começou a pedir pra eu deixar dele e ficar com você. Mas nem largar da tua mulher você larga! — Francisca já estava gritando.
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A briga reproduzida acima não teve nada de especial em termos de originalidade, e não foi muito diferente das que grassavam a relação dos dois há já um bom tempo. O problema aconteceu logo depois.
Assim que chegou em casa, naquela noite, Francisca viu Paulo esperando-a no jardim de entrada da casa. Ele falou, baixo:
— Francisca, precisamos conversar.
— Ok — respondeu ela, tentando manter a calma.
Com os dois sentados na sala, Paulo mostra o celular para ela, e pede que ela veja uma conversa específica no WhatsApp. Era uma curta mensagem de texto de Rodolfo, dizendo “veja o que sua mulher anda fazendo comigo”, e uma série de fotos: algumas com os dois nus — fazendo ou não sexo — e outras com os dois vestidos, mas se beijando; tinha fotos deles jantando e almoçando também. Por sorte — se é que se pode chamar de sorte — não tinha nenhum vídeo com os dois transando. Depois que ela viu as fotos, Paulo pergunta:
— Faz tempo que isso está acontecendo?
— Faz uns anos já.
— Eu falhei com você?
— Sim, há um bom tempo eu tenho me sentido esquecida, Paulo. Então, pode ter falhado, mesmo que você não mereça a traição.
Então os dois começam uma longa conversa, cuja conclusão foi mais ou menos a seguinte: se Francisca quisesse, ele a perdoaria e tentaria ser um marido melhor. Com medo de perder o contato com os filhos, furiosa com Rodolfo por ter contado tudo para o seu marido, e feliz com Paulo por ter sido compreensivo — ela mesma achava que não seria tão bondosa se estivesse no lugar dele —, Francisca acabou decidindo ficar com o marido e deixar o amante para sempre.
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A história não acabou aqui.
Paulo e a mulher ainda combinaram que ela teria que liberar o acesso do celular ao marido, que atualmente o vasculha com atenção quase que diariamente. Mais do que isso, ele pediu para voltar ao seu horário anterior na transportadora, e não só chega mais cedo em casa, como pede para que a esposa mande fotos de onde está durante o dia. Por sorte, ele só não exige que ela tire fotos da casa da fictícia dona Roberta, porque a esposa lhe contou que a família da velhinha não permitia que ela tirasse fotos lá de dentro — o que é bastante compreensível, por motivos de segurança, e Paulo aceitou.
Agora Francisca tem saudade de suas “aventuras”, que provavelmente não voltarão mais, com ninguém mais. Mas isso nem é o pior: o que realmente a assusta é o pânico de que o marido descubra a verdadeira atividade profissional dela. Francisca acha que ele não a perdoará nesse caso, e tem medo até de ser assassinada por ele caso seja desmascarada.
— Mas eu não tenho medo de morrer. Não tenho!
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Semana passada, Francisca ouviu irritada a pregação do pastor da Igreja Universal do Reino de Deus sobre a “pureza” que todos têm de ter diante de Deus.
— Pureza, palavra horrível — lembrou-se Francisca das palavras do anjo.
(Ilustração que acompanha o texto obtida no Google Gemini)
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