Na ocasião da comemoração dos 100 anos do cinema em 1995, o Vaticano compilou uma lista de grandes filmes, apresentada aqui. As 45 películas foram divididas em três categorias: “Religião”, apenas com filmes sobre a fé Cristã; “Valores”, com histórias de fundo moral, como O sétimo selo, de Ingmar Bergman, e Adeus, Meninos, de Louis Malle; e “Arte”, com filmes que contribuíram com a arte cinematográfica, como Cidadão Kane, de Oscar Welles, e A grande ilusão, de Jean Renoir.
Uma coisa que chama a atenção na lista do Vaticano é a excelência artística das obras escolhidas. Outra, de algum modo ligada com a anterior, é a ausência de obras grandiloqüentes e de grande sucesso comercial, como Os dez mandamentos, de Cecil B. DeMille e Rei dos reis, de Nicholas Ray. Mas o mais interessante mesmo é a escolha de alguns dos quinze filmes da lista “Religião” como, por exemplo, uma fita bastante obscura – La Passion de Notre Seigneur Jesus-Christ, um média metragem de 1905 – e as verdadeiras obras de arte cinematográfica, reconhecidamente difíceis, Andrei Rublev e O sacrifício, de Andrei Tarkovski, e A paixão de Joana D’Arc e Ordet de Carl Dreyer. De todo o modo, tanto o russo Tarkovski como o dinamarquês Dreyer eram diretores de cinema profundamente religiosos – e a inclusão destes filmes na lista do Vaticano, portanto, nem chega a ser assim tão espantosa. Na verdade, as escolhas mais surpreendentes da lista “Religião” ficam a cargo de dois filmes de diretores declaradamente ateus, Nazarín, da fase mexicana do espanhol Luis Buñuel, e O Evangelho Segundo São Mateus, do italiano Pier Paolo Pasolini.
Nazarín conta a história do padre Nazarín (vivido por Francisco Rabal) que vive num ascetismo extremo: a porta de seu apartamento vive destrancada, por mais que ele seja seguidamente roubado; o pouco dinheiro que recebe dá aos pobres; se alimenta graças ao favor alheio. Após uma briga de vizinhas prostitutas sua vida toma um rumo infeliz: o padre abriga em sua moradia uma delas, fugitiva, e logo o escândalo e o falatório começam a tomar corpo: a mulher resolve fugir do apartamento do padre e põe fogo nas suas próprias roupas “para que o cheiro de seu perfume não impregne a casa dele, e ele não seja incriminado”. Tudo dá errado e o apartamento todo pega fogo. Agora, além do escândalo de ter abrigado uma prostituta em seu apartamento o padre Nazarín passa a ser acusado pelo incêndio – sendo então aconselhado pelo seu superior a fugir.
Sua fuga é uma longa sucessão de eventos infelizes. Inicialmente o padre passa a ser acompanhado, contra a sua vontade, pela prostituta para quem ele tinha dado abrigo e mais uma outra vizinha – ambas as mulheres que acreditam que ele seja santo. Novamente a companhia femina lhe causa problemas e uma sórdida intriga de um homem, que tinha sido amante de uma das suas duas seguidoras, acaba fazendo Nazarín acabar na cadeia – onde é espancado por dois ladrões e depois protegido por outro. Neste ponto, abandonado pela Igreja e pelos homens, o padre já não tem mais certeza de sua fé. No final do filme, entretanto, andando obrigado de uma cadeia para outra, ele recebe um abacaxi como uma forma de consolo por suas dores – e parece aliviado com isso.
O Evangelho Segundo São Mateus é um filme da tradição neo-realista italiana: os atores são não-profissionais (é comum aparecerem pessoas completamente sem naturalidade diante das câmeras), a produção é pobre e a “Galiléia” filmada por Pasolini é, na verdade, o sul da Itália. O grande diretor italiano tomou uma decisão radical para filmar seu Evangelho Segundo São Mateus: todos os diálogos do filme foram retirados do próprio Evangelho, o que faz com que muitas cenas fiquem “estranhas”, com os personagens se olhando em silêncio durante um tempo excessivo, já que em muitas cenas narradas por São Mateus os diálogos são diminutos.
O ator principal do filme, o espanhol Enrique Irazoque, está extraordinário. Seu Jesus Cristo é indignado quando faz seus discursos, mas calmo e seguro quando com seus discípulos. As tomadas destes discursos, aliás, são criativas e variadas – frequentemente é filmado o público e não o Salvador, num efeito maravilhoso.
Nazarín é ambíguo: tanto pode ser visto como uma crítica à passividade da verdadeira Religião, como uma maneira de exaltá-la pelo exemplo do ascetismo e do amor incondicional ao próximo. Por outro lado, poucas dúvidas existem de que este seja um filme cético quanto ao caráter da maioria das pessoas e do poder organizado da Igreja – muito mais preocupada aqui em preservar sua imagem do que em proteger o homem justo. Outro aspecto do filme são sutis comparações entre o padre Nazarín e o próprio Cristo: por exemplo, uma das mulheres que o acompanhava continua o defendendo até o final, enquanto outra o abandona – num paralelo possível com os dois ladrões que são crucificados com o Filho de Deus; Nazarín termina o filme com um curativo na cabeça (um paralelo com a coroa de espinhos?); Jesus recebe um abacaxi no final do filme, num paralelo, talvez, com o vinagre recebido na cruz; e mesmo as dúvidas de fé de Nazarín podem ser comparadas com o “Pai, por que me abandonaste?”.
Já O Evangelho Segundo São Mateus (agora meu filme preferido) parece um verdadeiro milagre: é praticamente inacreditável como um filme dirigido por um ateu seja tão intensamente profundo em sua Espiritualidade. Não fica a menor dúvida, para o crente, de que este é um filme tocado pelo dedo de Deus.
(texto escrito em meados de 2004)
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